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Cronicas-->A Queda -- 20/01/2013 - 23:33 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

 

Um problema muito comum entre os idosos são as quedas. Tenho alguns colegas geriatras que definem certos critérios que favorecem a queda entre os velhinhos. Na verdade, alguns eu posso até citar aqui para que lembremos: Idade maior que 80 anos, pobre massa muscular, processos demenciais, uso de medicamentos de ação central, como diazepínicos, anti-hipertensivos, antidepressivos...Remédios contra Doença de Parkinson. Uma casa onde reside um idoso deve ter poucos tapetes, aonde eles possam tropeçar. Locais onde possam enredar os pés, como passadeiras, tapetes de corda, tapetes rendilhados, tudo é risco. Lembrar disso é importante, porque o idoso já tem por si só dificuldades de marcha e menor visão e isto aumenta a chance de quedas inadvertidas.

Pois bem, vem a ficha que nós pegamos de uma caixinha aonde está escrita a especialidade. Tem a caixinha da ortopedia, a da cirurgia geral e a da clínica médica. Na verdade, são duas caixinhas, as fichas azuis, onde o paciente é considerado de menor gravidade e o atendimento pode demorar até quatro horas, vejam bem, até quatro horas. Isto nunca chega, a não ser em dias de inundação onde uma massa humana enche as cadeiras de cor verde e azul e geralmente isto ocorre nas segundas-feiras ou imediatamente após feriados prolongados. A outra caixinha, que priorizamos, é a de fichas verdes, onde o atendimento ocorre em até duas horas. Depois de atender mil gripes, resfriados e alguns pedintes de atestado, deparo-me com a caixa azul e a primeira ficha é a de um senhor, seu João, 84 anos. Isso eu acho que precisa mudar. Vejam bem, o senhor João esperou duas horas para ser atendido. Mas, tudo bem, pego a ficha e chamo-o pelo nome, porque há um sistema de chamada eletrônico que eu considero anódino demais, impessoal demais(embora sirva como controle para os estatísticos do hospital). Sempre tenho o cuidado de chamar pelo nome e imediatamente pelo número. Satisfaço gregos e troianos assim.

No pequeno resumo, ao lado dos dados vitais: Alteração de comportamento?  Por isso estava nas fichas azuis, porque os parâmetros não mostravam nada, além de um pulso um pouco baixo. Entra o filho, acompanhado do seu João. Ele se senta, na cadeira à minha frente.

--Pois não?

--Pois é doutor. Meu pai nunca foi assim.

--Assim como?

--Olhe, ele sempre foi ativo. Ajuda muito em casa, cuida até dos netos, fica com eles em casa quando a gente vai fazer compras. No entanto, de uns dias para cá, mudou o comportamento.

O cérebro é uma caixa de surpresas, ainda mais o do idoso. Já há certo déficit cognitivo, normal da idade e progressivo; menos estímulos chegam. Medicamentos, às vezes uma montanha deles, exercem múltiplos efeitos antagônicos. Daí, temos um quadro que se chama de "delirium" que é diferente do delírio; é uma alteraçao sutil do estado geral, é algo de diferente. Perguntei sobre os medicamentos, somente tomava remédios para a pressão e AAS, para proteger suas coronárias. Só isto? Nenhum medicamento calmante, nada? Nada, diz o filho. Eu olho para seu João, ele me olha através de uma bruma, olhos enevoados, confusos. Parece não entender o que está sendo dito.

--Fale-me mais sobre esta mudança.

--Ah, tenho até vergonha de falar.

--Se não falar, não vai ser ele que vai dizer o que o atinge; veja como ele está!

--Verdade, não é?

--Coragem.

--Bom, anteontem, todo mundo na sala assistindo a novela da Sereia. Tudo bem, mas de repente surge meu velho do quarto dele, aonde estava cochilando e...(lágrimas nos olhos) e tira o bingulim para fora e faz xixi na televisão.

