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Artigos-->O Realismo nas Relações Internacionais - Caracterização -- 04/09/2003 - 00:31 (Carlos Frederico Pereira da Silva Gama) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Alguns termos assumem caráter marcadamente polêmico, dado a sua relevância no desenvolvimento de uma disciplina. Assim temos “Estado” na Ciência Política, “Valor” na Economia etc. No caso das Relações Internacionais, abundam diferentes visões sobre no que consistiria o chamado “Realismo”. Antes que seja possível determinar suas características básicas e analisar as criticas que lhe foram feitas, vale ressaltar como este foi visto ao longo do desenvolvimento da disciplina das Relações Internacionais.



Para Michael Kahler e Chris Brown, o Realismo foi uma das teorias partícipes de alguns dos “grandes debates fundadores” da disciplina das Relações Internacionais (KHALER, 1997: p.21) (BROWN, 1997: p.26). Para Fred Halliday, o Realismo tornou-se a “abordagem predominante na disciplina no pós-Segunda Guerra Mundial, senão a única” (HALLIDAY, 1999: p. 24). Para Eric Carr, o Realismo seria uma das duas “dimensões incomensuráveis” constitutivas da Política, sendo oposto à Utopia (CARR, 1964: p.94). Para muitos autores, como Michael Banks, adeptos dos conceitos lançados por Thomas Kuhn, o Realismo seria um paradigma (BANKS, 1985: p.13) englobando diversas teorias. Joseph Grieco considera, por seu turno, que o Realismo seja um “programa de pesquisa” no sentido que esse termo assume na obra de Imre Lakatos (Para maiores detalhes vide LAKATOS, Imre & MUSGRAVE, Alan (eds.), 1979). Autores críticos dos trabalhos tidos como realistas consideram que, além de suas aspirações como instrumento científico, o Realismo seja um poderoso instrumento de legitimação de uma determinada visão de mundo e de sociedade, portanto uma ideologia.



Para os fins desse ensaio, assumo a perspectiva lakatiana de Grieco – do Realismo como sendo um programa de pesquisa, dotado, portanto, de um “núcleo duro” ou conjunto de princípios centrais, que se pretendem irrefutáveis, e de um “cinturão de proteção”, ou conjunto de hipóteses auxiliares destinadas a manter a capacidade explicativa do programa de pesquisa, salvaguardando o “núcleo duro” quando este for questionado ao longo do tempo.



“Todos os programas de pesquisa científica podem ser caracterizados pelo ‘núcleo’. A heurística negativa do programa nos proíbe dirigir o ‘modus tollens’ para esse núcleo . Ao invés disso, precisamos utilizar nosso engenho para articular ou mesmo inventar hipóteses auxiliares , que formam um cinto de proteção em torno do núcleo, e precisamos redirigir o “modus tollens” para elas. É este cinto de proteção de hipóteses auxiliares que tem de suportar o impacto dos testes e ir se ajustando e reajustando, ou mesmo ser completamente substituído, para defender o núcleo assim fortalecido. O programa será bem-sucedido se tudo isso conduzir a uma transferência progressiva de problemas, porém mal sucedido se conduzir a uma transferência degenerativa de problemas” (LAKATOS, 1979: p.163).

A tentativa de determinar os princípios centrais do Realismo não é recente tampouco despida de controvérsia. Tanto críticos do Realismo como Robert Keohane quanto defensores seus como o já mencionado Grieco buscaram sistematizar os princípios desse programa de pesquisa, com resultados diversos. Tarefa nada trivial, dada a manifesta vastidão de obras que se filiam (ou pretendem faze-lo) ao Realismo ao longo dos tempos, de Tucídides a John Mearsheimer. Sem deixar de lado as análises já realizadas, proporei um esquema alternativo de “núcleo duro”, o primeiro objetivo desse ensaio. Menções esparsas serão feitas a algumas das muitas hipóteses auxiliares que foram agregadas ao longo dos anos. Em seguida, serão apresentadas algumas das críticas sofridas pelo Realismo ao longo da trajetória da disciplina das Relações Internacionais.



