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Contos-->O olho do furacão -- 27/09/2001 - 00:12 (Luís Augusto Marcelino) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Ninguém nesta cidade ousaria reconhecer o que estou fazendo. Muitos achariam graça, me acusariam de plágio ou mesmo de roubo. Vagabundos não têm vez. Não têm teto. Não têm carro. Nem família. Então jamais acreditarão que eu tenha sido capaz de escrever o roteiro dessa história. Uma história mal acabada. Sem fim. Como a visão dos prédios da capital. Olha-se e não se vê o fim. Parece que o mundo todo cabe aqui. Morcego – um negro de uns sessenta e poucos anos, que só tem as presas para rasgar os restos de frango cozido que o pessoal do Restaurante Birigui nos dá algumas vezes por semana – vive dizendo que sou poeta. Poeta... Poetas são filhos de empresários. Digo, os poetas que dão certo, que publicam livros, que fazem coquetel de lançamento. Que são entrevistados pela mídia especializada em cultura. Eu jamais poderia ser poeta. A não ser que fosse desses poetas do povo, de cordel, de linguagem coloquial e simplista. Sem grandes heróis. Sem grandes citações. Talvez uma ou outra frase aprendida na rua, entre prostitutas, maltrapilhos, baderneiros, comerciantes, camelôs. Roubaria da rua meus diálogos e frases feitas. Não posso ser poeta, deixa estar. Não sei se vim parar aqui porque quis ou se algo sobrenatural me atraiu. É possível que tenham sido as duas coisas. Vim de longe, como a maioria que habita os pomposos casarões dos Jardins ou mesmo os bairros afastados, pendurados nos morros da Zona Norte. Ou então os orientais da Liberdade. Não há, aqui, um bairro negro como o Harlem. Nós, os negros, nos espalhamos por toda a cidade. Nas fábricas e nas lojas de comércio. Nas favelas. Nas humildes casas de alvenaria. Nos imensos apartamentos da Classe Média. Tomamos conta do patrimônio dos ricos. Lavamos seus carros. Limpamos suas vidraças. Desinfetamos os banheiros dos restaurantes finos. Nós e os nordestinos. Nos passamos por cozinheiros franceses. Cavamos os alicerces dos arranha-céus suntuosos. Mas somos uma ameaça. Nós e os nordestinos. Somos os vilões dos presídios. Os assaltantes, os seqüestradores, os malandros, os pichadores, os imundos, os que fedem. Nós e os nordestinos. Os malfeitores.

