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Teses_Monologos-->Sêneca político 260104 -- 31/12/2004 - 21:14 (Rodrigo Moreira Martins) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
MARTINS, Rodrigo Moreira. Sêneca político: uma análise a partir da Interioridade e Adulação. Trabalho de conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para obtenção do título de Licenciatura em Filosofia na UEL. Londrina, 2004.


Resumo
Com o advento do helenismo, novas correntes filosóficas surgem com o intuito de responder à falta de segurança existencial proveniente da passagem da pólis ao cósmos político. O estoicismo se apresenta com a noção de Interioridade ideal do sábio, que basta-se a si mesmo seguindo a Natureza. Ora, a apatia estóica não se resume à indiferença do indivíduo que agora está inserido no cósmos, mesmo porque esse indivíduo é levado a ter a Representação da Razão Universal que rege a humanidade e a política, e, conseqüentemente, tem nela um guia sustentador da cosmopolítica. A Adulaçâo passa a ser fruto dessa representação. E, se há uma Providência gerenciando tudo, e o ser humano faz parte dela, o mundo passa a ser a cidade de todos. A noção de igualdade e justiça é uma das principais contribuições do estoicismo para a humanidade, que será amplamente utilizada e desenvolvida pelo Império Romano e posteriormente com o Cristianismo.



Palavras-chave:
Estoicismo; Sêneca; Política; Adulação; Interioridade, Natureza.









MARTINS, Rodrigo Moreira. Political Seneca: an analysis based on Interiority and Adulation. UEL. Londrina, 2004.





ABSTRACT:


With the advent of Hellenism, new philosophical lines of thought emerge with the aim of responding to the lack of existential security proceeding from the transformation of the polis into the politic cosmos. Stoicism presents itself with a notion of ideal interiority of the wise man, which is self sufficient if following nature. Stoic apathy does not limit itself to the indifference of the individual that is now inserted into the cosmos. This individual is bound to have a representation of the Universal Reasoning that rules humanity and politics, and, consequently bears a supportable guide of Cosmo politics. Adulation turns out to be outcome of this representation. Furthermore, if there is a Providence managing everything and the human being is part of it, the world becomes a city of everyone. The notion of equality and justice is one of the main contributions of stoicism to humanity and will be highly used and developed by the Roman Empire and, afterwards, with Christianity.




Key-words: Stoicism; Seneca; Politics; Adulation; Interiority; Nature.









SUMÁRIO


INTRODUÇÃO

Parte I
1 CARACTERÍSTICAS DO PENSAMENTO ESTÓICO................................................ 04
1.1 A Genealogia do Estoicismo........................................................................................... 06
1.2 A Teoria do Conhecimento Estóica................................................................................ 08
1.3 O Contexto Cosmopolita Romano.................................................................................. 11

Parte II
2 O ESTOICIMO DE SÊNECA........................................................................................ 17
2.1 Sêneca Problematizador.................................................................................................. 25
2.2 A Política e a Interioridade Estóica................................................................................. 30

Parte III
3 AS RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS: POLÍTICA E ADULAÇÃO........................... 36
3.1 O Duplo Registro............................................................................................................. 38
3.2 A Adulação...................................................................................................................... 40

Parte IV
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................... 42
5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................ 45










INTRODUÇÃO

Depois das grandes conquistas de Alexandre Magno no Oriente, por volta do séc. IV a.C., o cidadão da pólis se viu diante de uma crise existencial: já não havia mais a segurança da cidade. Havia agora um novo ambiente: o cósmos. Essa nova visão de mundo causou mudanças profundas no modo de vida do grego. Com a morte de Alexandre, o caos agravou-se; a crise sócio-cultural e econômica veio agregar mais confusão ao mundo grego. Era o helenismo mostrando seus tentáculos.
Nesse contexto surge o Estoicismo com a proposta de Zenão de Cicio (336-264 a.C.): Vive conforme a Natureza. Era o sustento que a situação vivencial pedia. Era uma resposta às muitas indagações de como viver, uma proposta da nova Ética.

As filosofias universalistas, como foi o estoicismo antigo, denunciaram a impotência para agir imediatamente na transformação do presente. Transcendendo os males plenos vivenciados cotidianamente, a consciência universalista corrige o que condena erigindo um sistema logicamente possível, que tenha alguma eficácia para poder servir ao homem em sua prática. O tópos ético-político estóico aponta para o que não existe – a Cosmópolis.

Essa doutrina estóica baseava-se no seguinte esquema de pensamento: uma unidade de articulação racional (lógica), tendo em vista um perfeito conhecimento da natureza (física), possibilita atitudes de acordo com a estrutura do mundo (ética). Diante disso, os estóicos tiravam suas conclusões de como agir verificando a ordem da natureza (física) através da lógica, ou seja, do pensamento racional (no qual colocavam toda a base de sua teoria do conhecimento), efetivando assim, a Ética na qual se conduzia o ser pensante da época, tirando-o de sua crise existencial e apontando um norte àquele que se encontrava distante da segurança da polis. É no individualismo ético – Interioridade – que se sustentava esse sistema, chamado por alguns até de pedagógico.
Segundo a maioria dos estudiosos, o estoicismo está dividido em três fases: Antigo – (IV-III a.C.): Zenão, de Citíon; Crisipo, de Soles; e outros. Médio – (II-I a.C.): Panécio, de Rodes; Possidônio, de Apaméia; e outros. Romano ou Imperial – (I a.C. – III d.C.): Sêneca; Epicteto; Marco Aurélio; outros.
Desses três momentos, o primeiro, com os fundadores Zenão de Cìtio e Crisipo - o sistematizador, e o terceiro, com a retomada das idéias iniciais e o encaminhamento para discussões acerca da moral e da política, são considerados mais importantes. O período intermediário é colocado em segundo plano pelo fato de seus pensadores terem direcionado as idéias estóicas para um ecletismo, descaracterizando, assim, o ideal de virtude apresentado pela Stoa.
Embora tratemos, neste trabalho, do estoicismo de um modo geral, vamos dar ênfase à sua acepção no período romano, apontando para Sêneca nossas lentes mais aproximadoras. Em consonância, nosso estudo se justifica principalmente pela falta de maior especificidade em relação ao tema. Observamos que no concernente a Sêneca e sua posição perante o poder imperial, existem raras investigações sistemáticas sobre a relação deste autor com as ideologias políticas romanas do período, principalmente no que se refere à maneira como ele opera as diferentes acepções do conceito de Adulação e de Interioridade na formulação de seu projeto político para o governo de Nero.



As obras que selecionamos, na medida em que tratam da questão, sem dúvida, muito contribuem para a abordagem que pretendemos adotar, mesmo freqüentemente não a privilegiando como tema central. No entanto, como essas obras não se fixam ao problema da Adulação como elemento relevante no fortalecimento e preservação do poder imperial, devido ao fato desta mesma Adulação significar a diferença entre a detenção ou não deste poder, e nem justificam de que forma este mesmo conceito funcionaria como uma ferramenta entre o príncipe e seus subordinados, ou mesmo na corte ou na sociedade, a questão como um todo acaba por se tornar fragmentada e diluída.
De tal modo, estudar Sêneca hoje significa não só dar continuidade aos estudos sobre o principado romano, mas também a possibilidade de compreender a formação dos círculos de poder em torno de determinados grupos durante o período enfocado e a posição de Sêneca perante o poder imperial de Roma, bem como sua filosofia.
Sendo assim, temos como meta neste trabalho detectar o sentido da Adulação (e suas influências no ambiente estóico imperial no que diz respeito à amizade e política. Buscaremos ainda, recuperar o sentido da política estóica de dentro das relações que valorizam a intersubjetividade e a palavra e sua relevância na atualidade diante da falência do homem enquanto subjetividade no interior de sistemas políticos. Enfim verificar as influências que esta harmonia ético-política apresenta e constrói nas relações intersubjetivas, tanto em relação à amizade, quanto em relação à política, visto que são temas intimamente ligados às concepções políticas que se desenvolveram a partir dos conceitos elaborados pelo estoicismo imperial.
Nestas poucas páginas que dedicaremos a este importante filósofo procuraremos destacar alguns dos acontecimentos que permearam sua vida e a obra, bem como fornecer determinadas informações a respeito de sua produção intelectual. As Cartas a Lucílius, obra que Sêneca desenvolve num momento de grande maturidade de sua vida, nos dá ampla visão dos tipos de conexões que serão possíveis realizar buscando o sentido da Adulação e sua influência na amizade e política.
O desafio está lançado, resta-nos aproveitar a paisagem e usufruir seus benefícios ampliando-os à comunidade, fazendo com que a teoria e a prática dos antigos mestres estóicos sejam úteis ao nosso tempo, que por sua vez, continua buscando a felicidade.
Como a Adulação, palavra fácil mas que deturpa as relações entre os homens (sobretudo políticas), pode nos esclarecer o conhecimento acerca dos nossos relacionamentos? É isso que procuraremos verificar. Entrelaçando-a com a mentalidade filosófico-política de Sêneca, apontaremos possíveis relações entre esses conceitos.
Daremos, a seguir, continuidade ao estudo do estoicismo, buscando com ele acrescentar conhecimento àqueles que se sentem, ainda hoje, distantes do mundo como ele é.