O Realismo tem como primeiro elemento de seu “núcleo duro” uma suposição ontológica. Esta consiste em afirmar que a “realidade” ou conjunto de fenômenos que serão objeto de investigação desse programa de pesquisa apresenta acentuado caráter CONFLITIVO, não modificado ao longo da História humana. A recorrência do fenômeno da Guerra, não importando o quão diferentes sejam as partes nela envolvidas, por exemplo, seria uma confirmação da acuidade dessa suposição ontológica, para os autores realistas.



“Muitos estudiosos consideram a Teoria Realista um instrumento de análise relevante para o estudo da Política Mundial. Isso ocorre devido à Teoria Realista responder as questões-chave das Relações Internacionais: quais são as causas do conflito e da guerra entre as nações, e quais são as condições para a cooperação e para a paz entre elas?” (GRIECO, 1997: pág. 163).



Desta forma, o Realismo propõe-se a explicar por quê o mundo (ou a “realidade internacional”) é caracterizado acima de tudo pelo conflito, em detrimento, por exemplo, da harmonia ou cooperação. Como decorrência dessa proposição inicial, os autores realistas se propõem a explicar “o mundo como ele é, e sempre será” e não como este deveria ser. Esse “corte de realidade” efetivado pelo programa de pesquisa é o mais criticado dos seus elementos fundamentais, gerando críticas que caracterizam o Realismo como sendo “estático” e “conservador”):



"A vida como é, está tão distante da vida como deveria ser, que um homem que desiste do que está feito, em prol do que deveria fazer, engendra a sua ruína mais do que a preservação". (MAQUIAVEL, 1977: p.115);

“A despeito de acidentes e turbulências, a política internacional é o reino das continuidades” (WALTZ, 1983: p.65).



E como seria este mundo, portanto? Quais seriam suas unidades básicas? O que seria o “elemento significante” capaz de diferenciar as Relações Internacionais de outras disciplinas? Os Realistas, ao definirem quais são os agentes principais ou privilegiados das Relações Internacionais, conferem primazia às coletividades politicamente organizadas, ou seja, os estados nacionais soberanos – “...o Estado nação…é o ponto de referência final da Política Externa contemporânea” (MORGENTHAU, 1986: p.20).



Isso não implica que os homens sejam puramente descartados como elementos desprovidos de importância nesse esquema analítico. Muito antes pelo contrário. Ainda que não sejam considerados os principais agentes das Relações Internacionais (ou sequer atores, para muitos autores), o Realismo construiu suas análises sobre os Estados como agentes privilegiados das Relações Internacionais – e, portanto, suas interações e lógica de ação – tomando por base análises sobre a natureza dos homens, como estes se organizam politicamente e em que contexto se dá esse processo. Em outras palavras: o Realismo explica a realidade internacional a partir dos estados, fazendo uma analogia feita entre estes e os seres humanos (analogia que Carlos Escudé, em tom crítico acerca do Realismo, denominou uma “falácia antropomórfica”). Os seres humanos são, pois, o “pano de fundo” contra o qual se constrói o programa de pesquisa realista.



“O Realismo Político crê que a Política, como a Sociedade em geral, é governada por leis objetivas, que têm suas raízes na natureza humana” (MORGENTHAU, 1986: p.11).



Autores considerados precursores do Realismo, como Tucídides, Maquiavel e Hobbes, explicaram as relações políticas entre os homens e a própria constituição do estado ou das comunidades políticas organizadas de suas épocas tomando como ponto de partida afirmações sobre a “natureza humana”, as tendências inatas que levariam os homens a se relacionar como (supostamente) sempre teriam feito e fariam, no futuro. Tucídides constrói seu argumento afirmando que os homens emulam o comportamento dos deuses, portanto encontrando um fundamento “transcendental” para o comportamento humano, governado pelos vetores da glória, do medo e do interesse – esse caráter transcendental poderia explicar a continuidade do padrão de relacionamento humano em todos os tempos e lugares, pois (Para maiores detalhes, vide TUCÍDIDES, 1993). Maquiavel afirma que, num ambiente hostil e constantemente ameaçado em sua sobrevivência, todo estado (através de seu governante, o Príncipe) deve buscar os meios adequados para sobreviver, não importando quão “vis” sejam os cursos de ação adotados, uma vez que a Moral é produto do Poder e nada é mais caro ao Poder do que a sobrevivência do próprio estado (MAQUIAVEL, op.cit: p.73).



