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Contos-->Procura-se um escritor -- 17/09/2001 - 23:43 (Luís Augusto Marcelino) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Procura-se um escritor

"Procura-se um escritor. De qualquer gênero, idade ou sexo. Não precisa ter experiência. Pago bem. Oto, fone: 222-4949. h/c." Ao ler este anúncio, fiquei entre a perplexidade e a incredulidade. Já vi de tudo em anúncios de jornal. Promessas de enriquecer do dia para a noite vendendo cosméticos. Carros seminovos e celulares de última geração a preço de amendoim. Fora o "Classisex" - com suas garantias de sexo perversivo à prova de qualquer controle de qualidade, também a preços para lá de especiais. Só não contava com uma chamada daquelas. "Procura-se um escritor." Apostei que fosse uma dessas pegadinhas de tv. Ou talvez mais um tipo de golpe novo na praça. Quem sabe o sujeito, o tal do Oto, não começaria com aquela história de que era um milionário excêntrico e que estava disposto a financiar a obra de jovens autores somente pelo gosto que nutria pela literatura. Depois da primeira conversa, batata: o cara conseguiria sugar dos interessados uma pequena fortuna - que seria recolhida de cada um dos participantes da antologia que ele estava organizando, para ser devidamente distribuída para o Lar dos Escritores Carentes de Taubaté. Desconfiar é verbo de sobrevivência na minha cidade. Recortei o anúncio, coloquei-o no bolso do paletó, e prossegui rumo ao meu destino. A curiosidade ficou comigo.

No escritório, antes de fazer minha primeira ligação do dia, passei a mão no recorte do jornal e o li novamente. Será?... Não, impossível aquilo ser sério. Amassei o recorte e atirei-o na lixeira. Isto só pode ser brincadeira - concluí. Duas horas depois, dona Cris veio recolher o lixo. Espere - pedi. Ela acatou. Vasculhei entre os papéis e encontrei o anúncio amarrotado com uns respingos de café. Não sei porque quis pegá-lo de volta. Já tinha decorado o texto e o telefone, tantas foram as vezes que o olhei. Pode levar, dona Cris! Faltava meia hora para o almoço. E decidi ligar justamente quando os amigos deixassem seus postos de trabalho para matar a fome. Agonia. Ansiedade. Ameacei ligar antes mesmo de os companheiros saírem. Desisti. Senti vergonha. Somente as 13:00 disquei para o número.

- Boa tarde, estou ligando por causa do anúncio.

- Ah, sim. Boa tarde. Então se interessou pelo trabalho? Qual o seu nome?

- Toninho. Quer dizer, Antônio. Antônio Gonçalves, muito prazer.

- Oi, Antônio. Pois não, sou todo ouvido.

- Bem... não sei direito o que dizer, não sei por onde começar. No que consiste o trabalho? Seria uma antologia? Uma biografia, talvez?

- Você não é o primeiro a ligar.

- Imaginei.

- Estou morrendo.

- Como assim?


- Morrendo... a ponto de ir para o céu ou para o inferno. Antes disso, um estágio no Araçá, sabe como é.

- E quer que alguém escreva sobre a sua vida, é isso?

- Mais ou menos.

- Como assim, mais ou menos?

- Minha vida não tem nada de interessante. Ninguém compraria o seu livro se contasse a minha vida. Na verdade, o livro de quem for o escolhido. Pode me enviar seu currículo?

- Mas o anúncio dizia que não era preciso ter experiência. Nunca publiquei nada.

- Então poderia me enviar algo que escreveu. É assim que estou fazendo a seleção. Currículo, textos e entrevista.

- Acho que não sou a pessoa certa para este trabalho, Sr. Oto. Não quero mais incomodá-lo. Espero que tenha sorte e que encontre um excelente escritor.

- Espere, Antônio! Ainda não lhe disse o que quero que seja feito. Não tem interesse em saber?

- Ah, sim. Acabei esquecendo. Se não é uma biografia, então qual será o trabalho desse escritor?

- Veja bem, caro Antônio... acredita em vida após a morte?

- Não. Quer dizer, não sei. Nunca me comuniquei com alguém do outro lado da vida. O máximo foi ter assistido “Ghost”. E não ghostei. Isto é, achei inverossímil, para ser franco.

- Não precisa acreditar. Mas eu queria que transcrevesse os meus últimos dias de vida. E de morte. E de pós-vida, compreendeu?

- Uma espécie de livro fantasma...

- É quase isso... você ficará rico, meu caro!

- Acho que tô fora, Oto!

- Pago 5 mil reais. Dois mil e quinhentos adiantados. O resto depois que eu morrer. Deixo em testamento. É garantido.

- Cinco mil?

- Mais os direitos autorais do livro. Não quero saber deles. Para mim não terão importância no além...