Por que vim parar na rua mesmo? Ah, sim... Era julho e chovia. Eu estava na Rua São Bento, era fim de tarde. Nunca usei guarda-chuva. Na infância, ninguém de casa tinha dinheiro para comprar. Depois de adulto, por que me habituara a andar desguarnecido. Às vezes me arriscava a perambular pelas ruas do Centro sob a chuva forte. Abaixava a cabeça e começava a dar passos lentos, sem rumo, sem hora certa para parar. Meus sapatos encharcavam. “Lá vai o maluco!” – gritavam os que se protegiam nas entradas dos bares, restaurantes e lojas. De vez em quando eu trombava com alguém que corria. Não me importava com os xingamentos. Prosseguia. Foi numa dessas tardes que enfiei a mão no bolso e puxei umas notas amassadas. Dava para um café e um sanduíche. Quando percebi, estava ao lado da parada de ônibus. Era subir no coletivo abarrotado de gente, pagar a passagem e descer na Rua Parapuã, a duas quadras de seu término. Depois seguir para o barraco da minha irmã Cleuza. Com sorte, ela não desandaria a me acusar de vagabundo naquele dia. Nem espancaria meus sobrinhos. Nem lamentaria não Ter um homem de verdade em casa. Apenas sentaria e assistiria sua novela. Depois esquentaria o que tivesse para comer, nos serviria a todos, e iria para sua cama de campanha. Não suportava mais minha irmã, nem meus endiabrados sobrinhos, nem o Bigode – dono do boteco da rua – a me cobrar a conta vencida. Então não tinha motivo para eu voltar para o barraco. Pelo menos tão cedo. Deixei a cobertura da parada e ônibus e voltei para a chuva., que estava mais amena. Cruzei o Anhangabau, meio inconsciente, não me dando conta dos carros que passavam a todo momento. Um velho de rosto maltratado carregava uma placa amarela. “Precisa-se de jardineiro com experiência.” Cleuza tinha razão, eu acho. Nunca tive experiência em nada. Não tinha profissão. Eu era apenas um ajudante. Ajudante de qualquer coisa, mas jamais fiz o principal. Jamais. A cidade me assustava. Por onde andariam meus outros irmãos? Zé, João, Inácia, Joaquim. Era provável que a cidade os tivesse engolido, como fez com tantos. E estava prestes a fazer comigo. A chuva dera uma trégua. Parei na roda dos cantores chilenos. Sempre achei que eram chilenos, mas também podiam ser bolivianos. Peruanos, quem sabe. Tocavam e cantavam. E eu não entendia o que cantavam. Mas a música soava bem. Uma multidão desesperada desandou a correr pelas ruas estreitas e os cantores se encostaram na parede. “Olha o rapa, olha o rapa!” Fiscais da prefeitura avançavam sobre as barracas enquanto eram protegidos pela polícia. Não tive forças para correr. Apenas copiei a atitude dos músicos. Um policial me encarou. Era preto, como eu. “O quê cê tá olhando, macaco?” Abaixei a cabeça. Ele veio em minha direção. Senti medo. Tenho medo da polícia. “Olha pra mim, negão!” Pensei que ele fosse me agredir. Mas apenas segurou meu queixo com sua mão grossa e soltou uma gargalhada. Deixou-me em paz, por fim. Quando tudo se acalmou, a escuridão já tinha tomado conta do céu nublado. Soprava um vento gelado, daqueles que parecem penetrar nos poros. Minha blusa de lã marrom não conseguia aparar as garras da ventania. Essa dor, a dor do frio, me fazia pensar em desistir da idéia de não voltar para casa. Mas a dor de Ter que enfrentar Cleuza e seus filhos pequenos, de Ter que, mais uma vez, abaixar a cabeça e ouvir sem responder, de tomar aquela sopa rala e me fazer de satisfeito, era muito maior. Então resolvi ficar.
. . .
Já fazia mais de dois anos que morava embaixo do elevado. Nas primeiras noites em que tentei me mudar para lá fui expulso. Os outros moradores não aceitam novatos com facilidade. Tem de fazer algo para se enturmar. Morcego, nego véio, foi quem me estendeu a mão. “Pela sua roupa, neguinho, tu tem casa... Se eu fosse você, voltava pra lá. Isto aqui é o inferno, neguinho!” Falou para os outros que me conhecia. Aí deixaram eu ficar com eles. Dona Vanda me arrumou um cobertor sujo, empoeirado. Era a responsável pelas crianças, e eu era quase uma delas. Não sabia fazer nada, nem pedir. No começo ela resmungava. Mas foi, aos poucos, me adotando. Protegia-me da fúria do Florindo, um dos poucos realmente brancos. Éramos, na maioria, pardos e negros. Florindo viera de Natal. Nunca contou sua história em detalhes. Irritava-se quando alguém puxava assunto. Todos tinham uma história, e todas elas desaguavam naquele viaduto imundo. Quando Dona Vanda, numa noite calma, resolveu me contar sua vida, descobri que queria saber mais sobre todos. No dia seguinte, pedi-lhe que me desse um caderno. “Para que quer um caderno aqui?”. E um lápis. Pedi também um lápis. Ela conseguiu numa papelaria na Duque de Caxias. Falou que era para um dos meninos pequenos. Antes de dormir coloquei um papelão grosso no chão, abri o caderno e comecei a escrever, como se fosse uma carta. “São Paulo, 26 de setembro...” Senti dificuldade de descrever Dona Vanda. Era magra, isso era fácil. Muito magra e quase não tinha peitos. Mas o que eu queria mesmo era conseguir explicar em palavras a tristeza profunda que vinha dos seus olhos negros. Mais de uma vez a flagrei com o olhar perdido em direção aos carros, enquanto esquentava a comida no fogão improvisado. Ela ficava paralisada. Mal piscava. Tinha o costume de coçar o rosto. Suas unhas viviam sujas. E eu, estranhamente, não sentia nojo da sua comida. Um dia ela me disse que queria voltar. “Pro Norte, que pelo menos não sofreria essa humilhação.” E por que não volta? Fiz essa pergunta para quase todos os meus amigos do viaduto. Eu também não queria voltar. Então cheguei à conclusão de que o olho do furacão não deixava. Vivia nos arrastando, impedindo-nos deixar aquela vida, aquele mundo. Eu achava que era o único que tinha explicação para continuar ali. Afinal, minha irmã era um lixo. Seu barraco era um lixo. O Bigode deve Ter me amaldiçoado para o resto da vida. Sete reais e trinta e dois centavos, era o quanto eu lhe devia. Se tudo na minha vida era nojento, então por que voltar? Eu tinha motivo. Mas os outros...
. . .
Houve um Domingo de novembro, avenida tranqüila, poucos carros, o silêncio sendo interrompido de vez em quando pelos ônibus que passavam, em que um casal bem alinhado, beirando a casa dos cinqüenta anos, estacionou um carro azul bem próximo ao nosso “bairro” – que era cada uma das divisões de colunas que sustentam o elevado. Desceram com sacolas nas mãos e caminharam em nossa direção. O senhor vestia um pulôver vinho e usava um daqueles óculos de armação grossa, preta, que se destacava em seu rosto alvo e enrugado. Pensei que tivessem parado ali por acaso. Mas tinham um destino certo. A mulher largou as sacolas perto do nosso fogão e cutucou o Alemão, um dos mais antigos moradores, segundo o Morcego. “Alcides, Alcides! Levanta, homem!” Nunca soubera do nome verdadeiro do velho Alemão. E também não fiz questão de escrever sua vida, já que não entendia metade do que ele falava. Parecia Ter a língua presa. Ao sorrir, soltava mais um grunhido do que propriamente uma risada. Ele se levantou, com alguma dificuldade. Pareceu não reconhecer suas visitas. “Sou eu, Alcides! Maria da Glória, não se lembra?” O homem que a acompanhava permaneceu em pé, observando a reação dos demais moradores. Nada falava. Apenas permanecia ali, inerte, antenado aos nossos movimentos. Alcides, o Alemão, enfim reconheceu a mulher.