1. CARACTERÍSTICAS DO PENSAMENTO ESTÓICO


A conquista do Oriente por Alexandre Magno fez com que os gregos se vissem obrigados a alargar os horizontes de sua existência, estendendo-os na direção do cósmos. Nesse período, a filosofia assumiu o papel de preencher esse espaço existencial. O grego vivia na cidade, pela cidade e para a cidade. Ela representava, aos olhos do cidadão (grego) comum e, principalmente, aos olhos do aristocrata, o valor maior da existência.
Depois da morte de Alexandre (323 a.C.), grandes transformações ocorreram nesse meio. Não mais se concebia a vida social como convivência de pessoas livres, conscientes de sua igualdade e de sua capacidade de gerar e gerir suas próprias instituições. A monarquia passou a ser a nova realidade do mundo grego, não obstante, problemas sócio-politico-culturais se agravaram e a mentalidade grega se modificou. Não se pensa e não se sente mais em termos de cidade, mas em termos de mundo, de cósmos.
Verdade é que o horizonte alargado perdeu sua segurança, o aconchego e a densidade axiológica que a cidade representou, justamente porque ela significava algo de mais pessoal e mais próximo ao contrário do cósmos imposto pelo helenismo e suas consequências. Após o séc II a.C., Roma começou suas intervenções. Uma nova realidade se criava na bacia do mediterrâneo, síntese do gênio especulativo grego e do gênio prático romano. Era a civilização greco-romana ainda muito influenciada pelo helenismo.
Há uma racionalização na elite pensante, não obstante, as massas excluídas pelo processo de mudança vão sofrer o impacto das forças marcadas pela dimensão mística da vida que vai se impor de maneira quase predominante. O pensamento filosófico não pôde fugir à essa realidade. Neste contexto, entre os séc. IV e I a.C., surge o estoicismo, que apresenta uma solução: enfatizar as riquezas da pessoa humana e a conseqüente possibilidade de uma autarquia ou auto-suficiência de vida para cada indivíduo.
A derrocada das cidades-estados criou, pois, para o homem grego, um vazio existencial, que se urgia preencher. Descobrir-se como parte de um todo e aceitar tranquilamente esse fato era o programa estóico. O sábio bastar-se-ia a si mesmo. Ele convocaria o indivíduo à descoberta de uma ordem universal, na qual poderia inserir-se sem a mediação da pólis, só assim o indivíduo se libertaria interiormente. O ideal da vida humana seria a auto-suficiência interior. Ser sábio era saber se arranjar independentemente do mundo.
Com isso, surge uma espécie de retorno à reflexão jônica, pois o estoicismo deve procurar os fundamentos do discurso moral, na ordem da phísis, tal qual tinham feito os pré-socráticos. A opção estóica se deu, predominantemente, por Heráclito que já dizia que a “Lei (é) também persuadir-se à vontade de um só.” Vejamos, então, alguns pontos da origem do estoicismo.

1.1 Genealogia do Estoicismo

A "Escola Estóica", fundada por Zênon de Cítion em Atenas, durou cerca de 500 anos e grande foi a sua influência entre gregos e romanos. A doutrina estóica ajudou a moldar, por exemplo, o direito romano, pilar de muitas doutrinas legais modernas. O estoicismo é uma doutrina eclética, e incorpora muitos conceitos dos filósofos anteriores e contemporâneos à sua época: Heráclito, Platão e Aristóteles, os cínicos, etc.
Esse ecletismo se dá, principalmente, no período do médio estoicismo, onde a escola se desloca mais sensivelmente para as doutrinas de outras escolas, contudo, sua fundação também se dá de modo eclético, só que um ecletismo contribuinte para a formação agregadora entre pensamento grego e oriental, visto Atenas estar recebendo muitos viajantes no período de helenismo.
Ora, Zenão era de Chipre onde havia o pano de fundo fenício e cananeu. Dos cananeus podemos fazer ligações com o culto a Baal, divindade que aproximava o divino e o humano. “Resquícios dessa concepção temo-la na idéia estóica de o sábio se igualar a Deus”. Outra ligação temos com o termo Lógos, que a herança cananéia dá à criação e, para Zenão, elabora-se da seguinte forma: se o mundo é criado, é corruptível; daí segue-se a idéia de conflagração universal, onde há um eterno retorno do mundo que sempre se consome pelo fogo. A influência fenícia se apresenta através do famoso princípio do Pórtico: vive conforme a natureza:

Diógenes Laércio nos explica o sentido: Foi Zenão o primeiro que, em seu De natura hominis, disse que o viver conforme a natureza é o mesmo que viver segundo a virtude, pois ela é a natureza. Por conseguinte, Sêneca reafirma: tem sentido metafísico, porque natureza é por ele entendida como especificidade do homem, isto é, como ente dotado de razão. Logo, viver de acordo com a natureza é desenvolver a razão e pautar-se por ela. Por outra, o homem deve submeter-se à ordem do universo, onde se expressa a ratio. Esta identifica-se com Deus ou lógos.

Governada pelo Logos, a natureza é justa e divina; os estóicos identificavam a virtude moral com o acordo profundo do homem consigo mesmo e, através disso, com a própria natureza, a qual é intrinsecamente razão. Essa identificação entre Lógos e Razão é corroborada pelo Télos racional que vemos em Zenão: “o que Zenão entende por colocar em Télos a vida conforme a Natureza, pois, entende por Télos, a busca agitada do homem, pela vida racional.” É desse “círculo” que tiramos a noção de interioridade.
Diante dessas informações, detectamos a origem do estoicismo como uma miscigenação entre sua origem semita e seu arrematamento em solo grego, levando em conta a questão do helenismo, que por si só já dá um “tempero” diferente ao contexto e à forma de pensar da nova escola que surgiu no século IV a.C. Vejamos, agora, algumas características da teoria do conhecimento estóica.




1.2 A Teoria do Conhecimento Estóica

Desde Zênon, o estoicismo dividia a filosofia em três partes: lógica, física e ética. Tal como Sócrates havia ensinado, a virtude é o único bem e o homem virtuoso é aquele que atingiu a felicidade através do conhecimento. Para ele, a felicidade é encontrada dentro de si e é imune ao meio exterior, que conseguiu superar dominando-se a si, às suas paixões e emoções.
Em relação à concepção estóica do universo como um todo, a doutrina é panteísta. Todas as coisas e todas as leis naturais ocorrem devido a uma determinação consciente da Razão do Mundo, que é fundamental. E é de acordo com esta ordem racional que, segundo o estoicismo, o homem sábio procura regular sua vida, como o seu mais alto dever.
O termo ‘Lógica’ parece ter sido criado pelos estóicos, mas na época tinha um sentido mais abrangente do que o atual, e ligava-se à forma de adquirir o conhecimento. O conhecimento fundamentava-se na existência de objetos externos que agiam constantemente sobre os sentidos e produziam "aparências" no espírito (o espírito podia, independentemente dos sentidos, gerar idéias ou "aparências mentais"). Os objetos dotados de "claridade" ou "nitidez" produziam no espírito um "assentimento" que geraria uma resposta chamada de "compreensão". A compreensão seria uma resposta perceptiva a um objeto realmente existente e diferente da opinião, que não era tão seguramente fundada na experiência. A compreensão proporcionava o "critério" da verdade, usado para aquilatar a validade de percepções ou sentimentos.
Temos, então, o mais conhecido exemplo que Zenão apresentara a seus discípulos sobre o assunto:
Zenão resumia de uma maneira pitoresca toda esta teoria da certeza. Mostrava sua mão aberta com os dedos estendidos e dizia: "Tal é a representação"; depois, dobrando ligeiramente os dedos: "Eis o assentimento"; a seguir, cerrava o punho e dizia que era a percepção, e, finalmente, cobrindo com sua mão esquerda o punho direito dizia: "E aqui a ciência, exclusiva do sábio". Isto é, a representação, compreensiva ou não - lendo bem esta passagem de Cícero -, não capta nada, que o assentimento prepara a percepção e, finalmente, que só a percepção capta o objeto, o que faz ainda melhor a ciência. (grifo meu)

Desta Lógica surge a visão da Física, que é a visão estóica da natureza sendo tecnicamente materialista. O mundo é finito em extensão, e para agir ou ser objeto de ação, todas as coisas (objetos) existentes, mesmo um deus, a alma e qualidades abstratas como a bondade são dotadas de corpo. Os corpos são mais tênues ou mais sólidos conforme a noção que transmitem. A matéria total do mundo é infinitamente divisível e tudo preenche sem deixar vazios. As matérias mais finas e ativas são formadas de fogo e ar que misturados produzem um "espírito" ou "sopro ígneo" que nutre o mundo de dentro para fora.
Assim, o mundo é produto de um princípio ativo que permeia o mundo físico e dele faz parte, essa “alma” que modelou e modela os elementos materiais passivos para formarem o mundo ordenado de objetos separados, porém organicamente conectados entre si e mutuamente influentes. Deus não é extenso, faz parte do mundo que modelou, e foi um artífice competente, pois há ordem e desígnio nos aspectos significativos da realidade (o mundo é um cósmos). O corpo do cósmos é guiado pela razão, nada acontece por acaso, tudo é predeterminado pelo destino e controlado pelo espírito divino racional. A cosmópolis seria, então, “uma expressão da respiração daquele divino que anima o universo” e a tarefa do indivíduo nesta nova época era sintonizar sua interioridade com esta respiração.
Da ligação entre Lógica e Física, surge a Ética com o aforismo fundamental de que as pessoas deviam viver "de acordo com a lei natural", i.e., a natureza é um mundo formado e ordenado pela razão divina, pela alma do mundo. E se a lei humana está de acordo com a lei natural, ela deve ser obedecida e seguida. Fazendo parte de um mundo ordenado, o homem deve corresponder escolhendo fazer o que é moral e objetivamente bom conforme lhe é ditado pela razão.
A escolha das ações corretas é a virtude e leva inevitavelmente à felicidade. O vício consiste em escolher ações contrárias à lei natural. Não há uma escala de excelência na graduação do caráter, e nenhuma pessoa é moralmente boa enquanto não atinge a perfeição moral. Isso já indicava Heráclito ao dizer que “para o deus são belas todas as coisas e boas e justas, mas homens umas tomam (como) injustas, outras (como) justas.”