Hobbes (Para maiores detalhes vide HOBBES, 2000), de forma mais sistemática e explícita do que Maquiavel, por sua vez, vê os homens como seres naturalmente desejosos e pouco sociáveis, portanto estes entram em constante conflito, conflito este que coloca face-a-face com cada indivíduo o imperativo da sobrevivência (e, na ausência de um poder constituído capaz de garantir os meios de autopreservação a cada indivíduo – portanto, num ambiente anárquico – os indivíduos decidem em caráter privado como agirão para promover sua autopreservação, adequando meios para este fim). Hobbes afirma que o contexto da “guerra de todos contra todos” pode ser superado, entretanto, caso os homens “abram mão do juízo privado acerca dos meios de promover sua autopreservação” em prol de uma entidade por eles criada, o Leviatã, dita soberana. Nesse momento ocorre a passagem das relações humanas, de um contexto anárquico para um hierárquico, mudando sobremaneira o caráter das relações entre os homens, tornadas extremamente menos conflitivas e fundando um poder socialmente legítimo (e, pois, dito soberano – superior a qualquer outro no seio daquela coletividade). O “contrato social”, portanto, implica a passagem da política feita num ambiente de anarquia para a política feita num ambiente de hierarquia e explica, pois, a possibilidade da superação do conflito entre os homens.



Hobbes, no entanto, caracteriza a relação entre as coletividades (estados) como sendo feita na ausência de uma autoridade superior a estes, ou seja, vigeria uma proverbial “guerra de todos contra todos” no plano internacional, na ausência de um “Leviatã universal”. Isso se dá, em Hobbes, uma vez que, ao contrário dos homens, os estados não são “iguais ou semelhantes entre si em potencialidades”, ou seja, nem todos os estados constituem uma ameaça – haveria estados mais e menos “poderosos”, criando uma dinâmica distinta da dos homens, que não necessariamente deságua na “guerra de todos contra todos”, mas numa acomodação dos “grandes” poderes uns aos outros, englobando nessa dinâmica, em situação de sujeição, os “pequenos” poderes. Hobbes, no entanto, não afirma ser impossível a modificação desse cenário no longo prazo, no que difere dos autores realistas seus seguidores. A construção de um “Leviatã universal”, se é difícil, não é tarefa fadada ao fracasso num horizonte futuro distante. O conflito entre estados num ambiente anárquico pode ser eliminado num horizonte temporal dilatado.



O Realismo recupera quase que por completo o “edifício político hobbesiano”, bem como alguns dos argumentos de Tucídides e Maquiavel são incorporados a este edifício, conformando a “analogia antropomórfica” já mencionada. Os estados, à semelhança dos homens, são tidos como agentes “desejosos” (Morgenthau chega a dizer “perversos”) e naturalmente pouco sociáveis, governados por “imperativos” ligados à sua autopreservação. Na ausência de uma autoridade superior a eles (num ambiente, pois, anárquico), os estados só podem contar consigo mesmos para promover sua autopreservação e (na condição de “Leviatãs) a dos seus cidadãos.



“Toda coletividade política quer sobreviver. Governantes e súditos desejam manter sua coletividade por todos os séculos, de qualquer modo” (Aron, 1986: p. 102).



“Todos os estados compartilham os objetivos mínimos de preservação de sua integridade territorial e política” (KRASNER apud GRIECO, op.cit: p.166)



Os estados julgam, pois, privadamente acerca dos meios a serem empregados para se preservarem e de quais ações seriam apropriadas para este fim – como Maquiavel, não importando o quão “perversas” sejam tais ações.



