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Cronicas-->A Dor Escondida -- 20/01/2013 - 23:30 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

 

Sou médico, tenho 56 anos e alguns problemas. Um deles é uma hérnia de disco que descobri durante uma diverticulite, ao lado de um cálculo renal que jamais deu sinal de sua presença. Ah, também sou muito ansioso. Durmo pouco. Já trabalhei mais, doze a quatorze horas por dia e recentemente, passei à metade por força de um corte de verba de meu outro empregador. Essa falta do que fazer à tarde criou angústias; é normal trabalhar quatorze horas por dia. O médico deve trabalhar tudo isso, dar conta do recado e atender bem todos os pacientes que vê e trata. Lógico! De maneira que,  em certos dias, sinto-me um inútil. É como se fosse normal, eu teria de voltar a trabalhar de tarde. Mas não fui atrás de nada e de certa maneira, já me adaptei ao novo ritmo de vida. Nestas horas extras, eu agora procuro fazer atividade física, como andar de bicicleta. Em geral, as pessoas trabalham de tarde, de modo que eu geralmente ando sozinho, geralmente no Parque Ibirapuera. Tenho bom desempenho; ando bem, modéstia à parte. Também corro, em geral faço trajetos longos, sem exageros...O esporte ajuda a aliviar a angústia de me sentir inútil. É um sentimento estranho, esse de me sentir assim...

Sabem onde não me sinto inútil? Em meu trabalho. Na triagem, órgão de choque de qualquer hospital. É por lá que entram as urgências mais leves, mas dependendo de como são vistas, essas urgências podem se tornar emergências...Vou tentar contar aqui algumas histórias, mudando nomes, em respeito aos principais atores.

O médico triador em geral é desvalorizado. Considera-se que o grande médico é aquele que está na porta de emergência, à beira de pacientes no limite da vida. Eu já estive por lá; realmente é um perfil diferente, é o lugar onde se salvam vidas. No entanto, tudo na vida e neste mundo está em cadeia. Existe a cadeia alimentar, não estaríamos vivos hoje se não existissem as algas que alimentam tais peixes, que são comidos por outros maiores, que são pescados por nós e assados, fornecem belos pratos para que os degustemos. Em Medicina, a cadeia é uma cadeia de vida. Existe uma escala de atendimento, onde um enfermeiro, munido de um programa de computador, além de saber ouvir o paciente e medir seus parâmetros vitais, classifica os pacientes na questão de demora de atendimento. Os "amarelos"tem de ser atendidos quase imediatamente. Em questão de 20 minutos. Os "laranjas" têm de ser quase imediatamente atendidos. Os "vermelhos"vão para a sala de emergência. Os "verdes"tem até 2 horas de espera e os "azuis" podem esperar até quatro horas para serem atendidos. O triador tem a missão de atender estes pacientes que, sem ser emergências, precisam ser atendidos para que se saiba o que realmente nos traz o queixoso; se o que diz é real, se o que descreve tem tamanha importância. A escala em questão é a Escala de Manchester.

Em geral, o triador fica sozinho. Se ele for experiente, se ele prestar atenção ao que o doente diz, ele deixa de cometer deslizes que podem ser graves. Se ele considerar a queixa irrelevante, de maneira leviana, sem examinar, sem ouvir o que lhe diz o paciente...Ah, aí a coisa vai mal. Não adianta bater de frente com o possível fraudador, que pede um atestado sem pestanejar. Também não adianta se esquivar de aconselhar o sujeito a parar de fumar, ou a usar seus remédios de maneira adequada (chama-se a isto de promoção de saúde) porque na verdade, grande quantidade destes doentes procuram um aconselhamento que possivelmente não obtém na saúde primária. O Hospital em que trabalho tem nível secundário, isto é, trata de doenças mais comuns, como diabetes, hipertensão, asma, e também recebe infartados pois possui recursos para atender em UTI; No entanto, que raio faz um médico se não acusa no paciente relapso os erros de sua conduta? Tem de falar mesmo, tem de cuidar da conduta. Se alguém não faz de um lado, tem de fazer do outro. Simples assim. Claro está que se você já chega cansado ao local onde realizará o atendimento, sem paciência, não fará um bom trabalho. Tem-se de estar desarmado, tem-se de estar atento, muito atento!

O paciente em questão era um senhor de seus 65 anos. Hipertenso, morando no interior de São Paulo, segundo seu filho já não tomava os medicamentos há pelo menos dois meses, por falta de seguimento em sua cidade natal. Fumante inveterado, não abandonava o vício, apesar dos conselhos do filho. Mora sozinho, porque não quer dar trabalho ao filho, que mora em São Paulo e é muito ocupado. Pelo que pude sentir, o filho era bem preocupado com o pai, grisalho, de grandes sobrancelhas, muito parecido com Ziraldo, alto e esguio. Mas o olhar de um paciente denuncia seu sofrimento; lembre-se sempre, olhe o paciente nos olhos. O fraudador desvia o olhar enquanto lhe descreve um sintoma inverossímil. O deprimido mal olha em seus olhos, está imerso numa névoa de tristeza. O drogado tem olhos intensos, injetados e flutuantes. O histérico geralmente está de olhos fechados. Seu Paulo não , quando lhe perguntei o que tinha, olhou nos meus olhos com firmeza, mas não me enganou quando tentou escamotear a verdade.

--O que o senhor está sentindo?

--Ah, não é nada não.

--...O que é que não é nada?

Seu filho intervém e conta sobre a falta de medicamento, sobre a omissão dele em se cuidar, sobre o vício em tabaco.

--...Não se cuida. Veio passar os feriados em casa e há cerca de três dias...

--Seu Paulo?

--...Então, há três dias(olha com olhar severo para o filho, que se mantém a uma distância prudente), estou com uma dorzinha no estômago. Sabe, doutor? Tenho gastrite crônica, deve ser a mesma coisa.

--Como posso ajudá-lo, seu Paulo?

--Ah, o senhor pode me dar uma injeção, qualquer coisa. Quero ir para casa logo.

O filho intervém novamente, desta vez dando uma bronca.

--Nada disso. O senhor está com essa dor há dias.

Enquanto isto, eu já o examino. Apresenta-se pálido, o pulso alto. Sua pressão arterial muito alta: Está em crise hipertensiva. Mas seus olhos estão escondendo algo. Ele tem medo da verdade. No fundo, sabe que tem algo que o ameaça. Isto não me foge, eu não deixo passar.

--...E esta dor, como é, seu Paulo?

Alguns segundos de hesitação. Sudorese, palidez, dor.

--Ah, está queimando, seu doutor.

--Queimando?O que piora esta dor?

--Antes...era quando subia escada. Agora, vem direto...e vai embora rápido...

Na triagem, você pode reunir dados que lhe dão um diagnóstico presumido. Ou não. Resumindo, pedi um eletrocardiograma e enzimas cardíacas. Lá foi o seu Paulo para a área de atendimento mais emergencial.

Qual não foi minha surpresa quando me disseram os resultados: Seu Paulo havia sofrido um infarto. Ele agora estava sendo tratado corretamente. Seu filho falava ao celular, de olhos muito abertos, assustado. A pergunta que não quer calar: Quantos assim já não foram dispensados com suspeitas erradas, tratamentos inadequados? A lição que fica, desta vez, é : Ouvir, ouvir, ouvir.

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