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cronicas-->Sonhos não envelhecem -- 03/01/2015 - 08:49 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Sabe-se lá o que o movera a isso; as pessoas são misteriosas em seus desígnios, à imagem e semelhança do Criador que a tudo vê, a tudo ouve e a tudo permeia. Certamente, à imagem e semelhança Deste, ele resolvera de súbito, em plena manhã do dia terceiro, a sair para dar uma espairecida. Lá dentro, o bebê chorava feito um louco, a casa ressoava de seus berros famintos. Uma maritaca? Não, é o bebê abençoado pela sua vinda. Veio um Messias, ele ruminava, aquele que nos salvará a todos desta pocilga. Com essa voz de tenor, certamente um futuro brilhante o aguarda, não sem antes tomar hectolitros de leite da abençoada esposa, que, insone, carrega em seus ombros toda a piedade que todas as mães carregam por ocasião de seus nascituros gemerem e chorarem de fome nesse vale de lágrimas. Pode-se falar o que quiser, as sogras podem malhar incoerentes suas noras, mas em nossa opinião (eu de fora, ele de dentro) benditas sejam as mães com seu alimento eterno dentro delas, que haure os famigerados lábios daquela coisinha adorável e berrante que é o seu filho. Consideremos, afinal, que a sogra antes de sê-la, foi vaso, receptáculo e seus azedumes derivam de profunda inveja pois aquele a quem gerou e educou com tanto esmero, gastando cálcio e ossos durante sua infância agora já tem o seu próprio rebento; afinal, que avó não foi mãe e filha antes de bater panelas na casa da nora?

Ele pôs uma roupa leve e passou pela sala; num quarto, sua esposa e o bebê berrante. No outro, sua mãe ressonava de boca aberta, quase concorrendo em seus rugidos com o pequeno príncipe faminto e insaciável. Pudera eu saber porque tão insaciável é toda criança pequena? Porque depois de tudo isto, se sobrevivermos, vêm as outras fases deliciosas, as que eu preferiria dizer foram todas as que eu vivi com os meus, há muito tempo atrás com aquela que grunhe dentro do quarto de hóspedes e que range os dentes a cada pergunta tola de minha atarantada esposa. Dá pena de ver a prontidão em que se encontra minha progenitora, ao dar chibatadas numa vingança às avessas, deixando-a fragilizada e que por vezes a faz chorar de ódio, de raiva ou por sentir-se inferiorizada, tal é o conhecimento que a outra tem de tantas coisas às quais ela nunca teve acesso e nem desconfiava, como uma avalanche de coisas novas a fazer e que a sufocam sob as batidas do coração de seu pequeno, não bastassem as fraldas, os odores, o próprio corpo deformado, a bunda enorme de gorda e a barriga que insiste em ter mais dois gêmeos, tal seu volume fictício. As mulheres valorizam muito os seus corpos, enfim, são os vasos sagrados que recebem a luz divina quando gestam e parem. Saberia ela que iria se sentir tão mal? Quem é que sobra, se tem de alimentar o buraco negro, aguentar insolências de sua sogra e ainda conformar-se com sua medonha flacidez? Ele, eu, seu marido. Daí, choro de lágrimas sentidas, tenha paciência, ela melhora, melhora nada, você viu o que ela disse? Releve, ela já passou por isso, quer ajudar, ajudaria mais se ficasse calada, essa megera, nunca pensei que fosse tão humilhada, calma, logo ela vai embora, aí seremos eu e você... E o bebê. Oh, meu Deus, só nós três. Um trio numa nau enfrentando as vagas de ondas bravias, um trio de insones, um de fome, outra de dor e outro de amor.

Seu coração batia furioso, dia terceiro, é preciso espairecer um pouco, é muito cedo, ninguém vai notar minha falta; na equação perfeita daqueles momentos, minha presença talvez seja a mais detestável, porque se de um lado eu tento acalmar, de outro recebo a frieza de minha mãe, mais preocupada com suas rotinas estabelecidas, suas regras rígidas: Lave assim, troca assado, tire a perninha primeiro, parece que nunca viu isso, troque a fralda, vai assar...Daí que, se eu sair um pouco e espairecer, eu posso voltar com melhor energia. Na verdade, nós, homens, somos realmente desejados quando nasce uma criança? Veja bem, o sonho se materializou mas não é tão róseo assim; nossa inexperiência torna estes tais momentos em algumas pequenas torturas e muita culpa se mistura aos raros momentos em que o pequerrucho nos dá trégua, de modo que o que poderia sobrar em amor se transforma em trocas de obrigações e uma tentativa mínima de organizar o dia que vem e olhem bem, só se passaram três, o que dirá do sétimo? Descansaremos como descansou o Criador, ou seremos expulsos por ele do paraíso do lar, para cairmos na labuta diária enquanto que em casa cresce um pequenino rebento que se transforma em um menino formoso, de olhos grandes, a perguntar por tudo e ainda por cima dizendo porquê?