A virtude é o único bem absoluto, e o vício o único mal absoluto. Entre os extremos há diversos objetos de desejo ou aversão que devem ser encarados com neutralidade: vida e morte, saúde e doença, prazer e dor, beleza e feiúra, riqueza e pobreza. Todas as emoções que tendem a perturbar o espírito e fazê-lo perder o equilíbrio da razão provém das paixões que devem ser extirpadas.
O ideal é a "apatia", o estado de espírito no qual alguém cumpre seus deveres sem estar de modo algum dominado pela emoção. O famoso aforisma de Epicteto "suporta e abstém-te" resume esse aspecto da doutrina estóica.
É preciso evitar as emoções, paixões, incompatíveis com o autodomínio racional. As pessoas moralmente fortes e que buscam atingir a "apatia", livram-se da ansiedade e têm o domínio de si mesmas, e são capazes de se sobreporem aos desejos e às inconstâncias da sorte. A independência em relação às emoções e aos desejos assegura ao sábio um estado de contentamento imperturbável.
Enfim, a teoria do conhecimento consiste em fazer entrar no sensível o domínio da certeza e da ciência que havia sido cuidadosamente afastado por Platão. A verdade e a certeza estão entre as percepções mais comuns e não exigem nenhuma qualidade que não supere às que pertencem a todo homem, mesmo os mais ignorantes; a ciência - é verdade - não pertence senão ao sábio, mas não é por isso que sai do sensível, pois continua ligada à estas percepções comuns cuja sistematização constitui a sua essência. É o famoso exemplo – já citado (pág. 8) – da mão se fechando que, somente após a outra mão fechar sobre a já fechada é que se considera a posse da ciência, do conhecimento verdadeiro, a ligação a partir da interioridade humana para com a razão expressa no universo. É desse entendimento que trata a teoria do conhecimento estóica. É dum intelectualismo em torno do que se deve fazer, ou melhor, “viver homologouménos phýsei significa viver segundo a virtude, porque nela é que está o vértice da razão humana.”
Da teoria do conhecimento estóica passaremos a tratar do estoicismo praticado por Sêneca, verificando o contexto em que germinou para fazermos aproximações com seu pensamento político.

1.3 O Contexto Cosmopolita Romano

Após a conquista romana da Macedônia (168 a.C.), a Grécia tornou-se efetivamente parte do império romano. Começava, portanto, a influência grega sobre o mundo romano. Entre Roma e a Grécia estabelecem-se e desenvolvem-se intensas relações culturais. Os jovens das famílias aristocráticas romanas vão à Grécia e à Ásia Menor, Atenas e Rodes, para se aperfeiçoarem nos estudos, começados geralmente na pátria sob direção de educadores gregos. E fazem isso não por interesses científicos, mas porque o helenismo é considerado de bom gosto, elegante, moda, elemento indispensável da alta cultura romana.
Diante desse primeiro quadro do contexto político apresentado em nosso estudo, manifesta-se na filosofia estóica um racionalismo cosmopolita radical a propósito da sociedade estatal: o homem, político por natureza, torna-se cosmopolita por natureza. Tal cosmopolitismo foi fecundo em progresso, em civilização humana e moral.
Abre-se caminho a um sentimento de caridade, de perdão, até para os infelizes e os escravos, os estrangeiros e os inimigos, em virtude da doutrina que afirmava a identidade da natureza humana, sentimento este inteiramente desconhecido ao mundo antigo, clássico, onde agregava solitária uma justiça, que existia, porém, apenas para os concidadãos, livres e íntegros. Destarte, esse cosmopolitismo promovia todavia os conceitos de sociedade universal, de direito natural, de lei racional, conceitos que deveriam ser deduzidos da natureza racional do homem.
Entretanto, o Império é uma mentalidade, uma força que se expressa através de conquistas e domínio sobre os dominados. Se nosso autor em tela principal é Sêneca, que freqüentava os liames do poder romano em sua vida de advogado, senador, e demais atribuições de um poderoso político, e que chegou a ser preceptor de Nero e seu conselheiro, ele se vê em meio a uma vasta gama de oportunidades que vão desde uma pedagogia do ócio, conselhos morais, a um enriquecimento que mais tarde será tratado como coisa de destino que deve ser relevada, visto serem as riquezas apenas ilusões.

A felicidade de toda esta gente está totalmente virada para o exterior, ao passo que a beatitude do sábio – eximido por nós aos olhares do público e aos acasos da fortuna – é exclusivamente interior. Pelo que respeita àqueles que, sob o falso nome de riqueza, se dedicam às ocupações sem fim de uma real miséria, esses são possuidores de riquezas no mesmo sentido em que nós dizemos ter febre quando, na realidade, a febre é que nos tem a nós! Também costumamos usar a expressão inversa, dizendo: ‘a febre apoderou-se dele’; pois bem, deveríamos dizer igualmente: ‘as riquezas apoderaram-se dele’!

Por conseguinte, tudo isso dá a Sêneca uma ótica privilegiada acerca das necessidades do Império. Podemos dizer que Sêneca entendia o Império Romano como seu destino, e o destino aqui expresso é a noção estóica de destino que o sábio compreende através da ciência da realidade captada através de sua representação compreensiva. Ou seja, é mais que uma simples noção de determinismo passivo, é o movimento gerado pelo Lógos, que está presente no conceito de processo existente na Natureza que se faz através do Fogo como primeira essência de Heráclito. O Lógos estóico contém toda essa carga semântica.

O que se entende por lógos, no qual se alicerça a ética de Sêneca? Essa palavra os estóicos pediram entrestada a Heráclito. Constitui a realidade divina, imanente ao mundo. Lógos indica, na filosofia grega, a coerência interna do universo. Sinonimiza com fogo, que é a mais sutíl de todas as realidades. Princípio regente do mundo, recebe o nome de lógos hegemonikós. Como Providência, que tudo ordena, chama-se prónoia. Como possuidor de todas as coisas em germe, à maneira de idéias exemplares, dá-se-lhe a denominação de lógos spermatikós. Toda moral deve pautar-se pela ratio universi e pode ser enquadrada no seguinte raciocínio: a razão é comum a todos os homens e todos são iguais; ora, decorre daí que, sendo o lógos fonte da lei, esta também é universal e extensiva a todos; logo, a ética é dimanante da natureza, é algo natural e universal. [...] O lógos inere à natureza humana, uma vez que não vem de fora, mas do interior do espírito, da própria consciencia moral que se identifica com a imanência de Deus na alma.

Após essa apresentação da noção senequiana e estóica de destino, conseqüentemente a noção estóica de império, de cósmos racional, providencial, podemos situar-nos diante do contexto exterior ao pensamento de Sêneca.
Primeiro vemos Cícero já apontando a saída para o Império Romano através dos Costumes e das Leis, que regeriam todos os cidadãos do mundo conhecido da época. O helenismo, que a princípio pareceu aos romanos um mal, se transformará num dos principais instrumentos de prosseguimento do poderio dos romanos. Em segundo lugar, vemos o “último” dos estóicos como imperador de Roma: Marco Aurélio, que faz do seu destino algo a ser seguido em prol da sociedade, que, naquele momento, era Roma imperial.
Como dissemos, durante a aproximação do helenismo à cultura romana, houve pensadores que já pressentiam a metamorfose que estava por acontecer. É o caso de Cícero, um eclético com tonalidades estóicas que escrevia principalmente sobre as Leis, defendendo no Da República e no Das Leis, a tradição com uma força inexorável, assim como vemos:
Se Roma existe, é por seus homens e seus hábitos (verso de Ênio) A brevidade e a verdade desse verso fazem com que seja, para mim, um verdadeiro oráculo. Com efeito: sem nossas instituições antigas, sem nossas tradições venerandas, sem nossos singulares heróis, teria sido impossível aos mais ilustres cidadãos fundar e manter, durante tão longo tempo, o império de nossa República. [...] Nossa idade, pelo contrário, depois de ter recebido a República como uma pintura insigne, em que o tempo começara a apagar as cores, como nem mesmo se ocupou em conservar pelo menos o desenho e os últimos contornos. Que resta daqueles costumes antigos, dos quais se disse terem sido a glória romana?

Em suas obras, Cícero aproveita para discutir sua noção de lei e política, as quais ele acreditava mais importantes para manterem a religião e o poder dos magistrados em Roma, frente às mudanças que tinham sido impostas pela conquista de tantos povos e territórios novos. Necessário é lembrar que Cícero compôs De Legibus no momento em que Roma sentia o impacto de se transformar de uma cidade-Estado em uma Cosmopólis, ou seja, de uma pequena cidade independente para o centro de um extenso Império territorial, que tinha que ser gerenciado para ser mantido. Cícero se aproximou das idéias dos filósofos gregos Estóicos e da Academia para defender a constituição de um direito racional e natural:

A lei é a razão suprema da Natureza, que ordena o que se deve fazer e proíbe o contrário. Esta mesma razão, uma vez confirmada e desenvolvida pela mente humana, se transforma em lei. Por isso, afirmam que a razão prática é uma lei cuja missão consiste em exigir as boas ações e vetar as más. [...] A lei é a força da natureza, é o espírito e a razão do homem dotado de sabedoria prática, é o critério do justo e do injusto. [...] Sem dúvida, para definir o Direito, nosso ponto de partida será a lei suprema que pertence a todos os séculos e já era vigente quando não havia lei escrita nem Estado constituído.

A lei não era para Cícero uma simples convenção dos homens, mas uma exigência racional de se seguir o modelo da natureza. Antes de conhecerem as leis, os homens tinham que conhecer a si mesmos e a sua relação com o meio natural que os cercava, no qual as divindades se manifestavam e indicavam os melhores caminhos para as ações humanas, dependendo da interpretação dos indícios naturais, chamados augúrios ou auspícios.
Para Cícero, assim como para os estóicos, era a natureza que proporcionava aos homens a faculdade de distinguir o bem do mal, o honesto do desonesto. Agir bem, honestamente e com justiça era agir de acordo com a natureza, de acordo com a vontade das divindades. A lei romana para Cícero era natural e comum a todos os homens, por isso deveria ser levada a todos através da constituição do Império territorial:

Fica certo que em nenhuma outra discussão se evidencia melhor os dons que o homem recebeu da natureza, as qualidades excelentes que possui a mente humana, a tarefa para cuja execução ou realização viemos ao mundo e em que consistem a união dos homens e a sociedade natural entre eles. [...] Logo, devemos considerar que o nosso universo é uma só comunidade, constituída pelos deuses e pelos homens.


O trato político do fenômeno que estava acontecendo na época imperial do estoicismo continuou, após Sêneca, com o Imperador Marco Aurélio. Parece-nos que este imperador justificava suas ações através do lógos estóico; ora, a inteligência é dada aos sábios, e estes devem governar e dirigir os irracionais, ainda mais que:

Todos colaboramos numa única realização, uns consciente e inteligentemente, outros sem o perceberem. Isso, penso, significava Heráclito ao dizer que até os que dormem são obreiros e colaboradores dos acontecimentos do mundo. Cada qual colabora a seu modo, mesmo, de sobejo, quem critica e quem tenta sabotar e destruir os resultados, pois até de tal gente precisaria o mundo. Resta veres de qual dos lados te vais alinhar. Aquele que rege o universo te empregará muito bem e acolherá como parte entre os seus ajudantes e cooperadores.

