Número do Registro de Direito Autoral:131013761404388000
Ele mexeu nela...
Ele mexeu nela como se fosse uma gaveta com objetos antigos, desconhecidos, dessas gavetonas esquecidas que dá gosto revirar. Não havia hora nem momento, cutucou-a por e-mail, por cartas eletrônicas: palavras e poemas alguns astutos e repletos de cordas sensuais para que ela mesma se enforcasse.
Essa história de se maltratar faz parte de algumas muitas mulheres por ancestralidade : já pensei que poderia ser uma tendência à maneira como resolve-se a sexualidade na infância; o mistério que nasce da repressão das avós, das mães mal resolvidas ou ausentes às convergências femininas entre elas e as filhas. Não importa agora, vamos continuar a rever o percurso da moça com esse amor unilateral, virtual e portador de deficiência.
As correspondências tinham um ar de loucura desvairada em paixão acalentada por algum tempo no anonimato : ele a conheceria pela literatura dela (de qualidade até duvidosa porém exaustiva e presente na internet) e ela não sabia quem ele era. Até que os dois encontraram-se virtualmente e ela ... sozinha na vida saindo de um amor por opção (desses amores mágicos que tornaram-se cansativos, repetitivos, cheios de fatores seguros que matam qualquer paixão) então, ela... jogou a chave da porta ao estranho para que ele entrasse, invadisse, usasse seu quarto interior como quisesse e assim a domasse como a uma fera que solta queria correr pelo mato.
Entendamos: este quarto não passou do mundo virtual.
Ele comparecia com sinais de horários quase estabelecidos, ela também. Comiam-se mentalmente e talvez, em horas de intimidade as coisas assumiam rumos conhecidos de todos nós. As camas, as paredes, os lençóis: todos eles distantes uns dos outros, como manda o mundo virtual.
Ela sabia voar entre os prédios na hora de ir ao trabalho e reconhecia-se na felicidade como mais um passageiro, aliviada das tensões de ser mãe (mesmo com filhos independentes) e solta para mandar os outros pro diabo no trabalho, caso precisasse: o mundo assumira uma cor de primavera que fazia tempos ela não experimentara.
Mas a distância e a falta do toque começaram a fazê-la pensar. O pensamento: esse bisturi autoritário que tem diversas funções- desde virar tábua de salvação em naufrágio de qualquer natureza, a estragador de prazeres no meio de uma masturbação, fez-se presente e quem sabe, hoje penso (como ela afirmou): foi o que a salvou...
O pensar, tão necessário e estruturado quando passa -se dos trinta anos, pode reverter as coisas de qualquer gaveta, fazê-la fechar, fazê-la esvaziar-se e jogar todos os mistérios no chão para descobri-los rapidamente e acabar com o romantismo de qualquer um. Ou uns.
Só que : ele também pensava, e muito. E suas mãos (as dele) através das dela atingiram seus (os dela) seios nos bicos intimidados que viraram sedentos e devoradores, e percorreram sua pele fria e quente (a dela) e a agarraram com fome de invasor sem pedir qualquer licença, levando-a a se estremecer toda no chuveiro, na cama, na cadeira, no sofá, na mente...Ele a invadiu com ar de dono de tudo sem respeitar as chaves jogadas no chão: ela mais aberta do que flor no verão, do que oceano para a terra porque não poderia ser de outra forma.
E então sumiu (ele, é claro).
Desapareceu do mundo virtual por obvia lógica pontual e porque pensar é isso: mal resolve o pensamento as questões cardíacas.
Vejam : se ele não tivesse sumido, ela o teria feito, por várias raízes que existem firmes hoje segurando-a ao mundo não virtual, e por causa do pensar, como já expliquei.
Pergunto: como dizer que o virtual não é real? Não é à toa que dizemos “realidade virtual”. Ela que o negue, se conseguir.
Mas não, ela não nega.
Na estação de metrô eu vi uma obra de arte que encaixa-se perfeitamente nesta história, ou a história encaixa-se muito bem na mensagem da obra : duas pernas de manequim feminino viradas para cima, com os pés juntos no alto, amarrados por fios de computadores, com muitos “mouses” espalhados na base, teclados em várias posições e uma frase: “eu te como com os olhos”.
Não posso saber exatamente o que ele viveu. Eu creio que ele simplesmente mexeu na gaveta, como se fosse nos lábios todos dela: os grandes, os expostos, os pequenos, os que residem embaixo e os que escondem a língua. Mexeu por crueldade, por solidão momentânea (pois depois ele contou que tinha uma amada) e também por estar vivo, por desejo, por luxúria, por atrevimento, por pensar só nele... e porque era belo e cativante como uma lua.
A questão é que existe uma coragem estranhíssima nas mulheres atualmente: ela deve ter surgido de tantas bisavós suicidas que não resistiram ao machismo e deram fim às suas histórias, mas deixaram os genes de resistência à dor, ou então porque as mulheres vacinam-se umas às outras e elas mesmas desde que começam a se comunicar, a passar as sensações na verborragia adolescente que estampa suas vozes de fêmea; conseguem criar uns anticorpos loucos por oxigênio e vida, que as tira dos ferros do desabamento.