Aqui fora, sopra a brisa que alivia em parte o verão enorme que se faz lá fora; um sol absurdo esquenta as lajes, pássaros voam de lado a lado, alguns me observam de fios pendurados, vários arrulham nas calhas das casas, um chiado contínuo me chama a atenção; mais uma mãe que nutre enquanto o pai, ora, saiu para caçar alimento. É o instinto de sobrevivência. Chego pertinho da arvoreta, voa a mãe espavorida, talvez pense que eu capturarei seus filhos; dentro da moita, no ninho bem escondido, três bocas aguardam impacientes. E eu reclamando de uma só! Imagine? Deixo-a sossegada com seus trigêmeos, imaginando o que não estaria dizendo minha mãe agora, triplamente estafada para minha esposa triplamente atarefada. Não, sair nem pensar! Estaria eu a lavar as roupinhas de três rebentos ao invés de um! Poderia ser pior, com certeza. Mas apresso o passo, quero ter certeza de que o mundo ainda existe, de que não é uma ilusão materialista, de que Deus enfim o construiu e o fez, afinal, para que o Homem o percorresse e, extasiado, agradecesse aos milagres da Criação, a cada imagem e a cada luz que iluminasse as sombras de seu andar sobre o chão de mistérios que o aguardasse. E sopra o vento em meus cabelos, ouvem-se vozes, passa um pequeno grupo de estudantes com suas mochilas e gírias, dá licença tio, e pronto, de filho da mãe virei pai e agora já sou tio, um dia longínquo serei avô (que falta faz o meu!) e contarei estórias maravilhosas para meus netos e ajudarei minha esposa nas andanças pelas casas das filhas, ficando com uns, cuidando de outros e contemplando mais uma que nasce, num berreiro infinito que nunca cessa; porque nascer dói, assim como morrer destrói...

Daí que me lembro de meu pai, esse danado de bom, esse velhinho que já não pode mais sofrer porque, como meu avô, já se foi para o campo akáshico de conhecimentos e deve estar com ele lá discutindo assuntos que sabem às estrelas, tão próximas de seus dedos como meu filho está próximo de minhas mãos; pai caridoso, avô maravilhoso. Agora, somos eu, minha esposa e meu filho...e minha mãe prestimosa e severa; a morte tem seus preços, tem seus segredos e tem suas cobranças, mas de todo modo a morte nos diz mais de nós todos na medida em que fermenta a espera do novo, desse que vem assim, num choro cósmico, numa Nuvem de Magalhães que cerca um castelo e que, num raio, coloniza um corpo novo, uma alma nova, um berço novo e um seio que se compraz na dor e no amor. Caminho, olhando os pontos de ônibus cheios de gente, as lojas abrindo suas portas, a colegial que me dá uma olhada comprida, o padeiro que me cumprimenta, oi seu moço, diga seu Manoel, a menina da loja da esquina que me conhece de antes de virar gente, oi menino, oi Graça, tropeço num calçamento ruim, andando por esses caminhos invariavelmente curvos, torcidos e cheios de gente humilde, cada qual com sua ocupação...Andar é bom, respirar os ares que enchem os pulmões de novos rumos, alvéolos, brônquios e traquéia, bem que eu vejo as miríades de sonhos do lá fora, essa maravilha que seja o mundo todo, realmente feito um véu de sonhos sobre outro véu que é nosso sonho de viver, dentro de um sonho maior que é o Dele e que se acorda...

--Querido...

--Oi?

--Me ajude aqui.

--Hein?

--O bebê está sujinho. Me ajuda a trocar?

--Tive um sonho bom!

--Vamos trocar o nenê logo, antes que sua mãe fareje e venha nos dar uma bronca!

Sonhos não envelhecem, irmãos.

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