Quem poderia reger melhor o universo que o próprio imperador romano? Ele próprio detentor das qualidades de um estóico e, ao mesmo tempo, da mentalidade romana da superioridade que agora se embasava através da racionalidade presente no universo, donde sairiam as Leis adequadas a todos os outros seres. Quem poderia ser mais útil ao império? Aqueles que concordassem em seguir os direcionamentos de Roma, seriam considerados como seguidores da razão universal, de Deus, ao contrário, aqueles que não quisessem obedecer ao imperador, seriam arrastados, como cães presos à carroagem.
Fechamos, assim, o nosso círculo contextual, o qual teve Cícero, em primeiro lugar, dando indícios das intenções imperiais da utilização das noções estóicas de lógos, de Deus, para manter o império. Em lugar intermediário, vemos Sêneca e seus conselhos morais, baseados na virtude de um sábio inacessível à maioria das pessoas; afinal, o sábio deveria governar. Ora, em terceiro lugar, é o que acontece com Marco Aurélio, o filósofo imperador.
Os conselhos morais acima indicados acabarão por se converter em dogmas. A noção de dogma, de algo já dado, é expressa e continuada pelos detentores do poder. Se esta tese nos inspira mais cuidados, é justamente por ser ambiciosa, ainda mais quando vários estudiosos da área apontam o período como apenas de questões morais, éticas. É por isso que Brehier diz:

Quanto à filosofia, é evidente que toma uma forma completamente nova e não continua nenhuma das direções que até então tinha tomado. Os grandes dogmatismos que vemos nascer então - estocismo e e epicurismo - em nada se parecem ao que lhes precede; ainda que sejam muitos os pontos de contato com seus antecessores, seu espírito é completamente novo. Este é caracterizado por dois traços brilhantes: o primeiro é que é impossível ao homem encontrar regras de conduta ou alcançar a felicidade sem apoiar-se em uma concepção do universo determinada pela razão; a investigação acerca da natureza das coisas não tem um fim em si mesma, na satisfação da curiosidade intelectual, mas exigem também a prática. O segundo traço, mais ou menos manifesto, é a tendência à disciplina de escola, segundo o qual o novo filósofo não tem que buscar o que já foi encontrado antes e a razão e o raciocínio só servem para consolidar nele os dogmas da escola e dar-lhes uma segurança inabalável; mas nestas escolas não se trata, muito menos, da investigação livre, desinteressada e ilimitada da verdade, mas de se assimilar uma verdade já encontrada. (grifos meus)

Assimilar a verdade em contraposição com a Adulação é tarefa do sábio estóico, que “apenas conhece a verdadeira alegria, essa exaltação da alma na plena posse dos seus bens autênticos.” Então, vejamos através da perspectiva senequiana o estoicismo imperial.

2. O ESTOICISMO DE SÊNECA

Sêneca foi um grande político e conselheiro de imperadores; há em seus escritos várias notícias de aplicações do pensamento estóico na nova política diante do cósmos estabelecido pelo helenismo. A virtude do sábio e a harmonia levaram o filósofo cordovês a astutamente apresentar um ideal de liberdade para todo ser humano. Este ideal permeia toda a filosofia senequiana. Também está presente no seu conceito de morte, visto que, diante dela, não se sente à beira do fim, mas sente como se estivesse voltanto à sua casa, ou melhor, experimenta-se feliz por cumprir o seu destino. Essas são noções cogitadas por Sêneca em sua produção literária e que trabalharemos para nos aproximarmos de nosso assunto principal, que é Adulação e Política.
A política senequiana está intimamente ligada à sua noção do sábio, que trabalha com o conceito de Adulação diante do mundo em que vive e opera. Esse ofício do sábio é muitas vezes confundido com algo sobre natural. Acerca disso nos lembra Sêneca:

O sábio não se lamenta se lhe acontecer algo daquilo a que a condição humana está sujeita. Conhece suas próprias forças, sabe que não vergará sob o peso. Com isto eu não estou a colocar o sábio à parte do comum dos homens nem a julgá-lo inacessível à dor como se de um penedo insensível se tratasse. Apenas recordo que o sábio é composto de duas partes: uma é irracional, e sensível, portanto , às feridas, às chamas, à dor; outra é racional, dotada de convicções inabaláveis, inacessível ao medo, indomável. É nesta parte que reside o supremo bem para o homem. [...] O homem que iniciou a marcha para o bem supremo e cultiva a virtude, mas que, embora se aproxime da meta, ainda não atingiu a plenitude, pode por vezes recuar e diminuir algum tanto a sua energia mental; é compreensível, pois ainda não ultrapassou a fronteira da incerteza, ainda escorrega na dúvida. [...] o sábio será capaz de dominar a fortuna com a sua virtude, ao passo que muitos adeptos da filosofia se deixarão assustar por ameaças de somenos importância.
A virtude do sábio é o objetivo mais importante a ser conseguido pelo seguidor da escola. Ora, essa virtude se baseia no esquema anteriormente apresentado: Física, Lógica e Ética. Entretanto, é na física que a teoria do conhecimento estóica vai buscar o ideal do sábio.
Era através da Física que nos tempos homéricos a virtude era algo demonstrado pelas ações dos “heróis”, daqueles que tinham a coragem de apresentar-se perante o inimigo e até mesmo ao destino como que defendendo sua honra e de sua família. A virtude, nestes tempos, era algo exterior, algo era visivelmente exercitado. Já no tempo de Sócrates o daimon passa a ter um papel diferenciado nas ações humanas perante a sociedade.
Com o advento do helenismo e sua ascenção romana, a característica do sábio e do homem virtuoso passa por uma transformação importante. Entra em cena a Interioridade que é uma das únicas saídas para o caos instalado por todas as tranformações ocorridas durante o período. Vemos uma migração da virtude do exterior para o interior, ainda mais quando se vive num regime imperial e a escravidão está às portas constantemente.
Sêneca freqüentemente trabalha com paradoxos, como por exemplo este que acabamos de apresentar. Se a filosofia do pórtico se baseia na Física, ou melhor, na Natureza, como a Interioridade poderia ser a saída para a crise, ou a doença instalada através do helenismo? Ora, é por meio da astúcia estóica que o Sábio vai decifrar o enigma. A Natureza é a alma do Universo que está presente em todos e a tudo rege com perfeição. A virtude que antes era entendida como algo exterior agora sobrevive no interior de cada pessoa, esperando para ser descoberta e aprimorada, ou mesmo exercitada. A liberdade está em não carecer de nada, entendendo esse conceito como que se vendo dentro e parte do Universo, respirando a alma que dele emana.
A virtude não é algo que se possa escolher, é dado. Há os preferíveis, que podem ou não desvirtuar o indivíduo. A astúcia estóica está em ser virtuoso mesmo não parecendo ser. Eis o paradoxo, pois a virtude passa a ser propriedade inalienável de cada um, e o ofício do filósofo estóico é ajudar aqueles que desejem atingir o ideal do sábio estóico.
Nem sempre aquilo que a sociedade prescrevia aos cidadãos era comparado à justiça e à prudência exigidas pela honra da idade homérica, ou pelos ideais da tradição platônica e aristotélica. O estoicismo antigo seguia nessa direção, e Sêneca “tentou” continuá-la, não obstante observasse bem o seu tempo e pressentisse as mudanças profundas que estavam por acontecer.
Diante dessa metamorfose, o modo de vida do cidadão da pólis muda de estilo. Seu caráter passa a ter um Duplo Registro. Suas ações diante da sociedade passam a ser adulativas, mesmo porque, do contrário, não haveria sobrevivência.
O estilo sedutor de Sêneca se faz sentir em suas cartas visto ser a estética um instrumental necessário para sua época. Fazendo assim, aproxima sua filosofia moral e ética da filosofia estética, ou melhor dizendo, da vida de aparências que se sustentava no império.

E este transformar a ética em estética e fazer da elegância uma virtude até a morte, parece ser o segredo último de Sêneca, homem culto de um tempo de barbárie, de subversão de massas, a mais temível, porque estava assentada no poder. [...] Procede como um sedutor que sabe contar mais que com a força da razão, com sua harmonia; que crê mais na música das palavras que em seu sentido.

