Boa noite meu velho!
O que me trazes desta vez?
Aqui estamos nós, jogando cartas, trocando impressões, recordando...
É isso meu caro, antes brincava, hoje brinco de escrever e de lembrar. Não sei quem lê e não importa. Sei que nada se afasta, nada se desgarra da memória. O tempo reconstrói cenas, convoca novamente os atores, abre as cortinas!
Lá estou eu, no sobrado de quartos amplos e vasta biblioteca. Lá estão os velhos amigos, sonhos e livros na enorme estante.
O tempo, nós sabemos, não é problema.
Eu e você, velho parceiro. Quantas noites e conversas como esta.
À propósito, li pela vigésima vez nosso estimado Alienista. Vão pensar que é coisa de maluco, com certeza.
Mas tu bem sabes da alegria de reler obras que jamais desertaram da alma. Lembras-te daquele esplendoroso filme? O Fahrenheit ? Claro, o do Truffaut. Lembras ?
As pessoas tornavam-se livros. Naquele lugar marginal da narrativa, havia Rostand, Schopenhauer, Spinoza e tantos outros, espalhados dialogando, do mesmo modo que agora fazemos, eu e tu.
Não posso mais me aproximar do Vinhas da ira, foram quinze dolorosas leituras. Deixo que fique lá, à distância. Não me atrevo a tocá-lo.
Lembras-te das páginas de Sá Carneiro, Pessoa e Quintana?
Pois é, que riqueza de solidão partilhada sem ruído. Peço-te que fales, sabendo que não o farás.
Mas sempre foi assim, não é?
Sempre fostes imparcial e bom ouvinte. Um grande trapaceiro nas cartas.
Muito me apraz, ainda, o velho Machado.
Por falar nisso, não penses que não vi o ás que escondestes sob a mesa.
Continuas o mesmo patife silencioso...
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