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Contos-->A viagem -- 28/09/2001 - 00:57 (Rita Roberta Marioto) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Dormia.
Ele dormia sobre o sofá...
A luz da TV esverdeava de futebol o escuro da sala. Numa das paredes, a janela era um quadro translúcido através do qual a luminosidade precária da noite se refletia. Um vento calmo e frio vinha do vidro entreaberto e inchava a cortina...
Torto e amolecido, seu corpo se encaixava no espaço mesquinho do sofá, fazendo com que cada músculo exausto se moldasse às elevações do móvel.
Foi abruptamente que o telefone trinou.
O som era eletrônico e discreto – porém tanta precisão, mesmo suave, agiu naquele relaxamento esquecido de forma agressiva.
Só deu por si quando sua própria voz rosnou rouca pelo fone. Sentia o peito esmurrado pelo coração, assustado com a repentina exigência.
- Alô...
A voz do outro lado vazava rápida do aparelho, em chiados disformes. Ouviu-a aturdido, esfregando como criança os olhos repletos de muco e sono.
- Tô indo.


II


As inúmeras redes vermelhas que envolviam seu olhar eram uma extensão do estado de confusa exaustão em que se achava.
Mirou pesadamente a estrada vazia.
As faixas corriam sob a luz veloz de seu carro. A raiva o mantinha acordado. Amava-a, sim – era sua mãe, afinal – mas as garras daquela possessividade pareciam definitivamente fincadas em sua alma. Antes “você precisa de mim”; hoje “eu preciso de você”. Nunca estaria livre. Mudar de casa, de cidade, não haviam mudado a situação. Tinha 35 anos.... o rosto denunciava mais. Trabalho, solidão e ela desgastavam sua vida.
Passou a mão pelo rosto e fungou o nariz. Olhou o relógio – começo de madrugada. A estrada estava vestida de uma neblina forte e algumas árvores secas erguiam os braços negros ao céu invisível. A sonolência pesava em suas pálpebras.
Foi quando viu, subitamente... adiante ainda... não poderia ser uma árvore... mas... tudo tão retorcido...!
Não era uma árvore.
Parou o veículo e quando desceu o frio molhado da noite abraçou-o. Caminhou até o monte de ferros sanfonado num tronco velho. Não precisou aproximar-se muito para que a visão de tanta mutilação tolhisse seus movimentos e lhe travasse a garganta. Despertou, finalmente - lançado dentro daquele horror.
Demorou para conseguir mover-se. Voltou alguns passos em direção ao seu carro, porém um breve movimento do mato a poucos metros ao seu lado direito travou-lhe novamente as pernas. Olhou. Era uma pessoa. Provavelmente havia sido lançada fora do veículo antes que ele colidisse. Movido por uma força que desconhecia dentro de si, recolheu o corpo e em poucos minutos a estrada mais uma vez se movia sob seus pneus.
Fungou mais uma vez o nariz, agora úmido da friagem. Seus dedos tremiam sobre o volante e um fio nervoso repuxava seus lábios a todo momento. Lançou os olhos sobre ela. Não tinha marcas de sangue ou ferimento expostos, mas de momento a momento seu corpo dava um repelão forte. Era uma moça. Uma jovem. Não deveria passar de vinte anos. Voltou os olhos à estrada. Nunca lhe parecera tão longa. Precisava pensar... mais uma vez derrubou seu olhos de lado. Era bonita... O hospital era próximo e a polícia deveria vir logo. Nenhum outro carro lhe cruzava o caminho... Tinha que avisar alguém, rápido. Seu nariz escorria. Poderia haver outras pessoas... de repente, um desejo estranho irrompeu em seu corpo. Há muito tempo uma mulher não compartilhava com ele um momento sozinho...
Sentiu um golpe profundo de consciência. Fixou os olhos na estrada e sua respiração excitada de pavor e desejo agora era audível. Um novo repelão do corpo fê-la abrir os olhos.
- Você me ouve?
Ela tombou de lado absolutamente inerte. Um choro nervoso travou-se em seus dentes.
Poucos minutos depois entrava na cidade e a luz branca e densa do hospital golpeou-lhe os olhos, trazendo a consciência rude e mecânica da vida...