As escolas da época captaram bem este sentimento harmônico e suas conseqüentes ações. Se para Platão e Aristóteles a política estava intrinsicamente ligada à ética e à moral, fazendo da vida na pólis uma vida política, onde deveriam ser exercitadas as ações justas através do diálogo compartilhado, as novas escolas se deslocaram desta perspectiva para o prisma do cósmos imperial, que exigia um novo tipo de comportamento.
É assim que a interioridade torna-se pedra fundamental do estoicismo, que localiza na Natureza a razão seminal para todas as ações. Para Sêneca essa preocupação ainda persiste, conquanto se depare com novas perspectivas, como por exemplo a liberdade da pessoa humana.
Vive conforme a natureza! Sêneca observa que “a moralidade tem ainda esta vantagem: satistaz-se de si mesma, permanece sempre idêntica. A maldade, essa, é instável, está constantemente a mudar, a tornar-se, não menos gravosa, mas apenas diferente.” Fazendo alusão à moralidade imutável e à maldade que constantemente se muda, Sêneca seduz o leitor para o caminho da sabedoria. Este é um exemplo do Duplo Registro aplicado por Sêneca: não aponta diretamente para o problema do mal – que estaria também presente no Destino, ou Razão Universal, pois este seria inquestionável – mas coloca como bem preferível a moralidade, ou aquilo que é imutável.
Ora, o contexto da passagem anterior é uma das pedras preciosas do pensamento senequiano, visto que trata do problema da escravidão: “vive com o seu inferior como gostarias que o teu superior vivesse contigo” , diz Sêneca e aponta para a interioridade como referencial de conduta para todos os participantes do novo cósmos. O fundamento da moralidade entre os estóicos consiste na perfeição. Embora sendo encontrada na razão, ela é um princípio material de determinação. E isto significa dizer que toda a ética estóica se fundamenta na física. E não somente isso mas ainda significa um despontar de uma nova era, onde o indivíduo teria igualdade perante o Estado. Em um Estado imperial como o romano, nada mais sensato e astuto que dizer, brandamente, que participamos todos de um mesmo cósmos e temos todos parte na mesma razão universal.
A alma do homem é parte do universo, que é material e contém sua própria alma. Para entender o mundo e entender-se, o ser humano deveria encontrar-se consigo mesmo em primeiro lugar, pois daí seguiria para um outro lugar naturalmente, visto que seria conduzido por si próprio. Captar essa noção não era para qualquer mortal comum, somente o sábio consegue se mover dentro da racionalidade do universo presente dentro do seu próprio ser, por isso ele é autosuficiente, não carece de nada. E, não carecendo de nada, pode apontar caminhos novos, mesmo que diferentes da vontade política presente em seu contexto.
Esse acordo consigo mesmo é o que os estóicos chamam "prudência" e dela decorrem todas as demais virtudes. As paixões são consideradas por eles como desobediência à razão, à Natureza, e podem ser explicadas como resultantes de causas externas às raízes do próprio indivíduo; seriam resultados do hábito de pensar influenciados pelo meio, pela educação e pela política. A prudência é explicada pela Natureza que desperta a vontade, que é clarificada pela virtude que é a alma racional. Se existe uma vontade aduladora, ela estaria presente no Estado, no Império Romano, visto utilizar-se da noção de cósmos para engrandecer-se, objetivando adquirir as almas das pessoas. Ora, o império quer todos em uma mesma pátria, lutando por um mesmo objetivo; esse direcionamento está em desacordo com a Natureza imutável prescrita pelo estoicismo. Visto ser que “a virtude não é outra coisa senão a faculdade de ajuizar de uma forma correta e imutável; dessa faculdade provêm as decisões da vontade.”
É necessário ao homem desfazer-se de tudo isso e seguir a natureza, ou seja, seguir a Deus e à razão Universal, aceitando o destino e conservando a serenidade em qualquer circunstância, mesmo na dor e na adversidade. Seguir a Natureza representa justamente seguir o bem, o único e imutável bem; por isso se deve conservar a serenidade e a harmonia, mesmo diante da adversidade: ela não representa um mal. Por isso o sábio deve se bastar.

O sábio basta-se a si mesmo. Amigo Lucílio, muita gente interpreta incorretamente esta máxima, afastando o sábio do mundo que o rodeia e reduzindo-o aos limites do seu corpo. Por conseguinte é imprescindível distinguir bem o que significa, e qual o alcance desta frase: o sábio basta-se a si mesmo para viver uma vida feliz, não simplesmente para viver, na medida em que para viver carece de muita coisa, mas para ter uma vida feliz basta-lhe possuir um espírito são, elevado e indiferente à fortuna.

Vemos que a razão universal se estabelece através da harmonia entre as partes contrárias. O contexto senequiano é o de um império que se quer universal através da força e da brutalidade. Os romanos buscaram nos gregos a filosofia que necessitavam para fixar seus dogmas. Implantados os dogmas, eles poderiam reinar absolutos. A Lei estava a serviço do Império assim como a virtude o estava. O verdadeiro filósofo estóico tinha horror ao dogma, ainda mais quando entendia o mundo como plena mudança e conflagração pelo fogo.

E este horror ao dogma se faz relativizar aquilo em que mais crê, a noção central de Sêneca e de todo estóico de razão. Razão cósmica de que a razão humana é unicamente reflexo. Não é o Lógos princípio do mundo, senão medida, lei da natureza invariável e inflexível. [...] Por isso que Sêneca regressa à antiga fé de Heráclito da razão como medida entre contrários, a harmonia dos contrários. E ao ser a razão medida e harmonia, a lei fica quase impossível de fixar-se. Donde entende-se que a verdadeira medida não pode encontrar-se em um dogma, senão em um homem concreto que percebe com sua hamonia interior a harmonia do mundo. É uma questão de ouvido, uma virtude musical do sábio; é uma atividade incessante que percebe, e é um contínuo acorde.

O estoicismo praticado por Sêneca apresenta esta conotação: o movimento hamônico com a razão universal. Essa característica do filósofo cordovês faz com que a política disseminada por ele seja uma política contra os vícios da adulação que deturpam as relações justamente por querer em primeiro lugar o particular, sem levar em consideração o universal. Ora, essa atitude era comum no ambiente romano da época de Sêneca, tanto que nosso filósofo foi condenado várias vezes por suas idéias.
Por conseguinte, não seria, então, por isso que a Adulação é atacada como inimiga do bem? A adulação desvia a atenção do ser racional para algo além do sensível; burla a certeza, a verdade e a virtude, apresentando em primeiro lugar o interesse comum e, se tudo deve harmonizar-se com a Natureza, o domínio da verdade e da certeza também deveriam estar ligados à necessidade do cósmos, do mundo. Essa ligação entre a noção de interioridade presente já na teoria do conhecimento estóica com a política praticada na época do estoicismo imperial, é uma das chaves de leitura para o pensamento senequiano relacionado à adulação.

Avancemos, pois só assim a vida nos será de utilidade. De outro modo não passa de um entrave, e um entrave desonroso para quem vive no meio do vício. Façamos com que todo o nosso tempo nos pertença, o que só será possível se começarmos por tornarmos donos de nós próprios. Quando nos será concedida a indiferença perante as boas ou más graças da fortuna? Quando nos será dada a faculdade de dominar todas as paixões, de submetê-las à nossa vontade, de poder enfim dizer esta palavra: ‘venci!’? Perguntas-me quem é que eu pretendo vencer? Não são os Persas, nem as últimas tribos da Média, nem os povos guerreiros que porventura existam para além da Dácia, mas sim a avidez, a ambição e o medo da morte – que até dos grandes conquistadores do mundo saiu vencedor!

O conhecimento da Virtude e da Adulação para Sêneca parte, com efeito, da representação ou imagem (phantasia) que é a impressão que um objeto real faz na alma, impressão análoga, para Zenão, a de um selo sobre a cera ou, para Crisipo, à alteração que produz no ar uma cor ou um som, que se propõem à alma e à qual a alma pode dar ou negar seu assentimento voluntariamente, ou seja, é a vontade ligada à alma do universo que dirige a vida do sábio estóico.
Se se equivoca, ela cai num erro e tem uma falsa opinião; se acerta, tem então a compreensão da percepção (catalepsis) do objeto correspondente à representação; e há que se notar que, neste caso, a alma não se contenta em ter a imagem do objeto, mas em captar imediatamente e com perfeita convicção, pois capta não as imagens, mas as coisas. Assim, temos o sustento racional para as ações virtuosas do sábio que, mesmo utilizando-se da adulação, o faz conforme a Natureza.
Afinal, vemos um Sêneca bem próximo dos ideais dos estóicos antigos, mesmo que seu contexto venha agregar algum diferencial. E este diferencial é justamente o amadurecimento que o estoicismo sofreu durante sua existência e também por causa da influência do helenismo e da cultura romana. Sêneca nunca atribuiu a sí o título de Sábio, entretanto, o saber atuar conforme a Natureza, mesmo diante do contexto de adversidades em que ele viveu, faz dele um homem de boa vontade. Talvez por isso se justifique seus deslizes.

2.1 Sêneca Problematizador

Após um período de esplendor e conquistas, o império romano começou a sentir os sintomas de decadência sócio-economica e política, com a resultante perda de sentido existencial. Dentro da tradição da Escola, a pregação estóica visava fortalecer o indivíduo, levando-o a uma autonomia própria, que o ajudasse a enfrentar o vazio existencial em voga. O estoicismo não deixava de ser uma contestação política, motivo pelo qual se viu molestado.
Nunca, porém, chegou a constituir em partido político. Ateve-se quase que só à sua dimensão ética, diríamos que foi uma mentalidade do contexto. Com o estoicismo, firma-se a noção de filosofia como atitude existencial. Saber levar a vida com filosofia é saber levá-la sabiamente, controladamente, sem se deixar arrastar pelos arroubos e pelos excessos.
Nossa pesquisa está centrada no período imperial, com o filósofo Sêneca (4 a.C. – 65 d.C.) que foi tutor de Nero e, mais tarde, por este condenado ao suicídio. Escreveu várias obras, contudo é Cartas a Lucílios a que vamos dar ênfase.
Humanista, no pleno sentido da palavra, sem dúvida é o título que mais glorifica o filósofo cordovês. Ele lançou a semente da moderna idéia de fraternidade universal dos homens.

Nas Cartas a Lucílios nos deparamos com a problematização de três conceitos bem próprios do estoicismo e que nos remetem à idéia de fraternidade universal:

a) Doença: a crise existencial que atinge a época é motivo da não leitura contextual da realidade, donde citamos: “já é motivo para felicitar certos doentes o fato de eles próprios se reconhecerem doentes” – o estoicismo aponta para um esclarecimento da realidade, aponta para uma saída; incita a viver o presente de modo consciente e responsável. É a leitura do universal que antes não era possível e agora é obrigatória. Doença que pode causar morte, não somente física – que não seria um mal para os estóicos – mas a morte em relação à virtude, que tem como seu preço a liberdade;

b) Amizade: aponta para o universal: é na Natureza que se tem o ponto de apoio donde se tira o costume de agir: Lógica X Física X Ética. Citamos: “aprender dá-me sobretudo prazer, porque me torna apto a ensinar”. A situação cosmopolita abriu o horizonte do ser pensante, agora ele tem que pensar de forma universal; isto significa pensar não somente no cidadão grego, mas em todos os seres pensantes, no mundo.

