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Contos-->Sob as Mãos de Cronos -- 07/10/2001 - 17:24 (Patricia Rosa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Tenho sentido minha cabeça zonza, a quantidade de remédios que tomo todos os dias me faz ficar em maresia a maior parte do tempo. Sento na minha cama simples e devoro os minutos de cada hora como que ingerindo um paliativo para meu sofrimento.
As mãos de Cronos já pousaram sobre meus ombros, entretanto, não são os cabelos brancos que me atormentam, mas essa solidão de ter vivido demais. Tudo se parece muito repetitivo para mim, como um filme já visto muitas vezes, nada me surpreende mais. Falta-me o desejo de conhecer, pois, tudo me parece já por demais sabido.
Alcanço o copo d’água que fica sempre no meu criado mudo, bebo um gole, antes de devolver o copo, passo a mão sobre a peça que está cheia de pó, tudo tão velho e esquecido quanto eu. Contudo, o pó que me cobre não é retirado em nenhum momento, nem depois de longos banhos, ele está impregnado em mim, um pó de tempos passados que não podem ser recuperados.
Até uns anos atrás me distraía lembrando de causos passados, da minha juventude, do meu marido, dos meus filhos. Agora tudo se tornou esparso diante de mim, talvez pela quantidade de remédios, talvez pelo gesto inquestionável da vida, que por fim nos leva tudo, até ela mesma se ir. Mas por enquanto ela ainda me faz sentir sua presença, mesmo frágil, mas ainda sentida. Vivo envolta em brumas, em parcas lembranças, em muitos devaneios que às vezes me fazem pensar que estou perdendo de vez a sanidade mental. Talvez isso fosse melhor, desligar do mundo, não sofrer, pelo simples fato de não me lembrar que existo ainda, desafiando o calendário, mesmo sem querer.
Meu marido se foi, não o vejo a muitos anos, sequer me recordo de sua fisionomia, até mesmo sua existência um dia, na minha vida, me parece às vezes fruto de uma ilusão. Fiquei com os filhos pequenos, trabalhei e consegui educá-los da melhor maneira, mas como cada um tem seu destino eles se foram, um a um, eu fui ficando, sem lhes cobrar nunca nada, não os criei para mim, mas agora sinto vontade de vê-los, saber como estão meus netos, talvez até bisnetos. Mas eles estão longe e minha cabeça está fraca demais para tentar lembrar em qual cidade cada um foi viver.
Às vezes tenho a assombrosa visão de estar caída num canto do quarto, temo ser descoberta pelas baratas antes de alguém dar falta de mim. Isso é o que me aterroriza, a solidão, a falta da gente, do ser do outro, da poesia das palavras. Viver agora é uma questão de desafiar os titãs, desafiar a medicina, desafiar a memória das pessoas.
Caminho lentamente até o banheiro, ali está tudo limpo, pelo menos disso eles cuidam, mesmo que muitas vezes, afetada pelas drogas, nem veja quem me faz essa caridade, de não me deixar sufocar pelo odor dos meus dejetos. Para falar a verdade, quase nunca vejo ninguém, ouço poucas vozes, minha boa aposentadoria me garantiu esse cárcere privado em que vivo. Minha debilidade nas pernas não me proporciona longas caminhadas, minha cabeça em maresia não me permite estar muito tempo fora do quarto, mas procuro não dar trabalho a ninguém, assim eles esquecem de mim.
Ao sair do banheiro pego um álbum sobre o baú que fiz questão de trazer comigo, minhas mãos trêmulas não têm a firmeza necessária para manter algo seguro nelas, deposito meu arsenal de lembranças forçadas sobre a cama e volto a olhar aquelas fotografias, que de tão vistas já têm pouca cor. É assim que renovo na minha mente o rosto dos meus, sei que quando fechar o álbum cada um deles se apagará rapidamente da minha mente, mas cultivo a cada dia a esperança de conseguir guardar suas imagens tempo suficiente para que me visitem nos sonhos e ali, eu possa lhes abraçar.
Ouço gemidos que ecoam no corredor, isso acontece algumas vezes, alguém que sofre declaradamente e implora por ajuda. Tenho vontade de ir até lá, mas pouca coisa poderei fazer. Sei que no andar de baixo ficam os mais pobres, os que vivem coletivamente. Quando vim para cá eu ficava muito mais tempo com eles do que com aqueles que compartilham comigo esse andar. Mas aos poucos fui ficando mais fraca e o ambiente lá embaixo, na mesma medida, foi se tornando mais e mais deprimente, a higiene foi sendo deixada ao léu e o sofrimento daquelas pessoas foi me contagiando. Desisti deles, como desisti de mim, só que ninguém percebeu.
Meus olhos em nuvens olham para a janela, procuro por algo no céu, faço uma oração silenciosa, pedindo uma heresia, mas com o coração tão coberto de esperança que talvez, dessa vez, seja ouvida. De repente uma brisa entra por essa janela, sinto um conforto enorme tomando conta de mim, me deito na cama, com esforço consigo esticar as duas pernas no leito, cruzo minhas mãos sobre o peito, respiro fundo, sinto o aroma da graça invadir o meu quarto. Sorrio, agora sinto que vou poder matar minhas saudades de casa.
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