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Artigos-->ADEUS ÀS ARMAS, MOVIMENTOS TECTÔNICOS NA ORDEM INTERNACIONAL -- 02/09/2003 - 01:36 (Carlos Frederico Pereira da Silva Gama) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


No início do século XX, o cientista alemão Alfred Wegener foi tido como louco por afirmar que, um dia, todos os continentes haviam sido um só. Sua teoria da "deriva continental", hoje uma considerada uma das descobertas científicas de maior relevo jamais havidas, ainda que ancorada em evidências climáticas, arqueológicas e geológicas, foi alvo de descrença e zombaria geral quando surgida, nos idos de 1900. Fugia à capacidade de compreensão do "homem comum" e era de difícil aceitação pela comunidade científica pelo simples fato de ser uma teoria ancorada em evidências bastante "sutis", construídas lentamente ao longo de milhões de anos (os chamados "movimentos das placas tectônicas") e de difícil auferição. A "sutileza" das evidências (somente atenuadas meio século depois) era um complicador tremendo, tornando-a uma teoria menos "palatável", por exemplo, do que as teorias de Darwin na Biologia, que podiam contar com diferenças anatômicas marcantes para explicar processos que levaram milhões de anos para ter forma final (e, por isso mesmo, mais rapidamente popularizadas dentro e fora da Academia).



Utilizarei aqui a metáfora do "movimento das placas tectônicas" para caracterizar um momento que julgo peculiar no campo das Relações Internacionais, talvez mesmo inédito: o desenrolar da "questão iraquiana". Pela primeira vez em muito tempo (quiçá a primeira jamais vista) o agente mais dotado de "recursos de poder" no sistema (leia-se o mais "poderoso") teve sua iniciativa de ação – ainda que não impedida – refreada pela ação das instituições internacionais, casada com a relutância de outros agentes importantes, ainda que menos dotados de recursos. Falo, obviamente, dos constrangimentos políticos, legais e (mesmo) morais que vêm sendo progressivamente impostos aos Estados Unidos, que adiaram o tantas vezes propagandeado ataque ao Iraque de Saddam Hussein. Não creio que possamos mensurar com alguma precisão os desdobramentos futuros dessa fato, nem sequer talvez o possamos no curto prazo. Mas pode-se pensar que esse evento informe um cenário futuro qualitativamente diferente do atual, que descrevo aqui, à semelhança de um "tipo ideal" weberiano e não sem certo grau de reducionismo, como um cenário de "Adeus às Armas" - melhor entendido como resultado de progressivo abandono do recurso à força armada como meio de solução de controvérsias, a ponto deste último eivar-se de imensa inadequação. Digo: "PODE-SE PENSAR" para deixar claro que atitude contrária seja da mesma forma plausível e, imagino, muito mais freqüente. Vejamos as evidências que possam manifestar a idéia do "Adeus às Armas" e, senão garantir para esta um futuro auspicioso como as de Wegener, ao menos escapar do lugar-comum de muitos analistas, tradicionais repetidores de "mantras" que podem já não refletir os acontecimentos da vida internacional.



"O que causou a guerra foi o crescimento do poder de Atenas e o medo que este suscitou em Esparta". Há 2500 anos, assim caracterizava Tucídides o irromper da célebre Guerra do Peloponeso, que opôs a Liga de Delos (capineada por Atenas) e a Liga do Peloponeso (liderada por Esparta), marcando o início do ocaso da Grécia como entidade política autônoma. A despeito de seu caráter algo reducionista, a análise do grande historiador grego tornou-se referência no campo das Relações Internacionais - a ponto de Hans Morgenthau tê-la considerado em sua obra clássica "Politics Among Nations" como o sumário mais acurado do que seria o chamado Realismo Político. Retomando (novamente) Hobbes, a frase de Tucídides contém um claro exemplo do que seja uma "ação autoconservativa" motivada pelo "juízo privado" de um agente num contexto de ausência de uma instância superior que seja detentora do "monopólio do uso legítimo da força armada" (novamente, loas a Max Weber). Contexto, aliás, oposto ao verificado no plano interno, dada a presença do "Leviatã" estatal que faz valer sua Lei, gerando ordem no mais das vezes inconteste. Dessa "constatação" derivou outro dos mantras do Realismo Político - a tão propalada divisão qualitativa entre a Política no âmbito doméstico e no plano internacional. No entanto...



