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cronicas-->Foi Assim que tudo Começou -- 24/12/2014 - 11:08 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

É muito estranho dizer, de maneira tão laudatória, que sei que aqui tudo começou de certa forma. Eu sabia e devia estar só, comigo mesmo; não havia mais a quem convidar para tomar meu vinho português, todos estavam ou fora de São Paulo ou junto de suas famílias. Eu? Bem, eu não tenho família. Desde muito cedo eu já sabia, não tenho talento para isto de cultivar crianças, ouvir mulheres reclamando de que você ainda não cumpriu suas promessas de comprar os presentes e ainda dar conta das fraldas dos bebês e de tantas outras coisinhas que dilapidam seu patrimônio indissolúvel, que é sua alma; afinal, tudo isso são as convenções do que se costuma dizer da vida em sociedade, esse monstro de mil faces que coloca um sorriso em seu rosto e lhe faz levantar cedo e trabalhar quase que mecanicamente. Outros haverá que, sem dúvida, admiram e até se sentem bem ao serem vilipendiados pela vida mesquinha, pelos patrões malvados e pela esposa que, apesar de saudosa, lhe dispara no rosto à queima-roupa que você esqueceu( de novo) de pagar as contas atrasadas e que, porisso mesmo, as pagará com juros e correção. 

Ufa, eu bem sei que isto é complicado e triste. Ou até pensando de outro modo, é compreensível, porque a formação da mulher, em geral, as capacita de certa forma a ver o global enquanto que nós permanecemos no restrito, no aqui-agora enquanto que elas, elas, bem, navegam num mundo à parte que quando se choca com a realidade dura dos orçamentos exíguos, as exaspera e frustra. É bem por aí mesmo e faço questão de dizer que, se o cálice é um só, eu o bebo de maestria própria, em minha mesinha de uma toalha vermelha, com um prato onde me sirvo de um peruzinho minúsculo ( parece um faisâo de tão pequeno) e abro meu vinho que, frisante, deixa escapar ainda ao ar fresco do dia um aroma amadeirado e suave. Nestas horas, fazem falta os risos de filhos e/ou netos, nesta ordem ou inversa, tanto faz. Porque ao tilintar do copo e dos talheres, se junta o silêncio da madrugada fria que se delineia lá fora; é fato, a solidão se passa como uma doce tortura nestas horas absurdas. Eu, no entanto, conformei-me ao inevitável, erguendo o cálice à luz do lustre, em minha cozinha impecável, em meu pequeno apartamento cheirando a limpeza e com livros arrumados na estante ( sempre fui muito metódico e , acho sinceramente, sei que jamais iria poder suportar sequer o fato de dividir esta ordem estabelecida com alguém que, em geral, nos é oposto por natureza própria).

Como música de fundo, nada de televisão! Eu prefiro ouvir a música de boa fidelidade que selecionei para data tão importante: Suaves violinos de um Haydn, que eu ainda não domino completamente. Lá fora, o silêncio total e as interrupções inevitáveis das risadas daqueles que se encontram, se reúnem, sorriem, se amam, se trocam os tais presentes, apenas olham o movimento ou, enternecidos, vêem todas as famílias felizes. Ergo um brinde a elas, fortalezas contra o tempo que se esvai, esse que em pequeninos grãos, escorre das clepsidras de cada um pouco a pouco. Ergo um brinde porque a aventura humana não passa de uma fieira de momentos inescapáveis, uma roseta de línguas desconhecidas com suas lindas canções traduzidas em diversos idiomas. 

Contento-me com meus violinos, meu vinho amadeirado e o vento que passa na soleira da porta, trazendo os rascunhos do amanhã que se avizinha. Rascunhos do amanhã, somos projetos de um futuro que se apresenta aqui e agora; eu, só, tantas famílias soltas nos mundos sós, tantos congraçamentos de olhos solitários, tantos velhos felizes e seus parentes em festa, em torno, com as cobranças de contas atrasadas, as frustrações de um filho que faltou de novo, o marejar dos olhos da mãe que perdeu o contato com os ingratos; tudo interesse, ela bem o sabe, tudo interesse. Deus me livre, eu estou fora disso, tenho a mim próprio, sou meu vinho, meu cálice, minha mesa e meus livros ordenados, sem nenhuma perturbação. Tem sido assim há anos! Por qual razão eu mudaria?

Nisso, ouço o bater da porta do elevador--sim, moro em um apartamento, como tantos nessa megalópole. Algo me alarma, porque cai uma garrafa espatifada ao chão. Espalham-se cacos. Será que alguém se machucou? Abro a porta, talvez alguém precise de ajuda. Vejo-a agachada, cabelos loiros, tentando juntar os cacos simbólicos do que lhe restou de champanhe. Ela ajunta os cacos a um canto, visivelmente chateada.

--Posso ajudar? Você vai se cortar!

--Obrigada! Tem uma pá?

--Claro, espere que vou buscar.

Olhos de um azul absoluto, pele clara feito a manhã, nariz fino e uma roupa despojada. Pego a tal pazinha de lixo e uma caixa, que vidro é melhor descartar de maneira apropriada; ninguém tem culpa de nossa maneira desastrada de ser.

--Obrigada; sou uma desastrada. Esse é o champanhe que eu tomaria.

--Trouxe para sua família?

Por um instante, ela parece refletir. Seus olhos se fixam ao fundo, ela silencia or um momento, concentrada em limpar o que restara de sua garrafa. eu respeito seu silêncio que diz mais do que mil coisas; ela parece bem jovem, deve ter pouco mais que trinta anos. Nunca a vira por aqui. Devia ser nova, ou se escondera de forma tão habilidosa que a mim parecera invisível. Ela voltou seus olhos para mim, tristemente.

--Não, não tenho família. Ou melhor, tinha, mas, bem, é complicado.

Imaginei o que estava oculto em sua preciosa frase. O que se diz nas entrelinhas eventualmente supera o texto todo. Ela era baixa, tinha o corpo bem feito e um sorriso que cativava muito, apesar de ser de poucas palavras ( ou assim se fazia talvez por timidez, talvez por receio). Pensei comigo, eu estou sozinho, ela perdeu a champanhe...

--Olhe, se você não se importar, eu estava começando minha ceia, se é que acredita nisto. Tenho um vinho Madeira que nem comecei a saborear e um peru que está para ser atacado. Se quisr, eu a convido a passar comigo, a não ser que tenha algum compromisso...

Ela me olhou  de alto a baixo, sem nenhum tipo de ironia; ela continuou a limpar os vidros, mas eu a ajudei com uma vassoura. Pareceu medir as consequencias do que iria fazer; toda mulher tem mais de um pensamento simultâneo, enquanto julgam, avaliam e pesam todas as circusntâncias. Será que eu me excedera de certa forma? Ela se ergueu, terminada a tarefa de limpeza. Olhou para a porta de meu apartamento, olhou para meus olhos...

 

--Papai! 

--Hein!!!

--Não acredito, você cochilou, bem agora!!!

--Hahahahahaha, é esse vinho madeira que vocês insistem em trazer, sempre nesta época.

--Mamãe diz que você gosta. Ué!

--Vovô!

--Diga, doçura.

--Conta a história dos livros que caíram do céu, de novo!

--Agora não! Vamos sentar à mesa, porque a vovó preparou tudo com muito carinho.

--Vó! Ele não quer me dar meu presente!

A tempo de ouvir os tilintares, ele ainda ergueu a taça, visto por todos os que ali estavam e recordou dos livros que cairam do céu, recordou dos doces momentos todos, enquanto que entrava, da cozinha, a mais suave fada que jamais ele poderia saber que existisse.

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