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cronicas-->Farol -- 23/10/2014 - 11:43 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Uma garrafa de vinho branco; uma fatia de queijo Parmesão. A mesa habitada de papéis. A máquina de escrever, pausada na página recém-escrita. Rabiscos, a caneta espalhada no tampo, um café meio frio no bule. Todos estes habitantes fitavam o dono das mãos agitadas, que meneava seus cabelos cinza-claros. Um olhar tristonho, olhos duros castanho-escuros; o nariz de espanhol mourisco. O zumbido intermitente denunciava um rádio velho, sintonizado nas ondas curtas. Um refluxo fazia a voz bruxuleante sair e anunciar músicas antigas, da década de cinquenta.

--Como posso explicar para você?
--Comece tentando; não precisamos nos preocupar com o tempo. Somos, agora, donos dele.

O dono da voz era um homem de meia-idade; já ostentava uma calva severa, muitas vezes a tonsura talvez lhe dava os ares de um frade franciscano. Roupas simples, embora de bom gosto.

--Bem. Eu estava dormindo, ao lado de minha esposa.
--Antes isso. Concorda?
--Ironias à parte!

O outro, suspendendo os olhos, fita o habitante do quarto e olha à volta; livros e mais livros, papéis espalhados em vários cantos. Anotações, rabiscos, uma tentativa de desenho a lápis; um pedaço de algodão chamuscado, o pedaço de carvão sobre outra mesinha onde repousava um telefone antigo, de linha cortada.

--...Bem, como ia dizendo, eu dormia ao lado de minha esposa.
--Muito bem. Prossiga.
--Então, ouvi algo.
--O quê parecia?
--Talvez...Vento. Sim, era isso mesmo, vento...Uma janela aberta, batendo no parapeito, solta dos caixilhos...

" O som vinha em sopros. Dir-se-ia que o vento batia e as ondas, as ondas do mar, batiam embaixo, como se eu estivesse num farol. Veja, nunca morei num deles! Mas as ondas, elas batiam furiosas contra o corpo do farol e lá estava eu, depois de uma noite tenebrosa, deitado ao lado de minha mulher; nós dois éramos os únicos a viver ali, naquela vastidão e ela, generosa, me acompanhava nessa triste tarefa de sinalizar o mundo com a luzl eterna. O súbito vento me fêz acordar um pouco e eis que vi..."

Agita as mãos o nosso pobre escritor; agita as mãos o pobre homem passado em anos, remóis na boca um último gosto do vinho e do parmesão e o outro levanta as sobrancelhas, estimulando o outro sem palavras--não quer cortar os fios da narrativa daquele que, assustado, o chamou na calada da noite.

"O vento agitava as madeixas de uma suave moça. Essa moça que havia no quarto. Bem, ela estava lá bem ao meu lado, olhava com seus olhos de uma cor indefinível e seus cabelos aloirados se agitavam a cada lufada de ar frio, desse que entrava pela tal janela que batia no parapeito da parede do farol que eu habitava. Ela me olhava, assim como se quisesse conversar. Eu apenas a notava, tal qual uma presença sem peso, um corpo sem sombra; ela parecia flutuar, ou melhor, suas bordas se esvaneciam, como se feitas de uma tinta aquarelada. Eu poderia dizer que jamais havia visto tão nobre figura e, ao mesmo tempo, poderia dizer que a conhecia faz muito tempo. Ela apenas deixava os cabelos ao vento. Vez em quando passava as mãos na testa, afastando alguns fios que a incomodavam. A luz baça de um luar que vinha detrás iluminava sua silhueta perfeita. Pude notar que ela caminhava, vinha em minha direção lenta e inexoravemente. Parecia querer dizer algo; eu me dispus a ouvir o que queria exprimir e pude divisar seus lábios carnudos a esboçar um som que teimava em sair. Pensei nas sereias que, quando cantam, perdem os homens que as ouvem. Pensei nos demônios que se disfarçam de lindas mulheres para perderem as almas de homens incautos. Imaginei as filhas de Poseidon, o Deus que dividia com Zeus e Hades os comandos deste mundo. E ela de pé, no abismo que a separava de mim, a um passo de me tocar. Eu quis acordar minha mulher que estava ao meu lado mas ela fêz que não. Com seus olhos, me convenceu de que isso só pioraria as coisas."

Agitado, o pobre homem agora sorvia um gole de vinho, sôfrego, respiração grave e profunda; o outro fazia que sim com a cabeça. Entendia os temores do faroleiro, até porque sua esposa morrera faz muito tempo e ele, isolado e solitário, só tivera tempo de estender as mãos e dissolver a sombra da moça no ar que a cercava, momentos antes de desfalecer e acordar agora, aqui, na cama certa, ao lado de um amigo que o acudira a tempo, no momento exato em que o canto de uma linda mulher os espicaçava a olharem, ambos, pelo parapeito de uma janela estraçalhada.

 

Lá embaixo, voejava um vulto de mulher.

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