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Roteiro_de_Filme_ou_Novela-->10. EM CASA -- 02/06/2002 - 10:39 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Ao contrário do que seria de esperar-se, Fernando e Jeremias não trocaram palavra sobre os acontecimentos da noite, até que se despediram. Fernando percorreu o caminho até sua casa, deslumbrado com a lucidez dos espíritos. E também dos espíritas, que via como sacerdotes de uma nova religião, fundamentada no amor e na caridade, pelo evangelho de Jesus.

Posto o automóvel na garagem, percebeu que a casa estava às escuras. O casal de criados dormia nos fundos da residência. Serenou os cães pela janelinha dos fundos. A porta estava trancada, hermeticamente. Procurou a chave, tendo sido difícil localizá-la. Se tivesse tocado a campainha, ninguém teria vindo atender. Dolores não estava. E eram dez e meia.

Aberta a porta, buscou o interruptor. Reparou que, ao contrário das outras vezes, não acionou o botão a distância. Percebeu que se acostumara a esse jeito “espírita” de fazer as coisas. Será que perdera a habilidade telecinética? Faria outros testes.

Estava com fome. Sobre a mesa da cozinha, um bilhete:

“Estou jogando bridge na casa da Stefanie.”

Só aí se lembrou de que não jantara no Jóquei Clube. Incomodou-se com a mentira. Se o Espiritismo era a busca da verdade, estava começando muito mal. Amanhã, revelaria a Dolores, na frente do Timóteo, sua intenção de estudar a nova doutrina. Pelo menos para conhecer. Afinal de contas, a mulher nada sabia a respeito das qualidades mediúnicas. E o padre não poderia ter revelado o segredo do confessionário. Será?...

— Vamos ver se consigo ligar o liqüidificador sem tocar.

Pôs leite no copo. Adicionou chocolate e açúcar. Pensou em acrescentar conhaque, mas não quis perturbar a lucidez mental. Tentou disparar o motor. Em vão. Antes, bastava a intenção e o mecanismo elétrico obedecia. Tinha perdido, deveras, a habilidade. Será que conseguiria alguma explicação?

Enquanto esperava que a bebida se homogeneizasse, imaginou que os fenômenos físicos existiram tão-só para despertá-lo para o estudo do espiritismo. Eram a causa exterior para a motivação consciencial. Achou a explicação lógica e admitiu que, para tão simples evidência, não precisava dos mentores espirituais.

Na geladeira, havia sobras do almoço. Frango grelhado, do melhor jeito. Apanhou o prato e fez menção de levá-lo ao forno de microondas. Mas ficou estático no meio da cozinha, sorvendo o leite maltado em pequenos goles. Gostava dele assim, gelado.

Por que hesitava com o frango? Lembrava-se de Jeremias abstendo-se da carne. Haveria necessidade de abandonar esse consumo para fazer jus a adentrar os mistérios do Senhor? Não criara o Pai os animais para serem consumidos pelo homem? Não era assim que Timóteo falava, enquanto se servia de lautas porções de assado?

Passou-lhe pelo pensamento a possibilidade de os animais terem também alma. Se fosse assim, não se justificaria que os homens os alimentassem, para depois sacrificá-los. Olhou atentamente para o restante da carcaça à sua frente e pensou em ver ali um braço humano. Como reagiria? Bem, se estivesse acostumado à antropofagia, iria matar a fome com bom apetite. Será que Jesus aprovaria o consumo da carne humana? Será que o Mestre comia carne vermelha? Haveria alguma passagem nos Evangelhos que comprovasse o hábito? Após ressuscitar, para mostrar que ali estava em carne e osso, apanhou uma posta de peixe e pôs na boca. Evidenciava-se que comia peixe, sem dúvida. Pelo menos assim quiseram fazer crer os evangelistas. Pedro não fora ajudado por ele no milagre da pesca? Fernando não poderia querer ser superior a Jesus. E Jeremias, será que teria pensado nisso tudo?

Instintivamente, colocou de volta o frango na geladeira e se contentou com um pedaço de queijo, derretido sobre duas boas fatias de pão. Pelo menos os microorganismos que fermentaram o leite não poderiam considerar-se carne. Pensou nas verduras e frutas, também seres vivos, e na hipocrisia dos vegetarianos. Jeremias talvez soubesse explicar isso.

