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cronicas-->Helena -- 28/02/2013 - 08:21 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

 

Helena, a pequena Helena, andava assim meio  chateada. Seu namorado a havia deixado. Natural, ela pensava, natural, também saberia lá o que se passava na cabeça dele? Sempre confuso, sempre inseguro. Ela, não. Sempre dirigida e focada, porém sonhadora e romântica. Como dizia sua mãe, água e óleo não se misturam, por mais que se queira. Helena tentara, e muito, fazer dar certo.

O fato é que ela se sentia só, mesmo quando Roberto estava com ela. Havia algo indefinível, algo que ela parecia sentir passar entre seus dedos, talvez o tempo que passava, talvez os dias que se aceleravam progressivamente.

--Nossa, estamos em Março.

--Quase Outono.

--O verão passou. Não viajamos.

--Você sempre trabalhando...

E vinha a sensação de vazio, de solidão, mesmo com ele ao lado. Não que não fosse bonito, ela sabia que ele era atraente, mas talvez...lhe faltasse algo assim, como um sinal a mais, um traço a mais de loucura, uma coisa a mais que lhe abonasse. Ah, e ele se lamentava. Como se queixava! Era o trânsito. Era o carro que precisava trocar. Noutro dia, cansado, ficava a dormir, envolto nas brumas de Orfeu. Dormia até tarde, enquanto ela fervia de mil indagações, sozinha enquanto esperava a hora em que ele ligasse. Helena, definitivamente, estava só, acompanhada. Ela na maior parte das vezes se virava, saía de manhã, ia correr, andava de bicicleta enquanto o plácido príncipe dormia a sono rasgado. Ela conseguia até imaginar seu ressonar no quarto escuro, de cortinas pesadas, ele com protetor de olhos.

Quando foi que o vaso se quebrou, quando o cristal se partiu, Helena? Quem foi que descobriu primeiro que óleo não se miscigena com água? Porque sua voz era suave, seus dentes lindos; sua pele, pequena, era branca, lisa e seu rosto perfeito era adornado por um par de olhos cor de mar, absortos nas pessoas, sempre profundos; seus olhos estavam sempre ocupados a observar as pessoas, com vagar e calma, sem julgar; apenas observava.  

--Incomoda-me quando olha assim.

--Assim, como?

--Deste jeito. Parece que se compraz em olhar os outros. Não olha para mim assim.

--Engano seu; se olho os outros, é para ver o quanto variam as expressões de seus rostos.

E descrevia a velhinha que passava, lenta, com expressão dolorida, calma em sua vertigem do dia. Ou acabava de ver um rapaz que ao invés de se ligar ao mundo, imerso estava em seu telefone, sem parar de teclar. Sorria. Outra moça passava, apressada, pálida. Devia estar atrasada, porque de minuto a minuto olhava seu relógio de pulso. Chamou-lhe a atenção um senhor alto, mal vestido, que conferia bilhetes de loteria esportiva, procurando a sorte que nunca lhe dera uma chance. E por aí, caminhava Helena, depois anotando tudo numa espécie de diário, que ela chamava de “O Diário das impressões do Dia”, que, segundo ela, um dia viraria livro, quem sabe?

O abismo se abria a cada minuto, e Roberto, prático e sonolento, cada vez mais deixava Helena, sonhadora e romântica, a anotar seus sonhos lúcidos e ele cada vez mais prolongava suas estadias sonolentas nos braços das manhãs postergadas. Ela achou estranho quando ele, mais de uma vez, alegara sono excessivo e só acordara de tarde, sem ânimo para sair. E ela fervendo de curiosidade; já que não sai, saio eu! Munida de seu bloco, lá ia anotar as expressões mutantes da fauna humana das ruas. Mais de uma vez, tivera sobressaltos.

--Está olhando o quê, Gata?

--ô, menina, parece louca, pára de me olhar.

--Gostou? Me leva pra casa!

--Vai olhar na cara de tua mãe. Não gosto.

--Quer olhar o...

E aí, Helena anotava tudo. Mostrava para Roberto, que se interessava tanto quanto se interessaria por um estudo antropológico feito em Moçambique. E caía no sono, em meio a suas conversas. Ela decidia, então, fazer-lhe um café que aprendera como poucas (descendia de árabes). Mas e ele, quando acordaria para a vida, essa borbulhante fricção de egos, esta enorme balbúrdia nos mercados, nas feiras livres? Helena, quando lhe dava na telha, pegava sua bicicleta e corria nas ciclofaixas abertas de domingo. Encontrava amigas e amigos, falava sem parar, sorria sem trégua. Pouco a pouco, percebeu que antes que Roberto a deixasse, ela já o deixara a esmo, sem perceber.

Agora, andava descorçoada, após ser dispensada de ir à casa dele, porque “já não há mais o que dizer, um ao outro” e a tristeza lhe tomou o coração. Mas não por muito tempo.

Solidão? Nem pensar. E Helena agora anotava tudo, desde os locais em que estava até os mínimos detalhes das multidões de pernas que, sem rosto, habitava os viadutos do Centro. Anotava esmiuçadamente o andar cambaleante do ébrio que a xingava de puta, anotava o falso mendigo que sempre fazia ponto se fingindo de manco, anotava o feirante que punha um contra-peso para ganhar mais dinheiro na pesagem do peixe; saboreava os pastéis da feira sem culpa.

--A princesinha vai levar um quilo? Dois quilos? Salta dois quilos de tomate para a Branca de Neve!

E lá voltava o sorriso para seu rosto perfeito, lá se ia a moça que tinha um séqüito de pretendentes, lá caminhava a linda namorada de todos, mas que a nenhum escolhera, porque preferia, agora, viver para si mesma, sem se aborrecer com as falhas do Outro, ou com suas encucações, ou com suas ausências.

Sem perceber, Helena se fez sozinha. E nunca foi tão feliz, pelo menos ela achava.  Suas anotações se tornaram diárias, um dia recebeu um convite para escrever de maneira regular. Coincidiu que estava se formando na faculdade. Juntou um emprego no outro, formou-se, escrevendo uma coluna sob pseudônimo; Fez dos seus sonhos idéias realizadas Escreveu um livro, não, dois livros.

Ainda viu Roberto mais uma vez, barba por fazer. Judiado. Teve pena, mas o que fazer? Preferia assim, agora.  Beijou-o no rosto, disse-lhe adeus de vez. E partiu.

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