“...os estados não admitem árbitro, tribunal ou lei superiores à sua vontade; em conseqüência, devem sua existência e segurança a si próprios, e a seus aliados” (Aron, op.cit, p. 147).



Os estados, pois, são (além de amorais) agentes racionais, que buscam maximizar sua autopreservação (daí deriva, em inglês, o popular termo realista self-help) através dos meios que julgam adequados. “Auto-ajuda (self-help) é necessariamente o princípio de ação num cenário anárquico” (WALTZ, op.cit. p.111). O relacionamento dos estados, num ambiente anárquico, é, portanto, caracterizado pelo conflitivo (nas palavras de Hobbes, a Guerra não implica o uso constante da força, mas “um prolongado intervalo de tempo em que a possibilidade ou o desejo do uso desta é constante”). O tipo de ação racional característico dos estados, para o Realismo, foi abordado por Kant em sua obra “Crítica da Razão Pura”, correspondendo a um imperativo hipotético (em outras palavras, o agente adequa meios a fins), em contraposição a um imperativo dito categórico (o agente agiria de acordo com uma norma moral capaz de ser universalizável, colocando-se, pois “no lugar do outro agente” em toda interação) – para Kant o Homem seria portador de ambas as formas de raciocínio, num esquema analítico que se afasta, pois, do Realismo.



Se os estados buscam maximizar sua autopreservação, temos que a realidade internacional não é somente conflitiva – ela é igualmente competitiva. Os estados se lançam na busca pelos meios capazes de prover sua autopreservação. Meios, estes, que variaram de autor para autor realista. Alguns dizem que o principal meio que buscam os estados é o “poder”. Outros favorecem o conceito de “segurança”. Outros, ainda, adotam ambos, sendo o poder um meio intermediário para gerar segurança e, portanto, garantir a autopreservação:



“...qualquer que seja o objetivo último da Política Internacional, poder é o objetivo imediato” (MORGENTHAU, op.cit.: pág.3);

“Apenas se a autopreservação está garantida, podem os estados buscar outros objetivos como tranqüilidade, lucro e poder” (WALTZ, 1983:p.126);

“...a maioria dos estados buscará o nível mínimo de poder que lhes seja suficiente para garantir sua segurança e autopreservação” (GRIECO, op.cit:p.167);

“…o motivo mais básico que move os estados é a autopreservação...Estados no sistema internacional buscam maximizar sua posição relativa em termos de poder em relação a outros estados” (MEARSHEIMER apud GRIECO, op.cit: p.187).



A competição entre os estados no plano internacional não pressupõe nem a inexistência de outros agentes, tampouco que as interações entre os estados sejam isonômicas. Sempre houve outros agentes envolvidos no “jogo internacional”, no entanto estes não assumem, para os Realistas, a mesma importância das coletividades.



“O comportamento de outros atores, incluindo corporações multinacionais e organizações internacionais, é condicionado e delimitado pelas decisões e pelo poder dos estados” (KRASNER apud GRIECO, op.cit: p.164).

“Os estados determinam os termos através dos quais eles próprios, bem como os agentes não-estatais, encenam seus dramas ou levam adiante seus negócios diários” (WALTZ, op.cit, p.94).



Da mesma forma, os estados e não interagem entre si em pé de igualdade (retomando a tese hobbesiana de que haveria extrema desigualdade de dotação entre os estados, capaz de tornar menos provável o estabelecimento do cenário de guerra de todos contra todos e a conseqüente criação de um “Leviatã Universal”). Há uma marcantemente desigual distribuição dos recursos no “plano internacional”, sendo os estados e coletividades, pois, mais ou menos dotados, grandes e pequenos poderes, os últimos se “adequando” aos primeiros – daí a popularidade das teses relativas ao conceito de Balança de Poder entre os realistas (Digna de nota nesse sentido é a análise sobre o tema efetivada em WOLFERS, 1962). Daí a consideração de que o Realismo é um programa de pesquisa marcadamente elitista – suas análises privilegiam os estados mais dotados e os menos dotados são explicados a partir dos primeiros.