Silêncio. O cara só podia estar louco. Este mundo está cheio de gente maluca. Nas fábricas. Na vizinhança. Nos escritórios. Há loucos invisíveis que cometem suas sandices longe dos olhos alheios. Vai ver esse Oto era mais um desses loucos invisíveis. Mas o dinheiro, sempre ele... o símbolo máximo da tentação humana. Cinco mil reais... Marcamos a entrevista para o dia seguinte, às oito da noite, no apartamento do cara. Avenida São Luis, 1289, apartamento 212. Avisei meu amigo Bernardo. Dei-lhe o endereço e o telefone, para o caso de acontecer algo comigo. Outra neurose de cidade grande. Não ir à casa de um desconhecido sem avisar alguém. Foi o que fiz. “Escuta, Bernardo! Se eu não te ligar até umas nove e meia, tu avisa a polícia, cara!” Cheguei atrasado. Oto me recebeu com sorriso amigo. “Muito prazer, Antônio!” Sustentava-se numa bengala de bom gosto, comprida, de madeira clara. Esperou eu entrar e me levou direto para o seu escritório. No percurso, fui procurando algo de esotérico no ambiente. Nada. Nem móveis, nem a decoração. Nenhum incenso, ao menos. Tudo normal. Estranhamente normal para quem acreditava ter vida após a morte. Eu carregava uma pasta marrom, de zíper. Lá estavam encadernados alguns de meus textos, separados por contos, crônicas e poesias. Fiquei em dúvida em levar as poesias, talvez não fosse isto que ele estivesse procurando. Também carreguei os primeiros capítulos do romance que nunca consegui terminar. Mas diria a Oto que comecei a escrevê-lo há pouco tempo, para ele não pensar que eu desistiria no meio do caminho. Ele aparentava ter uns cinqüenta anos. Um pouco mais. Cinqüenta e três, cinqüenta e quatro. Não consegui precisar no primeiro momento. Gentilmente puxou a poltrona antiga para eu me sentar. Em seguida, dirigiu-se à estante. Não sentou.

- Está confortável? – ele quis saber.

- Muito bom, Oto. Aqui está toda a minha grandiosa obra! – ironizei.

- Aceita uma bebida?

O estranho homem se dirigiu a um pequeno balcão. Fazia frio e ele ameaçou me servir um uísque. Recusei. Ele se serviu. Um quarto de copo. Uísque puro. Saboreou de uma golada só. Soltou um ah demorado e repousou o copo numa bandeja. Caminhou até sua grande mesa e sentou em seu lugar. Perguntou se eu já tinha tentado publicar algo. Já – respondi. Mas nunca consegui. Expliquei-lhe como era difícil. Mesmo em jornais de bairro. Nada. Apenas as baratas da minha escrivaninha conheciam meu talento – sorri. E as traças. Disse-lhe que minha casa era cheia de traças, por mais que minha mãe tentasse expulsá-las. Perguntei exatamente o que queria. De que ponto partiríamos para escrever o livro, caso eu fosse o eleito para relatar sua experiência de vida. Ou melhor, de morte. Ele silenciou, a princípio. Continuou querendo saber mais sobre mim, em seguida. Se era casado, se tinha filhos, onde morava e trabalhava. Essas coisas de quem está enrolando. Não cheguei a sentir medo. Mas estava achando que o homem era decididamente um paranóico, embora sua fisionomia fosse absolutamente serena. Só tenho mais vinte minutos – lembrei do Bernardo. Ele sugeriu que fôssemos logo ao assunto então. O livro começaria exatamente a partir da nossa conversa ao telefone. Depois eu teria de descrever aquele nosso encontro e os próximos, possivelmente nos fins de semana. “Quatro semanas serão suficientes” – ele afirmou. O médico lhe dera um ou dois meses de vida. A fase mais difícil, e que eu teria de aceitar incondicionalmente, seriam os três meses seguintes à sua morte. Segundo ele, tinha descoberto um canal de comunicação entre os dois mundos, estudando documentos milenares egípcios. É possível que meu semblante tenha delatado o que senti quando ele me disse aquilo, porque ele ordenou-me para não rir. E eu ria por dentro. Perguntei-me o que estava fazendo ali.

- Então quer dizer que já sou o escolhido? – perguntei.

Ele sorriu maliciosamente e disse que o teste final seria o texto que deveria lhe entregar dali a dois dias, mais precisamente na sexta-feira. Fizera isso com os outros candidatos. Então eu disse que aquilo era loucura, e que não estava disposto e não tinha o talento para escrever sobre essas coisas sobrenaturais. Se pudesse, eu mesmo me açoitaria. Como podia ter caído numa situação constrangedora daquela? Um biruta neurótico querendo me fazer de idiota, o tempo perdido, o dinheiro gasto com a encadernação. Quis sumir o quanto antes. Peguei tudo e coloquei de volta na pasta. Oto permaneceu impassível até o telefone tocar.

- Atenda! – ele ordenou.

- Como assim, atenda? A casa e o telefone são seus. E não sou obrigado a atender porra nenhuma!

- É pra você.

- Cara, tu és mesmo xaropeta, não és?

- É seu amigo Bernardo. Quer saber se você está bem ou se deve ligar para a Polícia.

. . .

