Era ainda eu um desses adolescentes de bigodinho ralo e descobrindo a vida nas ruas e zonas de Palmares, quando me apareceu o livro "Deus no Pasto", de Hermilo Borba Filho, jogado pela janela de um seu parente irado e repudiando não só essa como toda obra dele. Confesso que nem sabia quem era aquele autor, pirralho que era. Olhei o volume, a capa rasgada, as páginas bufentas, quase que soltas do volume; mesmo assim, acolhi, levei para casa e deixei-o num canto da minha estante improvisada, aguardando um momento propício conhecê-lo, já que eu era afeito a leituras madrugada a dentro desde menino, imitando meu pai que ficava horas e horas mergulhado na biblioteca dele. Meninote ainda eu mesmo ficava cutucando as idéias, investigando a razão do meu genitor ficar ali debruçado sobre volumes e mais volumes por noites a fio. Devia de ter algum segredo recôndito naquelas páginas, aduzia.
Dias ou meses depois, imantado pelo volume com um título intrigante, folheei as primeiras páginas e não consegui desgrudar. Ao cabo de alguns mais, havia já devorado tudo. Estava estupefato. Fui então na biblioteca municipal e instei da professora e madrinha dos artistas locais, Jessiva Sabino, sobre Hermilo. Ela meio que intrigada e atônita com a minha indagação, me pediu para baixar o tom da voz e me encaminhou para uma das estantes empoeiradas dali. Deu-me, às escondidas, o "Margens da Lembrança" sob condição de lê-lo sem estardalhaço e por tempo determinado de oito dias. Foi um fôlego só. Depois foi a vez de "Os Ambulantes de Deus"; e veio "O General está pintando", "Os Caminhos da Solidão", "As meninas do sobrado", "Sol das Almas", "A Porteira do Mundo", "O cavalo da noite" e "Agá".
Foi noutra ocasião, quando ensaiava os primeiros passos no teatro, que me deparei com a obra dele para a área e mergulhei nas suas peças. Esse nome eu conheço, disse, e anos mais tarde isso me levou até a adaptar, dirigir e musicar uma delas, a "João sem terra". Mas voltando ao princípio, certa feita, numa sala de aula, outra professora de Língua e Literatura Nacional, já do colegial, quase teve um troço quando eu falei que havia lido a obra dele. Que é isso, hem? - inquiria eu. Para onde eu me virasse era um desconforto, um pigarreado, uma mudança de assunto, uma lividez, ora. - Tô falando do anticristo, por acaso? - na verdade não, mas que repulsavam mesmo, nossa!
A minha trupe adolescente ficou curiosa e danávamos a consumí-lo caindo em discussões calorosas regadas já a uns pilequinhos na praça em frente da igreja presbiteriana. Bote arroubos e declamações azucrinando passante desavisado. A gente quase que foi, todo mundo da roda, excomungado.
Foi nesse ínterim que o poeta Juarez Correia, mais velho que a maioria da gente, chegou recontando todas as historietas de Hermilo e indicando um a um dos personagens e os motivos da execração da cidade, ampliando motivos para nossa algazarra. Era tudo muito estranho porque Hermilo dizia aos quatro cantos do mundo: "Palmares é a minha marca para toda vida". Não se dava para encontrar razões para o repúdio da população. Isso tudo ocorreu nos idos dos anos 70, pouco tempo depois de sua morte.
Era uma maldição mesmo, a ponto de quase não se conseguir, já nos idos dos anos 80, criar a Fundação Casa da Cultura Hermilo Borba Filho, em Palmares, cidade natal dele e centro da Mata Sul de Pernambuco. A gente teve de comprar a briga do Juarez e sair berrando na imprensa e nos ouvidos moucos dos timoratos a importância de tal feito. Felizmente, conseguimos. Mas foi tanta resistência, pacutia, muxôxo, imbróglios, má-vontade, vôte! Bote maré contrária no remado. E daí se angariou simpatias de fora entre gente importante do cenário recifense e de outros estados, e resgatou-se, finalmente, a gratidão da cidade ao seu importante nome.
Depois dessa, outra ocorre hoje: não se vê mais uma reedição da obra de Hermilo Borba Filho. Parece que a maldição que extirpamos dali, está presente nas editoras que só se interessam pelas edições garantidas dos best-sellers. Até as revistas especializadas sequer abordam sua obra. Parece, assim, que mais uma luta terá de ser travada: a de trazer Hermilo ao seu lugar na Literatura Brasileira.
* texto publicado no Guia de Poesia: www.sobresites.com/poesia/
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