- Trouxe isso tudo pra você comer. Mas, olha... mais uma vez eu quero te levar. Já lhe disse que sua mulher sumiu. Não deixou vestígios. Você tem de ir atrás da sua aposentadoria, compreendeu? E tem que dar um jeito nos bens. Estamos quase passando necessidade, é hora de reconhecer tudo o que estamos fazendo por você...

O homem do pulôver vinho mantinha-se calado, observando. Alemão sacou uma maçã da bolsa que a mulher lhe entregara. Devorou-a em poucos minutos. Sussurrou algo que não pude ouvir. A mulher lhe estendeu a mão. Arrastou-o. Saíram vagarosamente no carro silencioso. Meus olhos procuraram o Morcego, mas ele tinha saído. Eu queria saber quem era aquele casal e por que o Alemão tinha ido. Era o primeiro dos moradores a sair do território assim, levado pela família. Outros também desapareceram. Mas sempre soube que fora em situações diferentes. Uns entraram num ônibus e se perderam no destino. Talvez Santo Amaro ou Itaquera – bairros-cidade dentro de São Paulo. Outros foram atropelados. Muitos tantos morreram por ali mesmo, adoentados, acometidos pela Aids ou por tuberculose. O frio também levara a vida de alguns. As campanhas do agasalho nunca foram suficientes para atender a todos. Fiquei imaginando se Cleuza viesse me buscar. Cheguei à conclusão de que aquilo era impossível. Ela vivia querendo se livrar de mim. E acho que fiz o que ela mais queria. Se tivesse morrido a pobre teria que arcar as despesas com o funeral. Nessas circunstâncias, na periferia, o povo do bairro contribui com uns trocados e encomenda as flores. Os vizinhos que têm carro dão carona para as pessoas se despedirem do defunto. É o ápice da solidariedade na favela: os cinco dias que se sucedem à morte de um dos miseráveis.

Morcego chegou duas horas depois de o Alemão Ter ido embora. Corri em sua direção e perguntei-lhe por que nosso companheiro tinha nos abandonado. No fundo, eu senti dentro de mim uma esperança. Talvez um dia eu também pudesse sair dali. Àquela altura da vida eu imaginava que estava fadado a viver para o resto da vida perambulando pela avenida principal e pelas ruas paralelas ao Minhocão. Não sabia fazer nada – como dizia minha irmã. Era o que me restava e já tinha até me acostumado a isso. Mas depois de presenciar o Alcides indo embora, brotou dentro de mim uma vontade de encontrar uma maneira de deixar aquele lugar fétido e barulhento. Morcego me contara que estava ali há mais de sete anos. Eu, há bem menos. Anos que pareciam uma eternidade, até porque me envolvi com cada um dos que conheci. Contaram-me as histórias, os dramas, as alegrias, as mutilações, as rejeições, os complexos, a loucura. Tudo patrocinado pela cidade. Supus que Morcego me faria entender, como tantas outras vezes.

- O Alemão quer morrer, mas não tem coragem de se matar – afirmou o velho.
- Como assim, morrer?
- Morrer, oras... quem vive na rua há tanto tempo, quando volta pra casa, morre. É assim. Sempre. Ele podia se jogar sob um desses caminhões de cerveja. Dar um jeito de entrar nos prédios da Eduardo Prado e se atirar do último andar. Mas tem que Ter coragem... Tem gente que prefere morrer aos poucos. Acho que o Alemão é um desses...

Não tinha reparado. Mas os ônibus elétricos não soltavam fumaça.
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