Depois de se reconhecer doente frente ao contexto de mudança, já tendo indícios de que a saída para o caminho da virtude – mesmo estando impossibilitado de exercê-la – estaria na Interioridade, o ser pensante da época começa a colocar em prática, de modo astuto, a amizade. Esta é uma primeira tentativa de resolver a situação dos doentes que o estoicismo assinala, pois para este, a filosofia só trás de útil à humanidade seus preceitos; o que importa é ajudar os desgraçados.
De que adianta alcançar o status de sábio se não puder colocar em prática aquilo que exercitou? Ainda mais: de que adianta tudo isso se o egoísmo não permitir ensinar ao outro para que o mundo seja melhor? O ideal estóico da amizade é multiplicar os preceitos para uma vida reta em comunidade; para uma política que prestigie a virtude.
Consciente do pouco tempo de vida que o humano possui, o estóico aceita que “o que a vida tem de bom não é a sua duração, mas sim o modo como a empregamos”, sendo assim, deve-se empregar o tempo existencial procurando se aperfeiçoar nos propósitos elevados do sábio, voltados para uma vida com a comunidade real. Essa virtude que se alcança com a prática das doutrinas estóicas é o bem autêntico: “apenas o sábio conhece a verdadeira alegria, essa exaltação da alma na plena posse dos seus bens autênticos”. No entanto a atmosfera adulatória vivida pelos cidadãos do cósmos romano não permitiria viver o ideal do sábio de modo pleno, isto é, no exterior e no interior. Ora, a astúcia estóica permitiu ao cidadão ser livre apoiando-se no único bem que realmente existe: a razão que tudo rege, que está na Natureza e que está presente em cada pessoa. A saída estaria na Interioridade.

c) Interioridade: o individual se basta; ser sábio é saber atuar independentemente do mundo, que agora se situa em cósmos. Citamos: “Queres saber o que lucrei hoje? Comecei a ser amigo de mim próprio”. É a mudança fundamental aplicada pelo estoicismo na mentalidade do ser racional da época. O sábio basta-se a si mesmo, tem um poder interior (algo semelhando ao E.S. no cristianismo) capaz de tirá-lo da crise e orientá-lo à vida reta, onde a adulação (negativa) não é necessária, e a política se dá fundamentada na amizade, porque “sente o que sente continuamente e não num dia qualquer – só o sábio se contenta com o que tem, todos os insensatos sofrem de descontentamento consigo mesmos.” Além disso

para os estóicos, não há garantia de virtude a não ser nos estados de escolha para a virtude que eventualmente, pontualmente, conseguimos usando os lógoi (discursos conscientes, pensados). A segurança de um fim último está banida da Stoa porque a temporalidade da virtude é pontual. Vivendo de uma só vez a história como quase-existência e a realidade doutrinária como existência, a consciência estóica preenche, em cada coração, sede do hegemônico (parte da alma que tem o poder de dirigir), o espaço político deixado vazio pela ausência da Cidade.


Ou seja, a interioridade que estabelece a segurança, a faz baseada na consciência das ações; um aperfeiçoamento que pode ser ensinado aos outros, pela amizade. Contudo, é de modo gradual que se consegue chegar à perfeição:

Mas, como adquirir sabedoria? Praticando-a diariamente, ainda que em escala pequena; diariamente examinando a nossa conduta no fim do dia; mostrando-nos duros para com nossas faltas e compassivos para com as dos outros; associando-nos com os que nos excedem em sabedoria e virtude; tomando um sábio de reconhecido valor como nosso invisível guia e juiz.

E como estamos vendo, a interioridade estóica aponta para o relacionamento, primeiro consigo mesmo, mas com vistas ao outro, pois esse estado de sabedoria só se consegue estabelecendo conexões dentro de um sistema de consciência plena.

A amizade estabelece entre nós uma comunhão total de interesses; nem a felicidade nem a adversidade são fenômenos individuais: vivemos para a comunidade. Não é mesmo possível alguém viver feliz se apenas se preocupar consigo, se reduzir tudo às suas próprias conveniências: tem de viver para os outros quem quiser viver para si mesmo.

Assim sendo, a interioridade faz pontes com o coletivo, o plural, ou melhor dizendo, com o Cósmos que está à frente do novo cidadão, que agora se vê diante do mundo, consciente de sua integração nele. Por conseguinte, as relações políticas se dão de modo intersubjetivo, uma vez que é a partir desse tópos (lugar consciente) existencial que o estoicismo vai direcionar seus conselhos morais, apontando a interioridade consciente de suas ações como paradigma para a amizade, que se mostrará em relações políticas saudáveis, livres dos vícios e da adulação. Aliás, “o bem que é a liberdade terás tu de dá-lo a ti mesmo, de o reclamar a ti mesmo!” [...] Ora, “de fato, enquanto o corpo, para se tornar vigoroso, depende de muitos fatores materiais,, a alma encontra em si mesma tudo quanto necessita para se robustecer, alimentar, exercitar.”


2.2 A Política e a Interioridade Estóica

A Natureza é reguladora do todo para Sêneca. Logo, regula a política, que agora é uma cosmopolítica, que tem seu centro na interioridade da pessoa. Para que esse centro seja descoberto é necessária a iniciação na caminhada rumo à sabedoria, à perfeição do sábio estóico, que se dá através do combate às paixões que corrompem a alma. As relações de amizade são pautadas na concepção do universo, ainda mais quando este universo está presente em cada pessoa de modo diretor. Assim, as orientações das relações políticas que Sêneca indica são todas fundamentadas nos conceitos de Natureza e Interioridade, isto dentro do sistema estóico: Físis x Lógica x Ética.
A notícia de que o pórtico imperial nos traz somente conselhos morais, é rasa diante da profundidade do pensamento estóico. É moral porque se fundamenta principalmente no ser humano e suas relações (internas e externas), dando diretrizes que afetarão de modo significativo o Ocidente posterior, principalmente nos campos da teoria do conhecimento e a doutrina das leis naturais e dos direitos naturais. Justamente no campo da Política, o estoicismo, e com maior ênfase, o imperial/romano, vai fazer uma sutil, porém fundamental contribuição: o instrumental Interioridade X Natureza.

Sob certos aspectos políticos e éticos, Alexandre e os romanos foram as causas de uma filosofia melhor que nenhuma outra das professadas pelos gregos em seus dias de liberdade. Os estóicos, como vimos, acreditavam na fraternidade humana, e não limitaram suas simpatias aos gregos. O longo domínio de Roma habituou os homens à idéia de uma civilização única sob um governo único.

Este instrumental, que não vai ser muito desenvolvido neste trabalho , é um dos principais guias políticos-religiosos posteriores ao contexto que estamos estudando. Ele apresenta a noção de universalidade aplicada tanto pelos imperadores que sustentaram o Império Romano, primeiramente de forma bélica-cultural e, progressivamente, com a decadência, de forma religiosa. Afinal, a catolicidade demandada a partir do monumental encontro entre culturas através das conquistas romanas do período, desenvolveu-se durante os séculos posteriores e ainda hoje está presente na mentalidade humana.
O contexto tem importância capital para o estudo da política no período imperial do estoicismo, visto que o Império Romano, já dando sinais de decadência (Séc. I), ostentava de modo soberbo uma imagem de poderio que já não existia. Mesmo assim, exercia uma forte influência sobre as pessoas que de alguma forma participavam do Império, seja como cidadãos ou como escravos. Tanto uns quanto os outros tinham leis a serem seguidas; foi dentro desse ambiente que surgiu o estoicismo com a proposta de resgatar os desorientados, apontando a lei da Natureza como base sustentável para a situação vivencial presente.

A lei da natureza, fundamento verdadeiro da sociedade humana, faz com que o homem, pelo fato mesmo de ser tal, não seja estranho ao homem; mas ainda, exige, como ensinavam já os cínicos, que todos os homens se considerem conacionais e concidadãos e que seja uma a vida e o mundo. Assim no cosmopolitismo já se afirma em Zenão um vínculo universal entre os homens, que, nos estóicos romanos, alcançará aquela ‘charitas generis humani’, que os aproxima do Cristianismo.

Todavia dissemos: Império. No império quem “manda” é o imperador, além de percebermos nas notícias antigas certas nuances direcionando nossa visão para o lado coercivo deste modo de política. Ora, se a característica política do Império Romano, na época de Sêneca, era a de uma PAX ROMANA – apontava para uma liberdade dentro daquilo que o Império determinava. “Mas, embora o mundo se sentisse feliz, a vida perdera certo sabor, já que se preferira a segurança à aventura”. Como exercer a liberdade que era concebida a partir da Natureza?
Há duas noções de natureza: uma interna e outra externa ao humano. Para o estoicismo, pensar em si é pensar com a Natureza, tendo seus pressupostos como base. Ora, se a Natureza é tudo, deus, a razão perfeita, providência... somos como que pequenos deuses, visto que participamos dessa Natureza de modo essencial e também vivencial. Porém, no ser humano, as relações com a Natureza nem sempre são bem compreendidas e se distorcem conforme as épocas e as regiões.
As catástrofes naturais, as estações do ano, por um lado, e a escassez de alimento causado pela grande concentração de pessoas em determinadas regiões, sempre foram as principais causas de desavenças entre os humanos. No entanto, não encontramos esse desequilíbrio nos animais que não têm a inteligência racional que se apresenta no ser humano. Entender e seguir as relações entre a natureza interna e a externa é que faz de um homem um sábio. Claro, conforme as orientações do estoicismo, este entendimento se dá em um processo sistematizado: compreender o mundo é muitas vezes compreender a si mesmo e vice-versa, donde a frase: O sábio basta-se a si mesmo.
A mentalidade política se fundamentava na pólis grega, onde tudo tinha seu perímetro, e cada um “sabia” sua função no mundo, que muitas vezes apresentava seus limites como sendo os limites dos muros da cidade. Por isso, com o advento do Helenismo trazido por Alexandre Magno e suas grandiosas conquistas, o mundo externo e interno do ser humano racional mudou. Antes, ele vivia numa espécie de idade de ouro, com certa tranqüilidade de alma, ou para usar um termo mais estóico: imperturbabilidade de alma. Sim, a alma do mundo integra-se com a alma humana para os estóicos. Entretanto, para se chegar a esse entendimento é necessário verificar de modo sóbrio a Natureza e sua lógica, seu movimento, onde tudo nasce, cresce e morre. Daí a máxima: vive conforme a Natureza.

Em certo sentido, toda a vida está em harmonia com a Natureza, já que foram as leis desta última que a causaram; mas, em outro sentido, a vida humana somente está em harmonia com a Natureza quando a vontade individual é dirigida a algum fim que está entre os da Natureza. A virtude consiste em uma vontade que está de acordo com a Natureza. Os maus, embora obedeçam por força às leis de Deus, fazem-no involuntariamente; segundo o símile de Cleantes, são como um cão atado a um carro e obrigado a ir aonde este vá.