--Como assim? Urinou na televisão?

--Sim, molhou toda a televisão, deu um trabalhão para limpar, minha esposa é muito asseada. Ficamos horrorizados, era meu pai, fazendo xixi na televisão. Juro por Deus, que diabo foi isso? Ele nunca fez nada assim. Se bem que ultimamente, deu para esquecer chave na porta, alguma coisinha aqui e ali.

--Ele bebe?

--Sempre um cálice de vinho tinto no almoço, sabe. João Spadallini Verdani, palmeirense até no nome. E bom italiano do Bixiga. Mora conosco desde que mamãe morreu de derrame.

--Quando foi isso?

--Há uns quatro anos.

--Ele anda deprimido?

O filho olha com carinho o pai. Passa a mão em sua cabeça de cabelos brancos, revoltos.

--No começo, parece que perdeu o pé. Ficava dias em seu quarto, até que decidimos tirá-lo de lá e eu construí um quarto para ele em casa, que tem de tudo, menos televisão, que assistimos na sala. Foi melhorando, já dorme mais tranquilo. Eles eram muito companheiros, eram maravilhosamente companheiros, de um saber do outro pelo pensamento. Oxalá eu e minha esposa sejamos assim no futuro, que afinal não está tão longe porque tenho 58 anos e ela 56. Mas tudo bem, estamos falando dele. De modo que, quando fez aquilo, eu decidi trazer o mais rápido que pude para o hospital.

Olhei o filho, calça jeans bem asseada, uma camisa cáqui; um relógio de bom valor, telefone desligado(em sinal de respeito) e olhos cinza-claros preocupados. O velhinho, alheio a tudo, flutuava num mar de semi-consciência. Decididamente, aquilo não era só um delirium.

--Como é a sua casa?

--Nossa casa é um sobrado de dois andares. Os nossos quartos ficam em cima, o dele fica ao lado do quintal da casa, acima de um depósito onde guardo livros.

--Sei. A escada é alta?

--Ah, mas ele sobe e desce a escada com facilidade. Pus corrimão, tudo. Bem na entrada tem um tapete. De sisal, lindo, comprado em Natal.

Tapetes. Escadas. Lá vem meu anjo, esse que sussurra, que parece o grilo falante.

--Deixe-me examinar seu pai.

Comecei pela cabeça, claro. Na frente, nada. Porém, oculto sob seu cabelo, bem perto da nuca, um hematoma.

--O que é isso?

--...Nossa, não tinha visto.

Sonolento, ele tinha alguma dor na região posterior do pescoço. Quando se tem dor lá, e não é uma dor voluntária, isto é, não é o paciente que enrijece, mas algo mais profundo, você tem de pensar em algumas hipóteses.

--Por via das dúvidas, vou pedir um exame de imagem. Tomografia de crânio, agora.

--Precisa mesmo, doutor?

--Assim ficamos mais sossegados para investigar o restante.

Escadas. Tapetes de sisal, grilo falante...Bom anjo que tenho. Este anjo deve saber medicina. Porque, em questão de minutos, ligam da tomografia.

--Doutor, temos problemas aqui. Há uma imagem de sangramento.

--Onde?

--Região próxima ao córtex visual, occipital.

Então, o seu João havia caído; em algum momento caiu da escada, bateu a nuca e omitiu isso da família, eles nunca querem parecer estorvos. E sangrou. Ele tinha o que chamamos de hematoma subdural. Dali, fomos ao PS, sala de emergência e dalí ele foi ao Hospital das Clínicas, nossa referência para casos como este. Seu João foi operado no mesmo dia. Pelo que fiquei sabendo, ele está muito bem. O que o salvou foi a diminuição da massa encefálica que ocorre com o passar dos anos. O sangramento se acomodou, mas podia ter sido pior. Obrigado, Grilo falante, meu companheiro de duras jornadas!

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