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cronicas-->Chibata -- 26/01/2015 - 08:47 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

A vida tem coisas de que até Deus duvida; vez em quando uns causos que me chegam, me deixam afinado com a brandura do ser humano, da mesma forma que com a crueza de outros e a selvageria de outros mais. Pois olhe você o que quiser, se é que Deus existe, este deve ser um desses altivos senhores de engenho que se presta a chibatar as costas da negrada, para fazê-los trabalhar aos magotes e fazê-los fenecer aos borbotões; disse isso para participar de minha dureza adquirida de anos de experiência que se acumulam em camadas de tanto viver, ano a ano, as tais chibatadas que se dizem delas por aí. Elas me fustigam, mas eu já me aclimatei à tal barbárie, de modo que os senhores da vida, estes grandes reis que só o são por mandamento de tábuas partidas sabe-se lá de que sarça, só pensam que mandam e eu finjo que me dobro.

--Seu moço, não fale assim não, que é pecado. Praguejar traz má sina; reclamar da vida só lhe trará mais sofrimento, no que vosmecê tanto chafurda. Há outros que sabem sofrer com paciência, vosmecê apesar de dizer que seja duro, rilha os dentes de ódio e malquerença; isso decididamente não lhe cai bem.
--Deixa ele comigo, ele fala o que eu preciso. Comigo é assim: Vai o peso de minha mão, vai-se a alma em pleno verão.
--Mas o que querem de mim?

O outro, cicatriz no rosto e nariz adunco de mouro, corpulento e absorto em súbito pensamento abstrato, volta do devaneio com um grito rouco:

--A Verdade! Desembucha!
--Só vai lhe custar um pouquinho; diga logo a verdade!
--Que verdade???
--Toda!!
--Anormal, diga logo o que tem dentro da cachola, porra!

Eu penso, na vigésima chibatada, que é melhor dizer tudo.

--Está bem! Está bem! Eu estudava em colégio de gente fina, com choferzinho na porta e um monte de gente bacana...

“Lá uns adoravam espezinhar o outro, seja pela sua condição inferior, seja porque um era mais pobre que outro, seja porque o outro tinha ares de importância grande; outros o faziam por pura safadeza, abusando dos mais fracos, de modo que eu não passava de um rato de esgoto lá, apesar de minhas boas notas. Estava acostumado a ser empurrado para um lado e outro, a ser achincalhado; num colégio como aquele, ou você enfrenta a turba ou foge da malta. Preferia fugir de tudo e me refugiava em meus estudos. Tirava notas excelentes pela minha aplicação absurda, que se não era mais uma fuga, seria o que meus pais gostariam de ver-me fazer, tão atarefados que eram, cada qual ao seu modo”.

--Além de tudo, filho de papai!
--Fale a verdade, vagabundo. Não passa de um rato, capivara, roedor de cara de fuinha!
--Desembucha!

“Teve um dia, depois de levar uns tapas do menino mais forte da sala porque minhas notas tinha sido maiores que a dele, apesar de o trato seria eu me esforçar para que ele desse melhor desempenho, eu ainda fui ao banheiro e explodiram uma bomba quase ao meu lado, de maneira que fiquei meio surdo por uns dias; daí que eles ( os safados) me apelidaram de surdeco da mamãe. Eu tinha um amigo das altas rodas, o pai tinha fama de ter agência de anúncios, estava na vida a toda, com milhares de notas nos bolsos e coisa e tal; daí que foi nos visitar em casa, por aquela época éramos amigos. Ele veio almoçar com a gente e estávamos a conversar justamente sobre a bomba, a surdez e outras mandracarias. Minha mãe, enternecida pelo momento de ver tão alto dignitário presente em casa—filho de peixe, peixinho é—saiu com a pergunta-surpresa para mim:
--O quê vocês acham da Escola?
Ele era desbocado e falava o que lhe vinha na telha; eu me afobei e passei à sua frente:
--Uma merda!
Minha mãe ficou com os olhos tão grandes das risadas que o reizinho dava de minha suja boca, que de repente desferiu um tapa em mim, com toda a força de sua heroica condição e com toda a intenção de matar na fonte a jactância de tal fedelho. Caí ao chão, humilhado, sob os olhos de meu recém-conquistado amigo. Morria de vergonha e as lágrimas rolavam em cataratas .
--Mamãe!!
--Nunca mais me fale assim em casa! “

--Filho de papai! E você acha que ela não estava certa?
--Tinha mais é que escorchar mesmo!
--Imagina se deixa falar assim.
--Essa é das minhas. Hoje em dia, todo mundo cheio de dedos...” Não pode bater, não pode gritar, tem de conversar...” Ah, vão lamber ácido muriático, esses trouxas!
--Otários.

Enquanto vociferavam, rilhando os dentes e praguejando contra as vicissitudes de um ensino mais piedoso e liberal, o hoje em dia perdia feio para o ontem glorioso; e eu ali, vergastado, pelo menos ganhava uns segundos das chibatas que já me fitavam com olhos ávidos de dor e humilhação. Respirei fundo, suspirei, ajoelhado que estava, as costas nuas. Sabia que, dali, não sairia vivo ou, se o saísse, talvez tivesse péssimas sequelas e piores recordações.

Todos se voltaram para mim; eles tergiversavam, discutiam meus destinos. Um deles batia quando em quando a chibata na mão, como se fosse para lhe lembrar que um dia está ali, outro dia pode estar no lugar que é o meu. Com o silêncio que é o costume dos que sabem manipular a dor dos outros, aproximaram-se de meu corpo.

 

Ia começar nova seção do Inferno.

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