“A estrutura dos sistemas internacionais é sempre oligopolística. Os atores principais determinam, em cada época, como deve ser o sistema, muito mais do que são determinados por ele” (Aron, op.cit., p. 121);

“Todo sistema de auto-ajuda (self-help) é construído nos termos das principais unidades do sistema” (WALTZ, op.cit. p. 72).



Os Realistas negam a possibilidade de que algum dia se estabeleça o fim dos conflitos entre os estados, com a criação de um “poder mundial” ou alguma forma de hierarquia, ou pelo menos desconfiam grandemente desta possibilidade, reiterando a inexorável “realidade da anarquia" no plano internacional. Nesse sentido, ecoam menos as considerações de Hobbes sobre a desigualdade de potencialidades entre os estados do que o argumento presente na obra de Tucídides acerca do caráter imutável, perene, das relações entre as coletividades que os homens criam (sem, no entanto, afirmar a existência de um fundamento transcendental para esta consideração). A “apropriação seletiva” por parte dos realistas da vasta obra de autores como Hobbes, Maquiavel e Tucídides nos faz pensar que, mesmo estes podendo ser considerados sem sombra de dúvida autores “precursores” do Realismo, não há como não atentar para o fato de que suas obras superam os limites desse programa de pesquisa. Daí a dificuldade, nos afirma Martin Wight, de “classificar autores como esses” numa única tradição de pensamento.



A “analogia antropomórfica” operada pelo Realismo, como visto no parágrafo anterior, alia-se à “realidade da anarquia” na caracterização ontológica das Relações Internacionais como o reino do perene, inexorável conflito entre os estados nacionais soberanos, estes buscando maximizar sua autopreservação. “O caráter anárquico da política internacional é responsável pela marcadamente repetida vida internacional ao longo dos séculos” (WALTZ, op.cit., p.66). É notável o fato de que muitos autores atribuíram à própria anarquia a explicação do caráter conflitivo das Relações Internacionais. Kenneth Waltz e os autores do dito Realismo Estrutural, por exemplo, derivam do caráter anárquico do sistema internacional toda a lógica de interação, conflitiva e competitiva, dos agentes dessa “realidade”. Nesse sentido, a anarquia seria mais relevante do que a natureza desses agentes. No entanto, nem mesmo esses autores conseguiram se desvencilhar do emprego da “analogia antropomórfica” na caracterização dos principais agentes das Relações Internacionais, os estados. Estes continuaram a ser tidos como entidades maximizadoras de sua autopreservação, à semelhança do “homem hobbesiano” (e Waltz ainda agrega outra referência ao fazer analogia explícita entre os estados e o “homem econômico” da teoria econômica de Adam Smith).



Ainda é digno de consideração o fato de que autores decididamente não-realistas, como Grotius e Kant, conseguiram articular um cenário internacional em que há presença do elemento anárquico, mas o qual não é necessariamente marcado pelo conflito. Estes autores propõem versões diversas da “analogia antropomórfica”, partindo de diferentes caracterizações da “natureza humana”, chegando a conclusões diversas sobre a influência da anarquia sobre o caráter conflitivo da realidade. Grotius, recuperando o conceito aristotélico do “zoon polítikon” e o conceito aquiniano do “homem social” (BULL 1966), afirma que a cooperação social e valores comuns podem subsistir mesmo num ambiente anárquico (argumento recuperado por autores como Martin Wight e Hedley Bull, motivando a criação da chamada “Escola Inglesa das Relações Internacionais”). Kant afirma, por seu turno, que uma vez que os homens “amadureçam” sua razão ao longo de sua trajetória histórica (substituindo o uso do imperativo hipotético pelo imperativo categórico), é possível prever o fim dos conflitos entre eles, ainda que não se substitua necessariamente a anarquia internacional por uma ordem hierárquica. A anarquia, pois, não implica necessariamente o conflito. Nesse sentido, torna-se necessário considerar como elementos basilares do programa de pesquisa Realista tanto a “analogia antropomórfica” a partir da qual os estados são caracterizados quanto à “realidade da anarquia” que faz com que os estados tendam ao conflito.