Passei a quinta-feira assustado. Obviamente que a primeira coisa que fiz ao deixar o apartamento do Oto foi ligar para o meu amigo. Ele afirmava de pés juntos que nunca soube quem era o maluco que eu tinha ido visitar. E que não tinha telefonado antes. Juro, Toninho! – ele insistia. Tentei recordar algum deslize que tivesse cometido antes de ir até a Avenida São Luis. Nada que pudesse fazer com que Oto adivinhasse que aquele telefonema era para mim. Só podia estar ficando tão louco quanto o cara que queria me contratar. Pedi dispensa do trabalho. Atormentado, fui direto para casa. Mamãe estranhou. Perguntou se eu não passava bem. Ofereceu-se para fazer um chá. As mães sempre pensam que seus chás resolvem os problemas do mundo. “Não quero, Dona Vilma. Não quero nada.” Tranquei-me no quarto. Quis deitar e apagar, mas a voz grave e rouca do Oto martelava na minha cabeça. “Atenda... é pra você!” Lembrei de Deus. Naquela época eu estava divorciado do Pai. Tudo estava ruim. O emprego, minhas crônicas, minha noiva, meu time de futebol de salão. Por que Ele tinha me colocado naquela enrascada? Olhei para o velho computador. Naquela tarde mamãe não o tinha limpado. Havia poeira no monitor. Abri a janela, mas o barulho ensurdecedor da molecada andando de patinetes me fez mudar de idéia. O frio da noite anterior tinha dado lugar a uma tarde ensolarada, isso sempre acontece. Eu suava. Mamãe bateu na porta e disse que havia um telefonema para mim. Era Bernardo. Queria saber porque eu estava tão estranho. “Nada” – respondi. Convidou-me para um chope às sete horas, no Portuga. Disse-lhe que não estava afim. Ele me mandou à merda. Desligou. Voltei ao quarto. Parecia ainda mais abafado. Liguei o computador empoeirado. Escrevi a primeira linha. Uma bosta! Apaguei tudo e o desliguei. Pedi para minha mãe trazer um chá, quem sabe resolvesse. Liguei-o de novo. Trinta minutos depois saiu o primeiro parágrafo. Logo, meu texto estava completo. Tentei me conectar à internet. Um inferno! A conexão caía. Minha conexão à rede é a expressão viva da Lei da Gravidade. Vive caindo. Gravei no disquete e telefonei para Bernardo. Pedi para usar seu computador, à noite.

- Depois vamos tomar uma?

Topei. Às sete e meia já tinha despachado o arquivo. Saímos do boteco por volta da uma da manhã – eu e Bernardo. Esqueci do texto, do Oto e de seus delírios. E amanheci com uma dor de cabeça cruel.


. . .


Sexta-feira é dia de sair mais cedo do trabalho. Herança do sistema de emprego público. Meu emprego foi herdado do meu pai. Quando completei catorze anos, o velho Alcides conseguiu-me uma vaga de contínuo. Vivia nos cartórios do Centro e nas agências bancárias da Paulista. Meu gosto pela literatura nasceu, certamente, da observação das ruas do Centro. Um mundo dinâmico, pobre, diversificado, alucinante que a periferia não permite enxergar. Eu comprava camiseta do Iron Maiden e do Kiss na Barão de Itapetininga. E livros encardidos e amarrotados nos sebos.

Depois do almoço, ressaca semi-curada, voltei a lembrar da encomenda feita pelo Oto. Já tinha, àquela altura da vida, participado de inúmeros concursos literários. O máximo que tinha acontecido fora receber cartas de agradecimento pela participação. Então, pensando nisso, resolvi desencanar. Se o debilóide adivinhou a ligação do meu amigo, certamente tivera acontecido a mesma coisa com os outros que participaram daquele “concurso” fantasmagórico. Era o dia de as garotas do escritório também irem ao Sansão, na Sete de Setembro, ao contrário dos outros dias da semana. E isso pressupunha um gasto maior. Saí do edifício e fui direto para o banco 24 horas. Tinha de tirar um extrato e resgatar as migalhas que sobraram do adiantamento do dia vinte. Fila quilométrica. De novo. Maurício impaciente. “Eu te empresto, segunda você me paga!” Recusei. Já estava devendo até o sapato. Resolvi esperar. Ao chegar minha vez, a mensagem de que o dinheiro do caixa tinha acabado me emputeceu. Puta que o pariu! – gritei. Restou-me a opção de consultar o saldo. Teria de me encostar novamente no Maurício. Quando terminou a impressão, a surpresa: dois mil e quinhentos e trinta e dois reais e alguns centavos! Um depósito de dois mil e quinhentos feito naquele dia. Maurício me disse que empalideci e que minhas pernas bambearam. Eu senti a vista escurecer. Avistei um telefone público a poucos metros. Vasculhei na carteira o recorte do jornal. Dei-me conta de que eu escreveria para o Oto. Avistei um telefone público. Pedi o cartão emprestado para meu amigo. Teclei o número vagarosamente. Um toque. Dois. Três. Ao sétimo, estava quase desligando. Foi quando uma voz estranha atendeu. Era uma mulher. Perguntei pelo homem estranho da São Luis.

- Seu Oto está morto. Foi assassinado ontem à noite.

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