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cronicas-->Vinho -- 03/12/2014 - 18:57 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

O que não se faz em nome de um amor perdido; assim pensava aquele homem encanecido, embora não fosse evidentemente tão velho quanto se supunha e menos novo quanto achava que fosse. O fato é que, imerso em antigas divagações, ele se permitia, a esta altura, pensar sobre os significados do amor e seus corolários perfeitos. Nunca o que pensava poderia ser mais útil e triste, porque nos balanços da vida que se levou talvez algum segredo se baste à vida que ainda virá. Ele remoia e mastigava seus primeiros sonhos com sua antiga musa e corria na direção de tantas eras passadas que as presentes se tornavam como que um sabor em dissolução. Um jazigo de cinzas amontoadas-- vinha-lhe esta expressão forte proferida por seu amigo mais próximo, quando este perdera sua esposa de tantos anos.

O cálice perfeito em sua assimetria lhe lembrava tantos anos de convívio em que as arestas se tornam em margens arredondadas, num fluxo contínuo de imagens como de um rio onírico povoado de seixos brilhantes, cada qual destes significando momentos marcantes. E vagava nosso herói pelas rumorejantes cascatas de seu rio imaginário, condescendendo com algum sorriso aqui ou com um triste muxoxo ali; meneando a cabeça, assombrava-se do beijo que o recebera em definitivo e das dificuldades em destrançar as pernas de tão bêbado que estava em sua despedida de solteiro. Esse mesmo amigo (o do jazigo de cinzas) estava lá e ali, em plena felicidade, ainda se faziam planos, tais as falas estridentes e as gargalhadas que a caratonha de um e o olho esbugalhado do outro provocavam. Esta cumplicidade havia de acompanhar os dois até o fim, pois assim eles haviam combinado, àquela época. O mais alegre de todos era ele, mas havia os outros congregados nesta festança de um quase ex-solteiro; o cálice ainda tinha suas bordas cortantes, menor, com certeza, menor; trazia em seu bojo os vinhos mais ilustres e eles o beberam, todos, até a última gota da essência.

Suas manias se exacerbavam, era certo, como a de apertar com a mão direita a borda da toalha quando pensava assim num ato contínuo, sem nenhuma pretensão. Mais de uma vez sua companheira lhe chamara a atenção para o fato de copos serem feitos de matéria quebradiça, o que sem dúvida pertencia ao mundo penoso e palpável das mulheres práticas e certeiras em seu ofício de cuidar e reparar em tudo; a habilidade maior das mulheres é esta (e não foi mais de uma vez que ele se admirou de vê-la falando ao telefone e escrevendo algo com a outra mão sem qualquer relação com o telefonema). Pois bem, ali, à frente de um cálice cheio de vinho de cor âmbar, ele punha entre os dedos as tais dobras da textura da toalha. Dir-se-ia que nela havia mais que a tessitura de seus tempos interiores,sendo desdobrados à medida que recordava, aprofundava, remexia e apalpava seus momentos mais luminosos e tristes.

--Mais alguma coisa, senhor?

--Oh, meu caro, por ora está bem. Marquei de conversar com meu velho amigo, ele deve estar para chegar.

--Se precisar, está ao seu dispor.

A maneira de se curvar, as mesuras que fazia sempre demonstravam um apreço muito grande por sua presença ali, e já fazia muito tempo que ele ali comparecia. Admirava nele as qualidades que um dia foram as suas: A fineza no trato, a suavidade nas palavras, a calma ao saber ouvir—coisas que, definitivamente, a idade espanta junto com a virtude da paciência... Novamente, o cálice cheio de vinho, um bom vinho de sabor frutado, sabendo a carvalho e com toques de cereja, marcas de nobreza da estirpe e do preparo cuidadoso. Ao lado de sua mesa, a moça de grandes olhos lhe lembrava sua neta: Cabelos presos em gracioso coque, olhar altivo e sorriso esplendoroso, ela falava com desenvoltura sobre um tema qualquer, não importa. A graça ao fazê-lo simplesmente enfeitiçava quem a visse e ela o olhou, entre meiga e assustadiça, percebendo que seu olhar a deixava fragilizada, certamente do que não gostava quando se tratava de estar ali, àquela hora, saboreando a presença de seu companheiro de cabelos espevitados e com gel. Ela o olhou de soslaio e ela murmurou, talvez, “parece com meu avô” e seu companheiro fez um sinal para ele que o cumprimentou com um aceno, como que aprovando sua escolha e sorte. Ah, como esse mundo é grande e pleno, dizia a si mesmo, como é amplo e quantos espaços cabem dentro de todo um espaço, como este, cheio de tinidos e de vozes baixas, pontuadas aqui e ali por uma risada solta; como este mundo nos é grato, ele pensava, enquanto sorvia o gole e lembrava-se de sua neta em sua formatura, em uma aula a que ele assistira estupefato: Como, em nome de Deus, como ela falava assim tão plena de segurança, aquela que há alguns anos ainda pedia o colo da avó? Tempo, eis o segredo, a quarta dimensão de uma existência que, se pensarmos bem, é a que domina, pois que tudo não se limita a espaço; nada é linear, nem seu raciocínio—se bem que, desconfiava, talvez os vapores do vinho se lhe estivessem toldando as memórias arquivadas cuidadosamente em sua caixa de Pandora.

Olhou o relógio, esta invenção que limita o inextrincável mecanismo que move as estrelas, a ilusão criada pelos que transformaram o mundo em um amontoado de datas e eras; o mundo poderia bem passar sem elas mas, como sua esposa lhe diz, são delas que se faz o extrato de nossa existência; lá está o inexorável ponteiro dos minutos, somando segundo a segundo as horas e dias de toda uma vida, aquela que ele revê nas bordas de sua taça iluminada pela luz indireta de uma lâmpada que vem do alto.

Se ele quisesse, bem agora, poderia sair voando por ali, feito um pirilampo; voaria pelos campos de sua juventude, somaria seu brilho aos faiscantes pingos da chuva, deixaria cair no rosto as águas de seus dias passados e voltaria a viver, de novo, tudo aquilo que lhe coubera...Mas não.

--Ele está demorando demais hoje. No entanto, ele sempre demora.

Do fundo do balcão, o maitre lhe acena com a mão. Algo lhe diz que há algo de atroz no telefonema que o espera do outro lado da linha.

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