“Viver conforme a Natureza” não é uma aceitação completa e cega da primeira noção que se apresenta, que é a de determinismo passivo. Poderíamos chamar de um determinismo ativo, atuante, que encerra em si uma presença em movimento rumo à sabedoria, rumo ao entendimento completo, à virtude política. Nosso contexto epocal é o de não liberdade, ou melhor, de liberdade determinada, que exige uma atitude passiva diante das leis predeterminadas. Não é mera semelhança com a noção vigente na superficialidade da política estóica. Certo é que essa leitura é fruto de uma visão desvirtuada da realidade da Natureza; ainda mais quando na época a mentalidade que imperava era a de um Estado Natural, em que se se podia pautar suas ações conforme a Natureza.
Ora, que significa, então, viver conforme a natureza para os estóicos?

Foi Zenon o primeiro que, em seu De natura hominis, disse que o viver conforme a natureza é o mesmo que viver segundo a virtude, pois ela é a natureza. [...] e para Sêneca? Vivere naturae tem sentido metafísico, porque a natureza é por ele entendida como especificidade do homem, isto é, como ente dotado de razão. Logo, viver de acordo com a natureza é desenvolver a razão e pautar-se por ela. Por outra, o homem deve submeter-se à ordem do universo, onde se expressa a ratio. Esta identifica-se com Deus ou lógos.

Ainda há por falar sobre esse assunto a questão do lógos. Para Zenon, lógos identifica-se com Deus, que cosmifica as coisas, que cria o mundo, tornando-o corruptível. Essa corruptibilidade é expressa na noção de conflagração universal pelo fogo, uma espécie de Eterno Retorno. Por isso há de se entender a máxima em seus fundamentos, justamente para não nos confundirmos sobre as intenções políticas do pórtico, visto ser uma noção que perpassa os períodos estóicos. A passividade é só aparência para o verdadeiro estóico, dentro de si, há um turbilhão em movimento, há um eterno renascer; é dessa perspectiva que estamos falando de interioridade e política.
Note-se bem, é justamente da noção de superficialidade na política estóica que queremos nos distanciar, para somente depois apresentar a política estóica como uma saída, ainda que moral, ao problema da repressão imperial exercida na época.
Sêneca foi preceptor e senador de Nero, conviveu com o poder, teve muito bens, todavia também foi exilado e sofreu as angústias do desprezo quando foi condenado a se suicidar. No entanto poderíamos perguntar se ele entendia qual o real propósito da filosofia que escolheu para si. A resposta não poderia ser outra: sim. Ora, a liberdade interior é maior que a do ambiente humano porque se pauta na Natureza. É uma revolução para todo o pensamento político também porque apresenta entre senhores e escravos um mediador imparcial que indica o caminho do equilíbrio através da interioridade.

O fim ideal do indivíduo é a criação e conservação de uma harmonia de vida, que é nele conformidade com a sua natureza interior, enquanto é conformidade com a natureza universal. [...] A Razão universal afirma-se no indivíduo, só na medida em que este sabe identificar-se com ela.

A Interioridade é um caminho que pode ser seguido de muitas maneiras. Caso não seja possível vivenciá-la junto aos homens da mesma nação, será possível exercê-la em qualquer outro lugar. Se por ventura perdermos nossas terras, família e bens em geral, se tivermos a correta noção de virtude, que é completa em si (em coisa nenhuma podendo ser diminuída ou aumentada), nada teremos perdido em relação à nossa liberdade política e moral.
Não pensemos que o ideal estóico é isento de sentimentos para com esses tipos de bens, pois apenas os colocam como bens intermediários. A virtude é o bem supremo. Podemos citar o exemplo de Estilbão apresentado por Sêneca:

A cidade fora tomada, os filhos e a mulher pereceram, tudo era pasto das chamas; sozinho, e apesar de tudo feliz, Estilbão partia, quando Demétrio, aquele que das cidades destruídas tomou o cognome de Poliocertes, lhe perguntou se havia perdido alguma coisa. Resposta do filósofo: ‘não, todos os meus bens estão aqui comigo’. Isto é que é ser um homem forte e indomável, capaz de vencer a própria vitória do seu inimigo! ‘Nada perdi’, disse ele; e com isso forçou Demétrio a duvidar do seu triunfo. ‘Todos os meus bens estão aqui comigo’: a justiça, a virtude, a prudência, este simples fato de não considerar como bem algo que se possa perder.

Enfim, temos o sábio estóico como aquele capaz de progredir até à virtude, à felicidade, à contemplação da razão universal que tudo dirige e em tudo atua. Este sábio será capaz de ser o pedagogo do mundo, assim como o quis ser Sêneca. Ele faz uso do duplo registro; ele sabe viver em meio ao cósmos que é regulado pela razão e pode conviver com o destino sendo livre.
Assim, faz de sua interioridade o instrumento para alcançar a virtude, vivendo bem consigo mesmo e com o outro. O sábio é quem elege a virtude como parâmetro para a política; a interioridade passa a determinar a forma de intersubjetividade que incide nas relações de amizade e adulação que acontecem na vida política. Essa interioridade vive conforme a natureza e transforma o cidadão e o mundo em um desdobramento do lógos ou da razão universal, que prefere o bem para todos.
Por outro lado, o insensato pensa saber viver, pensa ser feliz com toda a sua materialidade – pois sua felicidade se baseia nisso – mas é escravo de si mesmo e, ao menor sinal de ruptura em seu tópos imaginário, entra em crise, carecendo de guia para o espírito, para a alma.
A interioridade faz pontes entre a política e a amizade, donde apresentamos o instrumento adulação, que deturpa as relações. Essa intersubjetividade ultrapassou os séculos, por isso, nossa hermenêutica se fará diante desta perspectiva.

3. AS RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS: POLÍTICA E ADULAÇÃO

Sendo a adulação um processo comum à espécie humana, podemos contextualizá-la com nossa época dizendo que vivemos num mundo que se quer global , contudo com interesses adulatórios. Um bom exemplo seria que os países detentores da ação (conscientes ou não disso), que poderia ser benéfica, utilizam-na em benefício próprio, criando assim uma política de opressão, onde a amizade tem fins lucrativos só para um dos lados, e a política é pautada pelas relações de especulação, destruindo a vida e aprofundando a doença daqueles que nem sequer sabem porque vivem neste mundo. Assim, esta patologia causa uma doença ainda maior: a falta de vida ainda no presente de cada ser humano, que reflete na falência do sistema intersubjetivo de nosso sitz in lebem (situação vivencial).
A utilização do instrumento adulação é tida como normal sem se levar em conta a consciência particular de cada indivíduo; e até mesmo se se tem a noção de cósmos que é requisitada num ambiente como o que vivemos em nossos dias. Da mesma forma habituaram-se os estóicos em seu período de vivência, e, com mais precisão, viveu Sêneca na sociedade romana do século primeiro.
Como temos visto, a razão universal foi um pressuposto para que o império romano se sustentasse e estendesse seus interesses diante dos subjugados. Relacionar a intersubjetividade que há em nossa época com as questões políticas não fica muito além daquela problemática tratada anteriormente.
A adulação ainda deturpa as relações. Enquanto não houver clareza na compreensão do que seja a razão presente no mundo, não haverá possibilidade de uma cosmologia estóica, de uma busca do bem para sociedade e para cada ser humano.
Trata de versar sobre a atual situação brasileira, talvez mundial, que não atinge mais seu objetivo principal que é educar um povo para a cidadania, fazendo com que haja o respeito mútuo entre as pessoas. Talvez até mesmo como diria Freud : civilizando o ser humano para viver em “paz” como sociedade. Mas, ao invés disso, ultrapassa a linha do amor pelos novos aprendentes.
A violência retrata a realidade da política e da educação, afinal, estamos educando para quê? Por conseguinte, damos um salto comprensível diante do atual contexto: o direito e a força são os atuais instrumentos de correção de nossos equívocos educativos das últimas décadas. De nossa mentalidade adulativa, que se espreita em conseguir somente aquilo que importa para o individual, sem levar em consideração o todo, que está intimamente ligado com suas partes através do lógos que o rege. A educação se transformou em correção pela Lei, que é aplicada na sociedade para que esta seja sociável e tenha aparência de pátria; para que tenha aparência de uma política que se pauta pela razão universal. Afinal, todos somos seres humanos e dividimos o mesmo mundo.
Ressaltar a importância dessas relações é de suma importância não só para o pesquisador, mas também para toda a sociedade hodierna e posterior, pois vemos que a adulação, se usada sem a devida astúcia , pode deturpar as relações, tolhendo a liberdade consciente das pessoas que vivem num mundo de grandes transformações técnico-científicas.
A Adulação se dá no ambiente estóico com várias possibilidades de interpretação que somente o sábio pode utilizar-se convenientemente. Ora, a busca pela verdade, pela virtude, sempre foi uma preocupação da filosofia da Stoa, entretanto, sabemos que ao ler textos antigos nos deparamos com dificuldades interpretativas, hermêneuticas, e é por isso que buscamos em Rachel Gazolla a tese do duplo registro para nos auxiliar em nossa análise.

3.1 O Duplo Registro

Nossa época vive uma busca incansável pela verdade absoluta, busca-se bases para uma segurança ideal. O conceito de segurança utilizado aqui não é somente o de segurança física, tal como necessitamos dos agentes policiais, ou das autoridades econômicas, políticas, mundiais, etc, mas é o de uma segurança de vida interior. É de uma leitura de mundo segura que estamos falando, pois somente com este tipo de segurança as pessoas que estão em cargos de poder poderão estabelecer-se de modo a proporcionar segurança às outras pessoas.
Uma leitura de mundo nem sempre aponta para os mesmos caminhos, tem-se muitas vezes opiniões diversas e contraditórias a respeito de determinados assuntos. Para que isso não aconteça, a escola estóica apresenta um caminho: VIVER SEGUNDO A NATUREZA. Essa chave hermenêutica nos leva ao sentido estóico tantas vezes utilizado por Sêneca, como em:

Consente que eu use o vocabulário de toda a gente, sem entenderes as minhas palavras em sentido estóico. É crença nossa que todo o prazer é um vício. Seja; nem por isso deixamos de empregar o termo ‘prazer’ para denotar uma alegria interior. Sei muito bem, repito, que, de acordo com os nossos dogmas, o ‘prazer’ é uma coisa indigna e que apenas o sábio conhece a verdadeira alegria, essa exaltação da alma na plena posse dos seus bens autênticos.