III

- Por que você demorou tanto?
A voz saía-lhe franzida dos lábios secos. Estava sentada sobre a cama, cobertas puxadas sobre as pernas e as mãos sobre ela, cruzadas.
- Socorri um acidente, mãe...
Narrou em poucas palavras o fato. Inútil. Sua mente caminhava para um mundo desconhecido, povoado de pessoas mortas e pessoas não nascidas. A realidade pouco a pouco deixava-a. A consciência restante, porém, ainda estava ali, como um bicho à espreita. Olho as mãos dela... suas unhas eram grossas e secas, redondas na base e pontiagudas no extremo.
- Aqui está o remédio, mãe. Agora dorme...
- Você vai embora?
- Não... só amanhã... vou ficar aqui perto da senhora... descanse.
No outro dia, quando passou pelo hospital, não parou.
Certamente tudo estava bem. Ela não parecia ferida. Não conseguiria encará-la... recordar-se dos sentimentos da noite anterior. Sentia-se vexado. Foi embora... tinha feito sua parte.

IV

Despertou com a campainha. Quem seria? Olhou o relógio. Nove horas da noite, em ponto. Não esperava ninguém. Girou o molho de chaves na porta e o ruído melindroso e metálico delas fez seus olhos se fecharem por alguns segundos.
Sentia ainda sono... talvez por isso a imagem de sua inesperada visita lhe tivesse parecido tão absurdamente irreal. Era real?
- Eu vim lhe agradecer...
Jamais esqueceria aquele rosto. Aquele corpo. Quanto tempo? Um ano. Sim. Um ano.... quatro meses e 27 dias, exatamente. Pingara-os um a um com o conta-gotas do calendário. Passou a mão pelo rosto e sentiu um bafio gelado vir da porta.
- Posso entrar?
Queimava por dentro. Não sabia o que dizer... pedir desculpas pelo sumiço? Não tinha procurado saber o que realmente acontecera depois do acidente. Tinha fugido como um cão, varrido pela sua própria consciência. Ela estava bem? Ainda estava um pouco pálida, mas as linhas suaves do rosto que vira naquela noite trágica eram as mesmas... Havia alguma seqüela? Aproximou-se. Viu-a sorrir:
- Obrigada...
- Você está bem?
- Só... ficaria completamente bem se... pudesse agradecer a você...
Ela caminhou até a janela e o contorno escuro de seu vestido logo se resumiu somente ao contorno de seu corpo.

V

Olhou a toalha quadriculada da mesa da cozinha de sua mãe enquanto pousava a xícara com o café quente. A colherinha tilintou esquecida. Amargo. Gostava assim. Movia devagar as mãos. Ainda sentia nelas o contato daquele corpo...
- Sabe quem veio aqui ontem?
Bebeu um gole:
- Quem, mãe?
- A Maria, do seu Pedro.
Tinha uma vertigem estranha às vezes... por que os movimentos dela sempre lhe lembravam aqueles repelões bruscos...?
- Verdade? Ela casou?
Ergueu os olhos e a pia velha causou-lhe náuseas. Aqueles dois pregos na parede, unidos por um arame grosso, onde ela pendurava as tampas das panelas, e aquele diabólico tridente retorcido impressionavam-no desde criança. Nada a fazia perder alguns hábitos...
- Casou nada! Mas tá com criança, a vadia...
Por que ela não tinha deixado um telefone...? Tinha-se ido tão inesperadamente quanto viera... Mas voltaria. Ela voltaria, tinha certeza. Havia de encontrá-la novamente em breve. Sentia.
- Sabe quem morreu ...?
- Não...
A velha sentou-se diante dele, na outra ponta da mesa. Por que nunca deixara que ele pintasse de branco o azul encardido daquela cozinha? Odiava aquela cor antiga e escura, repleta de marcas de dedos que jamais se apagariam...
- O Chico Carreteiro...
Esforçou a memória apertando o sobrolho.
- Era um bom homem...
- Sabe quem era irmão dele?
Tragou o café:
- Mãe... ele devia tem uns quinze irmãos...
- Treze. Aquele homem do acidente que você fala às vezes.
Ele arregalou os olhos, um tanto surpreso. Como ela conseguia alinhavar suas emanações daquela forma...?
Ela ergueu-se vagarosamente da cadeira e foi até a pia.
- Me deu dó da menina, filha dele.... tão novinha, tão bonitinha...
- ...Dó? ... Por que, mãe?
- Morreu...a pobrezinha...
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