E as salva dos (literalmente) ferros que levam dos masculinos pênis quando estes são do tipo de pênis que nada faz para dar-lhes prazer. (Esclareçamos que esses ferros que pertencem a esses machos- dos quais a personagem masculina desta história não faz parte- que pensam que as comem como estômagos, esses machos são responsáveis por anticorpos que injetam nas fêmeas sem sabê-lo, e que as fazem fortes e resistentes. Isso, hoje em dia. E se elas deixarem, e se elas se permitem através da invasão da vida em suas entranhas femininas).
Mal sabem esses ferros como são úteis, como podem ajudar sem saber e como, no fim das contas, eles mesmos é que desabam. Sim, porque dependem dos músculos que tornam-se flácidos com o tempo. Esses ferros causadores muitas vezes do desabamento das mulheres (por abandono, quase sempre) rapidamente acabam sendo compreendidos por elas como simples ferrinhos que podem ser substituídos. Mas enfim, como já disse : não é o caso da personagem masculina desta história.
Ele, ao contrário, parece sensível e perceptivo da alma (humana) mas quem sabe, nem se importa com a essência feminina (dela).
Como ela sabe-se capaz de criar com a imaginação situações loucas para ela mesma, e esta é uma forma de sobrevivência, hoje respira fundo e percorre a cidade com um prazer de tigre à caça, sem no entanto escancarar a sua carência, que somente estará estampada para aqueles que, singelamente, a percebam.
Certamente, não será no planeta virtual, porque precisará de muitas décadas para aceitar outro invasor.
Há uma questão complicada : a invasão do peito através do mundo virtual é repleta de obviedades e quando banal; torna-se insuportável. Por isso é bem importante, para compreender o final desta história, que entendamos que a nossa mulher aqui ultrapassara há muito tempo a complacência e tolerância desses viajantes virtuais, conquistadores baratos que dizem : “de onde vc é? O que faz da vida? Como vc é?” e então logo a próxima e resultante, obvia pergunta: “Como vc está vestida?”
Não : ela já ultrapassara isso há muito tempo. Isso a fazia automaticamente matar (virtualmente) o conversador.
Esse foi o problema dela. Ele, o tal sujeito re mexedor de gavetas e quartos escuros, era prazeroso no real sentido da palavra. Nunca perguntara como ela estava vestida, o que fazia da vida, de onde teclava, amava, esperava...
E então?
Como ficam os vôos matinais, os tapetes mágicos, os sonhos de inverno?
Voltou ao espaço dos dois: ela criara um monte de coisas, embora não deixando nunca que o pensamento fosse embora, tentando sempre resgatar a realidade da situação, ela deixara que a esperança de uma relação...Ôps! que merda: “ a esperança de uma relação”.... sim, essa foi a merda.
Quando na espécie humana (e isto serve tanto para os homens, quanto para as mulheres) uma esperança , tipo um sonho que ainda não nasceu, abastece os órgãos genitais a ponto de irradiá-los rapidamente, subitamente com fluxo sangüíneo esquecido e faz deles a urgência a ser resolvida, e quando então você retira-se para a intimidade e dá-se a oportunidade de explicitamente gozar a vida...esse sonho que ainda não surgiu invade as demais estruturas anatômicas loucamente, atinge o cérebro, a boca, os olhos, o estômago e as vísceras escondidas, arromba todas as possibilidades de esquecer e leva à sensação maravilhosa de estar vivo, de existir e valer a pena, de sair do inferno enferrujante da rotina e do vazio do consumo (tanto o necessário quanto o desnecessário)... então você se convence : está amando.
Dependendo da situação, você diz: paixão.
E ela, no momento em que se convenceu de que havia sido obvia, havia sido gentil demais com alguém que a seqüestrara da realidade...percebeu que matara toda possibilidade de sonho, relação, mágica, tensão. Tesão.
Ou então: esvaziou-se a mágica como por mágica, e perdeu-se o sentido do que não tinha um sentido assim, banal. Ensaiou retirada e pensou em sumir. Mas antes disso, ele sumiu.
Ainda bem.
Doloroso como tudo que é belo, e não nos pertence.
Vai uma aí? Sim, vai uma orquestra de prazer sozinha (pensou ela) escondida na noite do pensamento sem qualquer indício de lógica ou resgate. O único resgate possível na hora da morte no universo virtual, é o prazer.
Mas o prazer encarnado em terminais nervosas que percorre o esôfago, as nádegas, as pernas, a pele do colo, os seios, a cintura, a virilha...em outras referências...todas as localidades cheias de palavras obscenas que você possa imaginar, e que não as digo aqui por uma simples e única razão: elas são palavras sublimes demais, que só posso usá-las quando em íntimo acesso a dois, que me elevam ao tempo dos sentidos em sua máxima expressão, e que no caso dela... certamente, foram a salvação!
Hoje? A vacina fez seu efeito, sem efeitos colaterais. A melhor coisa. Ele? Sei lá. Deve estar à mercê da sua amada, ou com vontade de viajar. Não importa, a nossa questão inicial era ela. E como ele a ajudou, provavelmente sem saber, mesmo pendurado de sua esquisitice auto preservadora, a criar mais anticorpos
de resistência. Que no entanto não a impeçam do direito de voltar, inúmeras vezes, (de qualquer jeito que escolher) a delirar de prazer.