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Cronicas-->O Ponto -- 19/11/2013 - 18:36 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Não se pode dizer que ela fosse propriamente uma beleza pura; carregava nas entranhas e estranha mistura de sangue índio, dos brancos que invadiram as praias de sua estirpe e do mulato que trabalhara até a morte nas plantações de cana-de-açúcar. Sua mãe lhe dissera há muito anos que ela carregava em seu íntimo todas as esferas da alma, que só cabiam nela. Pois que ela aprendera a fazer galinha de Cabidela, adorava um bom vinho tinto e de quebra admirava os pratos feitos com mandioca e milho.
 
Naquele dia, o absinto do medo não a invadira ainda, pois que era quase meia-noite e ainda a sede não a invadira. Trabalhara até tarde, recebendo as voluptuosidades e odores de tantos que já nem contava mais; duro era fazer a féria do dia e ainda pagar o perfumado esbofeteador que lhe dava em cima, com cheiro de azedo no pescoço e correntes que tilintavam nos braços trabalhados pela voragem da violência fácil e pela vida de drogado que virava.
 
Depois de tanto trabalho, ela não aceitara sua carona e caminhava a pé pelas ruas. O salto fininho ecoava na madrugada que se insinuava e ela, exausta, resolveu parar por um instante num ponto de ônibus--como se precisasse de um. Era estalar um dedo que um qualquer lhe parava um carro, outro vagabundo lhe estendia um tapete na porta de um inferno, mais algum se oferecia todo prosa para que ela lhe desse o que sempre pediam. Era fácil.
 
Chega um momento na vida de uma mulher em que o fácil se torna difícil; o possível se torna distante e o provável se torna absurdo. Por quê não parar ali, sem destino ou guarida, cigarro na mão e sentar a bunda dolorida de tanto requebro para esperar o trem das duas? O bonde, como diziam os pequeninos perdidos(era como chamava os trapos de gente que suspiravam por um dinheiro fácil de trocar por algo que os levava além do infinito e próximo do Érebo). A "latazana", como dizia o chinês do restaurante da esquina do fim do mundo. 
 
Tremia o chão quando chegava um deles, gemendo como um gigante ferido, os freios à toda (quem poderia esperar alguém ali, sentada, sozinha, no meio da noite enevoada). 
 
Parou a coisa. Ela ergueu os olhos, não enxergava direito o destino. De dentro, o motorista lhe apressa o passo:
 
--A princesa vai subir?
--Para onde vai essa birosca?
 
Cobrador e motorista se olham. Incrédulos.
 
--Pelo visto, desacostumou a andar nessa birosca. Anda só de limusine, decerto.
 
Ela empina o traseiro e aceita o desafio. Afinal, já cumpriu sua missão heroica e tem as contas em dia. Ganhou seu dinheiro honestamente, merece um descanso.Ela sobe e entra no veículo. Lá atrás, farrapos se escondem. Um meio que menino dorme a sono solto, até ressona. Um velhinho olha a paisagem. O que ele faz ali? Dois moleques estão de olho nele, vai que sobra algum...E uma senhora de seus cinquenta e tantos volta para casa.
 
--Pode sentar. Vai uísque?
 
Ela olha com desprezo, ela ignora mas seu perfume se insinua na cabine; não há como escapar de seu odor após o banho. Isso que falam, que mulher perfumada tem mais beleza interior é verdade, seu moço. Tem lá sua verdade. O cobrador a olha inteira, já fazendo proposta com os olhos; o motorista arranca a máquina, orgulhoso da potência que imagina ter. 
 
Vão-se os postes iluminados, na avenida mais rica de São Paulo. Hostes de gentes acostumadas ao bem-bom enchem os bares das ruas, música alta brota de alguns cantos e mais que um carro corre desabalado, num tumtumtum sem parar, ensurdecendo quem o vê e ouve. Ela dá de ombros.
 
--É sempre assim. Eles começam correndo aqui, terminam morrendo ali ( e aponta com o queixo a esquina da Consolação).
 
Ela está sentada de frente ao cobrador. Provoca-o com o decote, com suas pernas indecentemente belas, torneadas de malhação escrupulosa. Provoca-o com seu perfume e olhares que ela desenvolveu desde os doze anos. Enche os olhos de volúpia, como faz desde que saiu de casa, envergonhada de tanta pobreza. Ele enlouquece, manda beijinhos, pega o celular e com sinais sugere um telefonema. Ela se diverte. Caras e bocas, o moço até que vale a pena, braços fortes de estivador, rosto grande e lábios carnudos de quem conhece os caminhos da loucura. Ela não se faz de rogada, de vez em quando o motorista pára para subir um passageiro. 
 
Passa um, passou outro, ela continua ali, inarredável e reluzente. Não há quem não a olhe ao entrar. Pode-se passar por tudo nessa vida, mas se há algo que nos deixa marcas é a marca do tesão da vida mas antes de tudo, de uma vida toda de tesão. Dos outros. De si mesma? Ela não sabe...
 
--Vou descer no próximo ponto.
 
Motorista e cobrador se olham. Passa um playboy de carro novo, sem direção ou noção alguma. Um monte de motocicletas lhe corre atrás. Um menino na rua aponta uma coisa. Ouve-se um baque. A moça olha a cilada, sente um calor na barriga. Era dela que viera o baque? Onde está a fantasia que ela vestia? Cadê o moço de braços fortes? Ela não sorria e provocava, ainda agora?
 
Motorista e cobrador se olham.
 
Ela ainda sorri quando dorme. Seu ponto passou.
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