Como último elemento pertencente ao “núcleo duro” do programa de pesquisa Realista, percebe-se que a analogia entre os homens e as coletividades politicamente organizadas faz com que as últimas passem a ser estudadas como “entidades monolíticas”, distintas dos respectivos meios sociais, políticos e econômicos nos quais surgem e dos quais retiram recursos humanos e materiais para continuarem a existir. Em suma, os estados e coletividades seriam entidades autônomas frente a seus respectivos “cenários domésticos”, capazes, portanto, de tomar decisões de forma autônoma, fundadas na maximização de sua autopreservação, ainda que esta prejudique interesses de grupos existentes no interior do estado.



“...(os estados) têm suficiente autonomia frente às suas sociedades nacionais para reconhecer e buscar os interesses da nação como um todo, e não somente aquelas de grupos poderosos no interior da sociedade, e eles podem de fato estabelecer objetivos e estratégias que sejam contrário às preferências de importantes setores da sociedade” (GRIECO, op.cit. p. 166).



É esse último elemento – a autonomia do Estado – que separa os estudos de Política Externa e autores como Edward Carr do programa de pesquisa realista. Os primeiros buscam analisar como as decisões do estado são motivadas/influenciadas por elementos “internos”. Carr, por sua vez, não obstante recuperar muitos dos argumentos de Maquiavel e Hobbes em sua obra “The 20 Years Crisis”, considera haver uma aguda continuidade existente entre as esferas interna e externa dos estados, bem como o elemento central de sua obra consiste na consideração da Política como composta por dimensões (irreconciliáveis) de Utopia quanto de Realismo, sendo ambas as perspectivas tomadas isoladamente incapazes de explicar completamente a realidade (CARR, op.cit: p.95).



Enfim, podemos sumarizar o que entendo por “núcleo duro” do programa de pesquisa realista – tarefa de suma importância, tendo em vista organizar as críticas ao mesmo que serão apresentadas em seguida. Segue abaixo tal sumarização:



“NÚCLEO DURO” DO PROGRAMA DE PESQUISA REALISTA – UMA PROPOSTA



1) Suposição ontológica: caráter conflitivo da realidade, atemporal, universal;

2) Definição dos agentes privilegiados: estados nacionais soberanos;

3) Caracterização dos agentes privilegiados: “analogia antropomórfica”



3.1 Estados são, como os homens, entes racionais que maximizam sua autopreservação – comportamento de self-help

3.2 Estados são autônomos frente a seu “âmbito interno”, ou seja, agem e fazem estratégias sem serem coagidos por suas sociedades;



4) Definição do ambiente: anarquia (ausência de um poder superior ao dos estados)

5) Caracterização do ambiente: competição entre os estados, cujos termos são definidos pelos estados mais “dotados”, sendo os demais explicados a partir dos primeiros (bem como agentes não-estatais)



O esquema que propus difere do esquema, por exemplo, de Grieco, que reproduzo abaixo. Não creio que haja espaço para gradações ou considerações acerca de classificações “melhores” ou “piores”. Minha proposta pretende mostrar como os elementos do “núcleo duro” estão relacionados entre si, além do fato dele se estruturar segundo uma “lógica de derivação”, fazendo todos os elementos remontarem a uma suposição ontológica primordial. Diferentes abordagens têm diferentes contribuições para o trabalho comum de busca pelo conhecimento (diriam os autores pluralistas):



“NÚCLEO DURO” DO PROGRAMA DE PESQUISA REALISTA – GRIECO



1) Suposição da centralidade dos estados;

2) Suposição da racionalidade dos estados – os Estados também são atores unitários e autônomos, ou seja, são suficientemente autônomos com relação às suas sociedades nacionais para reconhecer e buscar o interesse da nação como um todo, e não somente o de grupos particulares;

3) Suposição da anarquia – os objetivos e estratégias dos Estados são moldados pelo contexto anárquico (GRIECO, op.cit: p.164-166).



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