Esse é apenas um modo de o Duplo Registro se expressar. Mas mesmo ainda assim temos um problema de interpretação, pois insistimos em ler o passado com nossos olhos, por isso a noção de Duplo Registro nos é salutar para adentrarmos nesse ambiente.
Rachel Gazolla propõe as denominações lógos crítico e lógos dogmático:

a) Logos crítico: há uma historicidade humana cujo modo de ser, de estruturar-se no tempo, de conhecer, de dizer e determinar o dever-ser recebe as mais severas críticas da escola;
b) Logos dogmático: há um dizer paradigmático que se assenta na physis como a pensou o Pórtico e serve de fundamento para as reflexões do ser, do dizer, do dever-ser, do conhecer, marcando o distanciamento do dogma físico com a crítica do homem em sua historicidade.

Essa historicidade humana atacada no item A permanece hoje com as várias tentativas de acomodar os vários níveis de soluções, sem se levar em conta a pluralidade do mundo e das pessoas, o que poderia se refletir num respeito tanto pela natureza quanto pelo ser humano.
Há aqui outra ponte a fazer: a relação lei-natureza e a physis-pólis, pois o duplo registro presume esses termos para sua posição, visto que é da própria harmonia de forças contrárias que a Natureza é constituída. Sendo que “a justa medida contemplada na natureza é o que se deve buscar na vida política e particular” para que a segurança nas relações, tanto vivenciais quanto interpretativas possam acontecer de forma profícua e gerem vida para as pessoas e para o mundo.
A insegurança existencial, gerada pela perda do referencial de vida, de contexto próprio, é apresentada pelo duplo registo como sendo algo de aproximação do lógos que está presente em cada pessoa. Ora, o único saber seguro é o de que nascemos e vamos morrer. Se a vida é preparação para a morte, vivamos como que aproveitando cada instante, afinal, o que era para o estóico o referencial de interioridade? O tempo em que se apreende o momento vivido. Esta é a segurança preconizada pelos estóicos. É se saber inserido num mundo que não é estranho em qualquer lugar, que podemos entendê-lo se encontrar-mos a serenidade adequada.
O duplo registro responde como sendo o lógos dogmático o mais adequado para a vida no mundo que é racional. Em contrapartida, o lógos crítico ficaria para aqueles que são irracionais e buscam o inexplicável, tem fome do infinito. Para o estoicismo o mundo é finito justamente porque a finitude está presente no homem e, aquilo que podemos compreender é material e está em constante movimento, eterno retorno.

3.2 A Adulação

Enfim, o que é a adulação (para os estóicos) senão a posse da ação consciente para deturpar a virtuosidade encontrada na natureza; não é ela ir contra a natureza e seus preceitos eternos? O sentido da adulação se mostra na doença posterior ao entendimento da ruptura da pólis para o cósmos, pois aí sim temos um ser verdadeiramente doente, pois engana conscientemente o próximo e a si mesmo, fugindo da ordem lógica da natureza. A orientação estóica é em virtude de corrigir esse desvio, apontando para nossa própria tendência em errar, não obstante na capacidade de aprender a ser sábio. Pois só o Sábio sabe utilizar a Adulação conforme a Natureza.
Toda a gente, repito, tende para um objetivo: a alegria, mas ignora o meio de conseguir uma alegria duradoura e profunda. Uns procuram-na nos banquetes, na libertinagem; outros, na satisfação das ambições, na multidão assídua dos clientes; outros, na posse de uma amante; outros, enfim, na inútil vanglória dos estudos liberais e de um culto improfícuo das letras. Toda esta gente se deixa iludir pelo que não passa de falacioso e breve contentamento, tal como a embriaguez, que paga pela louca satisfação de um momento o tédio de horas infindáveis, tal como os aplausos de uma multidão entusiasmada – aplausos que se ganham e se pagam à custa de enormes angustias! Pensa bem, portanto, no que te digo: o resultado da sabedoria é a obtenção de uma alegria inalterável.

Fazendo assim, não exclui ninguém dessa capacidade, pois “a natureza dotou-nos com aptidão para aprender, deu-nos razão, imperfeita, mas capaz de aperfeiçoamento”. Com esse tipo de ação virtuosa espalhada pela comunidade, não é difícil imaginar uma política mais virtuosa, justamente porque se baseia na Interioridade, que é o movimento principal para construir o bem mútuo: a relação com o outro baseado em si mesmo.
Alcançar o ponto de ligação entre a adulação estóica presente no ambiente do estoicismo romano e nossa atual sociedade, ou seja, que isto é possível e pertinente, também é um assunto simpático, que já se autoproblematiza só pelo fato de a multiplicidade presente em nosso mundo global ser mais complexa e multiforme que a do Império Romano do século I, mas essa é uma discussão para um trabalho póstumo.






4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sêneca muitas vezes se aproxima da obscuridade de Heráclito e é até chamado de conturbado. Mas não seria justamente por causa do senso prático adquirido pelo contato que teve o estoicismo atráves do helenismo com as outras culturas diferentes da grega? O espírito prático romano fez com que o estoicismo se voltasse para outras perspectivas da vida, como por exemplo a moral e a política.
Estudar Sêneca, em princípio pode parecer estudar um filósofo estagnado, insosso, isso em vista de suas colocações astuciosas e sedutoras, sempre visando, de uma certa forma, adular seus leitores e futuros discípulos. Mas com o aprofundamento no contexto, percebemos algumas preocupações distintivas em nosso pensador cordovês, como por exemplo a noção de humanidade levada à todas as pessoas. A relação entre a adulação e política presente em sua mentalidade literária vai nesse sentido, ele busca construir novas personalidades em meio a um ambiente muito hostil.
A Adulação é colocada como vício a ser extirpado do meio em que se busca a virtude. A virtude é seguir a Natureza buscando nela as diretrizes para o bem agir, o agir prudente. Ora, não é prudente ignorar o semelhante, ainda mais quando se sabe que ele respira o mesmo ar, e que esse ar está impregnado pela alma do Universo, que tudo dirige. Se se vive em uma cosmópolis deve-se viver bem, ora, viver bem não significa somente estar bem consigo mesmo, mas também com o outro e com a Natureza.
Sêneca avança nesse sentido e busca conselhos morais de como viver bem, segundo a Natureza, na relação estabelecida pelos antigos estóicos. Progredindo no caminho do sábio, se aproxima do ideal de plenitude, de indiferença em relação às paixões, que atrapalham as relações entre as pessoas. A amizade e a política ficam comprometidas quando não se está no caminho do sábio; e o sábio estóico aponta para uma noção de igualdade e justiça ainda desconhecidas pelo contexto romano e que só posteriormente serão desenvolvidas e ampliadas como conceitos próprios à essência do ser humano. Um valor que diferencia esse humano dos demais seres e o capacita de atingir o ideal do sábio que poderá sair da crise existencial gerada pelo novo cósmos.
A proposta senequiana não é a de uma politéia zenoniana, isto seria um ideal utópico para o pensador espanhol. Ele é mais prático, ao sabor romano. Apenas vislumbra uma sociedade mais humana e mais participante do mesmo Lógos. Sim, poderia haver o Império, ou qualquer outro regime político, desde que os habitantes estivessem iniciados nos ditames da Natureza; desde que o indivíduo cultivasse sua interioridade e desenvolvesse sua apatia.
Ora, a apatia estóica não se resume à indiferença do indivíduo que agora está inserido no cósmos, mesmo porque esse indivíduo é levado a ter a Representação da Razão Universal que rege a humanidade e a política, e, conseqüentemente, tem nela um guia sustentador da cosmopolítica. A Adulaçâo passa a ser fruto dessa representação que é distinguida pelo sábio para uso nos momentos certos sempre com a sua inconfundível astúcia.
A política se pauta numa relação com o outro, na intersubjetividade das pessoas. Através dessa relação se constroem ou destroem os regimes políticos. Os ideais estipulados pela confluência de idéias que nascem das relações políticas movem muitas outras vidas, transformando-as de modo sensível. O sábio estóico não é insensível porque “sabe onde mora”, sabe que vive em afinidade com um mundo de relações complexas; e tem entre seus objetivos cultivar a virtude, alcançá-la e apresentá-la aos outros para que outros saiam de seus vazios existenciais diante das bruscas mudanças geradas pelo helenismo e suas conseqüências políticas e culturais. Esta é uma das propostas pedagógicas que são eternizadas pelos pensadores do Pórtico.
Articular a vida de modo racional, para os estóicos, é algo relacionado ao princípio da Natureza que a todos sustenta com suas benesses. Estabelecer objetivos políticos seria uma das formas para se poder chegar a resultados concretos rumo à virtude estóica no ambiente imperial romano. “O sábio estóico está preocupado na construção de uma convivência humana, que ultrapasse os limites políticos da pólis grega e tenha as dimensões do cosmos”. Sendo assim, a política se dá tomando consciência da interioridade que é relacionada com o Todo; e, tomando do fruto dessa consciência, faz a regência das relações políticas, muitas vezes de modo astuto, porém sempre consciente. É a explicação existencial para uma vida sem liberdade. Ora, podemos apresentar os caminhos para uma liberdade imperturbável, mas também podemos usar de nossa imperturbabilidade para sermos livres em meio aos que nos oprimem.
Finalizando, desta forma somos livres dos dois modos. A evolução consciente, do interno para o externo, ou volta ao interno, caso a liberdade externa (de ambiente) seja impossível, é o paradigma estóico, que sempre tem esse Duplo Registro. Conseguir superar a inércia inicial, eliminando a temporalidade do próprio ser , e seguir o ideal do sábio estóico é tarefa árdua, pois muitos preferem a passividade, ou melhor, a comodidade, ao passo que se tornar imperturbável, apático, ao sabor estóico – tendo em vista o contexto de império – seja necessário um cultivo diário do espírito e um entendimento profundo das relações do humano com a Natureza e com os próprios humanos.


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