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cronicas-->O Suicida -- 17/03/2015 - 13:25 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Nada mais sentia. Era um oco por dentro e por fora, tantas bagunças em seu coração desacorçoado que decidira, sem meias palavras, se atirar do alto da ponte sobre a Marginal do Pinheiros, lá bem onde tem um bosquezinho, de tal forma que ia se arrebentar e servir para alguma coisa, adubo de árvore, pasto de capivara, osso para cachorro, sei lá. Já se cansara de tudo: Tinha as filhas criadas—ou pelo menos dera rumo a elas—e sua vida chegava a um círculo perfeito, de tal maneira que sua erudição, os livros todos que lera, os personagens todos que visitara, blá, blá, blá, era uma terrina só de uma imensa esfera de vazio absoluto. Ele se sentia assim uma árvore que chega a um certo tempo e decide: “Chega de balançar tanto galho e fazer tanta folha, florir todo ano; essa porra de gente nem olha mesmo. Vou é secar de vez. Quem sabe notem algo?”. Pelo menos ela se indignava com sua pretensa invisibilidade; ele não, nem se importava mais com o cotidiano nefasto, gente enchendo as ruas de vermelho e tome bravata, gente inchando museus de amarelo, e tome bravata; ninguém nem sabia era nada, tudo tomava direção nenhuma. Os galhos balançavam, balançavam, as folhas enchiam as praças e todo mundo se pintando do mesmo jeito. E tome gravata, celular smartphone com direito a lambida doce no escuro e cheiro de pum no asfalto, e mãos ao alto que perdeu, playboy, e tome bravata, é polícia e tiro, mais um. Ufaaaaa!!! Ele já não suportava mais, sugado que estava da seiva desse asfalto. E a vizinha gostosa que olhava e ele, nada, devia pensar “esse aí joga num outro time ou é do lado dos loucos; será que sento em seu colo?” . Não, ele não queria. Queria descansar dessa zona toda, desse barulho. Saltar seria um pequeno passo para ele, mas um passo gigantesco para sua humanidade: ele deixaria de encher o saco dos vizinhos, deixaria saudades nas filhas, deixaria uma boa grana para a mulher...e sumiria no longo sono, tenebroso sono do inverno leitoso que era o fim de tudo. Ele estudara muito, se preparara; claro está que não haveria virgens esperando nem querubins desafinados ao fim de seu mergulho: Só lama, pasto e lixo além de garrafas pet. Esse mundo é pouco romântico! Nada sobrevive ao pragmatismo de nossa civilização que preza mais o ter do que o ser; se você tem, você é, se você não tem, já era. Representa um ponto na escala cósmica do Ibope divino. Doe, doe bastante e compre seu lugar no futuro, aonde estará sentado à direita do cordeiro; doe...E seja, seja um otário, seja um imenso otário.

Blá blá blá.

Igrejas lotadas de fiéis sentem o incenso que deixa zonzo o coroinha; alguém sacaneou e misturou algo lá que dá tonteira e o mundo se ilumina enquanto o padre reza a missa; uns se benzem, outros se prostram aos pés da imagem. Ele deveria ter sido assim, um homem de fé; mas tudo tem limites! A sua fé fora testada, ele nada tivera além daquilo que merecera, para acabar assim, oco feito um tronco roído de cupins? De que adiantara crer, se ninguém mais dava conta de sequer saber o que ele pensava? Sentia-se só, imensamente só, apesar de cercado de multidões. Nelas, via que a solidão imperava, os ônibus lotados de máscaras que não se falavam, imensos repositórios de escravos que iam e vinham, autômatos de sua própria miséria diária. Qual a razão que os movia? Num banco de um parque, duas meninas lindas, uma ao lado da outra, olhando fascinadas a telinha de seus telefones; Lá, ao largo, uma jovem de patins voava baixo, imersa num mundo sonoro de eletrônicas notas. Lá, no entanto, um velho jogava migalhas aos patos, irremediavelmente só, sem eira nem beira. Que sentido tem tudo isso? Os peixes sabiam, os patos sabem e os vermes que roem os peixes e os patos mais, e muito mais que todos, o sentido interno da efervescência do lodo e da voragem da morte de tudo. E o velhinho ainda se voltou, com o chapéu, e numa última migalha, levantou-se lento e monocórdico, como a carregar o peso do mundo nas costas.