2500 anos implicaram alguma mudança. As barreiras entre Política interna e externa foram progressivamente rompidas nas duas "frentes". No plano interno, os governos e instituições correlatas tornaram-se gradativamente mais "accoutable" e "responsible" perante o conjunto dos cidadãos e os grupos de pressão (vide a "poliarquia" de Robert Dahl), passando estes últimos, como decorrência de lutas políticas seculares, a exercer crescente influencia sobre os rumos das Políticas Externas. Ao mesmo tempo, no plano externo, a emergência de "temas globais" cuja solução via ação individual dos Estados soberanos mostrou-se inatingível motivou, além da cooperação cada vez maior entre os estados, a emergência de outros agentes não-soberanos, com "capilaridade" e autonomia suficientes para interferir nas Políticas interna e externa dos estados e influir crescentemente nos acontecimentos da "vida internacional". Tais fatos colaboraram para que, no plano interno, guerras fossem consideradas "fardos indesejáveis" pelos cidadãos - tanto moralmente como economicamente, enquanto que, no plano externo, tornou os governos mais sensíveis tanto em relação à opinião pública (certamente, mas não exclusivamente, tendo em vista propósitos eleitorais) quanto em relação ao "ativismo multinacional" das ONGs. A existência, ainda, de uma "blindagem" institucional internacional (vide edições 12 e 13) conferiu duplo caráter de "ultimo recurso" à guerra - último legalmente aceito e último no sentido de envolver (diversos) custos consideráveis para os governos envolvidos. E isso a despeito da inexistência de um "Leviatã" internacional. Não releguemos Tucídides e Morgenthau à condição de artefatos arcaicos e anacrônicos, contanto peculiares, de algum museu de História - mas matizemos com acuidade, certamente, suas análises.



Tratemos, em seguida, da própria "blindagem" - as Organizações Internacionais. Nas análises da "questão iraquiana", destaque foi dado, por vezes, aos preparativos militares dos Estados Unidos e Reino Unido; ao relacionamento dos citados eventos com a "Guerra ao Terrorismo" deflagrada depois de 11 de Setembro; à posição de diversos países sobre a "questão". Derivando dessa última, tivemos escassas, breves, e quase sempre relegadas a papel secundário, menções ao papel das Organizações Internacionais no trato da mesma. Poderíamos resumi-las numa frase: elas caminham para o abismo - seja ele da irrelevância ou inoperância - conduzidas pelo elevado grau de distensão verificado entre seus membros, por exemplo, no trato da "questão iraquiana". Seria esta uma afirmação acurada e, igualmente, condizente com o papel das Organizações Internacionais no sistema internacional?



Gostaria de abordar alguns pontos que parecem indicativos de quão equivocados são os diagnósticos da "irrelevância" e da "inoperância" que pairariam sobre as Organizações Internacionais. Inicialmente, acusou-se a ONU de ser "power-blind", no sentido de "ingenuamente" ignorar ou se contrapor aos interesses do mais poderoso de seus estados membros, o que implicaria na virtual irrelevância da organização, dado que esta seria sumamente inadequada, "peça estranha" ao "xadrez" da Política Internacional. Tomemos, em seguida, as primeiras linhas da Carta das Nações Unidas: "nós, os povos das Nações Unidas...decidimos criar esta organização para salvaguardar as gerações futuras do flagelo da guerra". É sabido, ainda, que o "status" de agente internacional conferido às Organizações Internacionais está umbilicalmente relacionado com as funções que estas exercem. Acórdão da Corte Internacional de Justiça datado de 1948 (referente ao caso de "Reparações por perdas sofridas pelas Nações Unidas") deu forma final ao conceito de que as Organizações Internacionais (ONU inclusa) possuem personalidade jurídica internacional distinta de seus estados membros e oponível a terceiros estados e agentes, não-membros - quando no exercício de suas funções precípuas. Daí a afirmação de que as Organizações Internacionais possuem "personalidade jurídica funcional". Creio que, desse modo, dificilmente poder-se-ia imaginar um cenário no qual a ONU (ou seus membros, ou a maioria destes presentes no seu Conselho de Segurança) referendasse o uso da força armada como solução outra que não fosse a última cabível, buscando antes esgotar todos os meios não-bélicos e valorizar seus próprios esforços em andamento. E, fazendo isso, a organização não age imbuída de "ingenuidade" ou de ignorância do seu papel no sistema internacional - muito pelo contrário, age no marco de uma "lógica de adequação", buscando acomodar as disputas interestatais da forma que lhe é cabida. Nesse sentido, não há porque temer ou predizer a "irrelevância" da ONU e outras organizações internacionais.