De qualquer modo, não comeu excessivamente. Repetiu o leite, aqueceu uma xícara de café e preparou-se para ver o noticiário na televisão.

Sobre a mesa de canto da sala de estar, estava a secretária eletrônica anunciando uma chamada.

— Querida (era uma voz feminina), amanhã está confirmado que iremos todos almoçar com o Padre Timóteo. Não se esqueça de que Jeremias não come carne. Qualquer novidade, ligue pra mim. Tchau!

Era Maria. E, sem dúvida, estavam tramando algo para o dia seguinte. Iria ter de demonstrar muita paciência, mas o projeto de revelar as intenções espíritas esbarrava na presença do companheiro. Que diabos! Será que iria ficar amarrado às conveniências das pessoas? Às suas convicções religiosas?

Na tela, corria programa de entrevistas. No outro canal, filme americano, enlatado. Esporte, no terceiro (futebol em videoteipe; detestável!). Propaganda. Propaganda. Filme de longa metragem, dos antigos, em preto e branco. Viu as horas. Onze e quinze. Até que horas pretendia a mulher ficar fora? Pelo menos, os melhores jornais da TV não haviam passado. Haveria novidades econômicas? E os criminosos, teriam encaminhado para a espiritualidade mais alguém? Aí, estariam dando trabalho para os socorristas e benfeitores dos centros espíritas.

Os diálogos em inglês não o estimulavam a prestar atenção na história. As legendas amarelas passavam rápidas. Havia tiros, perseguições, gritos de terror. Voltou para a propaganda. Passava seriado multicolorido, com diálogos frouxos e previsíveis. Será que a televisão não se interessava por filmar algo no gênero espírita?

Deixou a imaginação vagar por complicado enredo em que uma pessoa morre atropelada e é levada ao além, onde fica sabendo que fora vítima de crime. Como reagiria? Seria controlada pelos amigos, parentes, como a tia Ana? Amanhã procuraria as velhas fotos. Por que não fora sua mãe quem viera mostrar-lhe o caminho da doutrina?

Perdeu-se em conjecturas e adormeceu. Embalado pelos diálogos monótonos, via-se à beira-mar, perseguido por carros de “gangsters”, sendo metralhado, enquanto corria por entre as estacas do cais. Um bom anjo vinha retirá-lo do corpo para levá-lo a belíssimo hospital. Desejava permanecer adormecido, mas alguém o chamava, sacudindo pelo ombro. Acordou assustado. Era Dolores:

— Vamos para a cama, querido? Ou você pretende passar a noite toda aí?

Verificou que estava de camisola. Será que estivera em casa o tempo todo, desde que ele chegara? Ou teria preferido disfarçar a hora, fingindo ter regressado mais cedo? Olhou para o relógio da parede. Três horas. A televisão estava desligada. Como foi que dormira tão profundamente?

— Tem um recado para você na secretária.

— É de Maria. Eu a convidei e a toda a família para fazerem companhia ao Timóteo. Desde a visita ao terreiro, vocês não têm tido mais assunto. Aliás, o Joaquim me informou que você saiu para almoçar no horário dos balancetes. Não poderia ter vindo para casa? Não ia perder muito mais tempo.

Dolores falava apressada, sem convicção. Queria pôr-lhe a pulga atrás da orelha.

Fernando pensava no papel do subalterno. Por que não lhe havia falado nada sobre o telefonema?

— Vamos dormir que estou com sono. Não gostei de ter perdido no Jóquei. Trezentos mil. Não vão fazer falta, mas isso me deixou mal-humorado. Nem jantar lá nós jantamos. Comi sanduíche quando cheguei. Amanhã a gente conversa. Amanhã a gente conversa.

Enquanto escovava os dentes, Dolores foi deitar-se. Por que fora levado a mentir de novo? De que tinha medo? Certa ocasião, estiveram a pique de separação. Mas as coisas acomodaram-se. Não fora situação muito pior? Por que as sutilezas da consciência, em momento de transformações espirituais?

Desta feita, as perguntas ficaram sem resposta.

Quando apagou a luz, Dolores ressonava. Ou fazia de conta. Que diferença havia?

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