Estava decidido; seria ali mesmo, ele já sabia. Não caminhara tanto por tão pouco. Estava de roupas leves, uma calça simples, uma camiseta sem nenhuma propaganda nem cor do momento (se pudesse, vestia laranja). Subiu o viaduto com a calma marcial dos que sabem o que fazem e dos que não temem o que querem.

Daí, de um pulo, sentou-se na beirada do viaduto. Claro está que ninguém olha nessas horas. Passam aquela multidão de gente nos carros, uns cutucando narizes imundos, crianças chupando sorvetes, mães indo a dentistas, amantes marcando encontros na tarde; é sempre assim, ninguém nota um pacote que cai, como um corpo que se dependura; hoje, para impressionar, só pendurando uma coxa no viaduto do chá e pondo fogo. Ele estava ali, sentado e olhando para baixo, para a imensa poça de água barrenta que era o rio morto que pendia lá embaixo, fruto de tanta inanição de poderes públicos coniventes com o crescimento e lenientes com a desobediência de tantos. Daí, o esgoto.

--Bom, sem mais, vai ser assim.

Nisso, ele sente um peso, nada desprezível, em seu ombro direito. Nota um certo perfume, e olha que perfume à beira de um rio morto precisa ser algo de Paris e palaciano, porque é algo de inaudito.

--Tem certeza que quer isso?

A pequena voz vem de seu ombro e ele, como a se desvencilhar, dá um repelão. Como um zangão, flutua um pequeno homúnculo, de roupas azuis e asas que mal lhe sustentam o peso, desproporcional ao seu pequeno tamanho. Tem barbas longas, cabelos grisalhos, bondosos olhos e belas bochechas rosadas, uma indisfarçável barriga e um ridículo chapéu que lhe dá, mais que um ar angelical, a aparência de um bruxo gordo.

--Que raios é você?
--Sua consciência, meu filho.
--Pára com isso. Até você é gordo? Não acredito. Pensei em algo assim, inefável, mas até nisso vocês decepcionam??

O pequeno ser, contrariado, zumbe um pouco, põe a mão gorda no queixo e pensa, pensa...

--Mas, também, você quer o quê? Todos se empanturrando com fast food, eu que sou anjo, não posso? Afinal, posso ser um anjo mas não sou otário.
--Otário sou eu, que vou saltar já já...
--...Calma, não quis dizer isso; Calma, respire fundo, um dois, um dois. Isso. Vamos ver as alternativas.
Ronca um motociclista perto, talvez o único que tenha notado a cena que se desenrola;

--Ô velhote!! Se segura malandro que daqui até lá embaixo é dois palitos!
--Ihihihih!!

Os dois se entreolham, sentindo o cheiro característico do gás metano, aquele que contribui ao aquecimento global, que das vacas emana, que sai de noite nas caladas dos quartos e vicia o ar dos estábulos e leva nosso mundo a um grau mais alto da estufa que é nosso clima. Aliás, faz bastante calor e ele, cada vez mais desligado do mundo, desafrouxa a camisa da calça.

--Quem foi?
--Não olhe para mim. Só vim me suicidar. Você é quem come fast-food.

Ambos olharam para o seu ombro esquerdo. Lá estava a encarnação da sacanagem, o pequeno diabinho de pele avermelhada, sem rabo mas com um cachimbo na boca e umas asas que mais lembravam aquelas mariposas negras de noites escuras de chuva. Era dele que vinha a baforada sulfídrica.

--Melhor você mudar de lado.
--Não posso.
--Então, me mudo eu.

Virou ao contrário, de tal forma que, agora, ficara de costas para o rio e o vento já não lhe trazia as emanações do pequeno flatulento.

--Espertinho, hein?
--São anos e anos de aprendizado, sempre correndo contra a maré; dou-me o direito de ficar, eu, a favor do vento.