Falemos, em seguida, da distensão verificada entre os membros de organizações como a ONU, a OTAN e a União Européia, os quais lançaram, para muitos, a sombra da "inoperância" sobre as mesmas. Em primeiro lugar, a afirmação de que divergências impedem que uma organização "cumpra seu dever" (palavras de Colin Powell) pressupõe expectativa de um dever a ser cumprido. Quanto à ONU, a frase de Powell pressupõe que a mesma autorize uma intervenção anglo-americana no Iraque, a despeito da ausência de provas materiais capazes de motivar tais decisões e igualmente a despeito do andamento dos trabalhos de inspeção internacional naquele país. Como afirmei no parágrafo anterior, dificilmente uma tal afirmativa poderia ser condizente com a própria razão de ser da ONU. Assim, podemos perceber o equívoco articulado na fala de Powell e reverberado pelos britânicos, quando Tony Blair e Jack Straw (mais diretos que Powell) afirmaram que "ou a ONU age ou padecerá de inação e irrelevância". Quanto à OTAN, deve-se inquirir as razões do veto franco-germano-belga ao pedido turco de auxílio preventivo de caráter defensivo. Possivelmente os mesmos motivos que "racharam" o bloco europeu quanto à questão. As razões tanto futuras quanto presentes. Os proverbiais "líderes" da União Européia (França e Alemanha) não têm muito o que ganhar, tanto no curto quanto no longo prazos, prestando "vassalagem" à iniciativa belicosa dos "falcões" de Washington. Num momento em que a unificação européia defronta-se com uma série de encruzilhadas cruciais - dentre elas, a criação de um exército europeu permanente, o que levaria a um inevitável afastamento das posições de Washington e da própria OTAN - a (cara) participação européia num ataque ao Iraque, em tudo desinteressante para os europeus, somente reafirmaria o descrédito na idéia de uma Europa capaz de se defender prescindindo dos ditames e do auxílio estadunidenses. Fazendo, pois, oposição à guerra, Alemanha, França (juntamente com a Bélgica, país sede de muitos dos órgãos diretamente envolvidos no processo de unificação) fortalecem, por um lado, o processo de unificação européia (por sua vez, este reforça o relevo desses países centrais, em detrimento de outras nações como a Itália e a Espanha, talvez por isso partidárias cada vez mais entusiastas dos propósitos de George W. Bush); por outro lado, reforçam o trabalho da ONU e dos inspetores internacionais trabalhando no Iraque. Não agem, portanto, no sentido de "esvaziar" a eficiência das organizações internacionais. Caso peculiar é o da OTAN. Esta organização, "à deriva" desde o colapso do bloco soviético, anseia desesperadamente por algo que justifique sua subsistência (ameaçada, mais que nunca, pela idéia de um exército europeu permanente). Uma vez esvaecido o apoio europeu aos Estados Unidos, marcante em intervenções "humanitárias" como em Kosovo em 1999, a "guerra contra o Terrorismo" tornou-se a pedra de salvação da Aliança Atlântica. A distensão verificada no seio da OTAN, assim, não é prova da falência das organizações internacionais ou de sua inoperância, muito pelo contrário - reflete com acuidade um contexto no qual uma organização internacional perde a razão de existir, por ter cumprido seus objetivos iniciais, bem ou mal (o Pacto de Varsóvia já pertence à História) e também expressa um momento de construção de novos artefatos institucionais, mais adequados à contemporânea "vida internacional". A situação da OTAN é mais bem descrita como uma tentativa dos Estados Unidos (e Reino Unido) injetarem oxigênio num organismo já muito debilitado, artificialmente, dificilmente podendo ser tida como caso típico.



A análise dos parágrafos pregressos indica que, cada vez mais, interpõe-se entre os Estados e o deflagrar de guerras obstáculos "sistêmicos" capazes de desmotivar o curso de ação traçado por Tucídides há 2500 anos, dentre os quais figuram com destaque (inaudito) as instituições internacionais e o papel dos cidadãos, algo nem sempre óbvio - resultado de "movimentos tectônicos" nas Relações Internacionais, pouco perceptíveis a olho nu, lentos, mas relevantes. Pode-se pensar, assim, que tais fenômenos, atuantes num intervalo temporal considerável, possam conduzir a um cenário em que a guerra não seja apenas indesejável e inadequada, mas próxima de algo irrealizável. Estar-se-ia concretizado o "Adeus às Armas", algo próximo do que Kant, sabiamente, avaliou como sendo impossível de ser atingido - a "Paz Perpétua". Como no caso de Wegener, cabe menção de que, aos olhos contemporâneos, tais constatações possam soar senão ousadas, imprudentes ou utópicas. A tradução direta da palavra grega Utopia é: "não-lugar". Não enseja a idéia de impossibilidade, mas de hodierna inexistência. Aos contemporâneos de Wegener, a teoria da "deriva continental" parecia algo distante e mesmo impossível. A Utopia é uma constante possibilidade, um "artefato em potência", uma possibilidade a ser construída. O ataque ao Iraque e atentados como o que vitimou Sérgio Vieira de Mello não impedem que afirmemos ser cada vez mais difícil o uso da força no plano internacional. O que, por sua vez, reforça cada vez mais o dizer do poeta francês André Breton: "sejamos realistas: façamos a Utopia".

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