O pequeno diabo, farejando algo no ar, disse, à queima-roupa:

--Aliás, não tomou banho hoje, meu caro.
--Claro que não. Para quê?
--Como, para quê? Manter o asseio corporal, a autoestima; são coisas básicas.

Quem falava era o pequeno e gordo anjo azul.

--Blá blá blá. Você e sua papagaiada crística, órfica, búdica...Sempre a mesma coisa. Devia era se reinventar, oras. Veja! Eu vim aqui e acho que ele deve, apenas, pender o corpo para trás...E assim caminha a humanidade, sempre para trás, ou de lado, a depender do treinador do time. Só conheço um povo que caminha sempre para a frente, sempre cumprindo ordens, mas estes até meu patrão aplaudiu de pé duas vezes pelo menos. Aliás, foi com este germanismo que finalmente ganharam mais uma copa.
--Pare com isso.
--Mude o perfume. Mude o disco.

O pretenso saltador olhou para um e olhou para outro, enfurecido.

--Porra, dá para parar com essa briga? Eu estou aqui, na beira da ponte, para saltar lá para baixo e vocês dois discutindo futebol, perfumes e filosofices?

Os dois pequenos seres se olharam e o diabinho, que tinha ótimo humor, replicou:

--Força do hábito. Espera-se que nestas circunstâncias, os seres humanos sejam assaltados de dúvidas...
--Quais dúvidas? Posso saber?
--Ora...O sentido de tudo, o sentido da vida...

Ao que o gordinho azul emendou:

--Se há vida após, você sabe, após...
--...Após o salto, hihihihi!

E o nosso herói, esquecido enfim do que viera fazer, já começava a se comprazer com a animada conversa que tinha.

--Você e sua maldade...
--Você e esse perfume mal ajambrado. Precisa emagrecer hein! Não lhe entra o costume, lhe cai mal esse sapatinho e esse chapéu…Francamente!
--Dadas as circunstâncias do chamado, mal pude me arrumar e aqui estou!

Passou uma perua lotada de estudantes mascando chicletes e gritando obscenidades; Um deles disse : “ Olha o tiozinho falando sozinho” e o monitor “ cala a boca, moleque”.

--Criancinhas; são um doce. 
--São malvadas!
--Aprendem desde pequeninas o gosto que é servir ao meu patrão.

Uma lufada de vento quase o derrubou e ele, sem hesitação, agarrou o parapeito; O bruxinho azul suspirou aliviado e o vermelho-te esfregou as mãos.

--É só deixar a vida te levar...
--Danado! Ele se espatifa lá embaixo...

O diabrete olha o gordinho e replica...

--Vira um vatapá...Quem sabe chega a ser assim um frango desossado...Ou até um pastel de carne moída!
--Cruzes! 
--Assistindo novelas, hein?

Olhando de um lado e de outro, ao diálogo rápido daquelas forças elementais que ele só vira uma vez na vida e agora, bem ao término dela reapareciam como que por um passe de mágica, ele sentiu-se esfomeado de repente...

--Quem sabe, uma esfiha daquelas bem cheias de pimenta...
--Pare com isso, seu diabo assanhado!
--Parem, vocês dois!

Disse isso e desceu do parapeito; tinha uma fome danada agora, de tal maneira que doía seu estômago e ele precisava voltar para sua casa, onde engoliria tudo que estivesse à mão.

--Bom sinal!!
--Não me venha com chorumelas.
--Verdade, deixa meu cliente em paz. Ele é de seu corpo e meu patrão subloca seu espírito.
--Você também, cale essa boca.
--Hihihihi!

O diabrete enfiou a viola no saco e os três deram de caminhar pela pequena calçada que levava ao fim do viaduto por onde quase saltara; não é que estas coisas acontecem, mesmo? Foram vistos entrando os três no bar, quero dizer, só ele, que pediu um drinque para três, mas era um só, de maneira que o garçom não entendeu nada quando levou um copo para um e dois que ficaram vazios sem que ele percebesse como.

--Vai lá saber! Quem sou eu pra me meter a sabichão?

E sentou-se e sentiu uma vez um bom perfume, outra vez um mau-cheiro danado.

 

--Seu Manuel precisa ver esse banheiro. Isso espanta freguês!

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