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Discursos-->MOSKA KRISTO É NOREL -- 08/01/2004 - 18:13 (Marco Antonio Cardoso) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
MOSKA KRISTO




Foi bem assim que aconteceu:

Eu era um mendigo nas ruas de Roma, tinha tomado umas com os trocados angariados na pedição, e depois de forrar o bucho com uma massa de quinta categoria, entornei água que passarinho não bebe pra dentro, pra anestesiar a dor de viver.

Lá pelas tantas estou ouvindo uma vozinha esganiçada, me chamando pelo nome, pedindo para eu acordar.

Abri um olho só e chequei em volta: nada.

Voltei a dormir e a vozinha chamou novamente, dizendo:

- Pedro, acorda homem, tenho uma missão pra você. Acorda seu filho da puta!

Aquilo foi demais, eu podia ser um sacana, mas minha mãezinha não era uma puta. Acordei e fui logo me armando com uma tábua para acertar o descarado que insultou minha mãe.

Não havia ninguém. Até que a voz fina voltou a chamar, dizendo que estava bem na minha frente.

Mas na minha frente só tinha uma mosca chata zumbindo e voando feito uma doida.

Dei um safanão na danada e ela foi pousar nuns caixotes de papelão ali perto.

Novamente a vozinha chata chamou. Foi então que eu percebi que aquela voz vinha do mesmo lado da mosca, aliás, era proferida pela mosca.

Tomei um susto danado, tentei fugir, mas o estado de embriaguez em que me encontrava não me permitia coordenar bem meus movimentos com minha vontade.

Pensei que estivesse sofrendo de uma alucinação, ou então era o diabo que vinha me levar pras profundas, disfarçado de mosca falante.

Mesmo me batendo nas paredes do beco, a tal mosca continuava me seguindo e falando:

- Pare aí seu safado, ouça ao menos o que eu quero te dizer.

Finalmente tive que ceder aos desejos comunicatórios da mosca, por não ter nenhuma condição de sair correndo desembestado daquele lugar.

Sentei-me no chão e a mosca pousou bem em cima de uma ferida que eu tinha no joelho, que ficava à mostra pelo fato de minha calça estar rasgada.

Ela pousou e começou a falar de novo:

- Pedro, Pedro, não te espantes de ouvir uma mosca falar, pois Deus opera maravilhas mesmo que o homem não as entenda.

- Quem é você? O diabo?

- Antes fosse, seria mais fácil encontrar quem quisesse me ouvir. Não Pedro, eu não sou o diabo. Prometi que voltaria, e voltei, mas não da maneira que esperavam que eu voltasse.

- Eu não estou entendendo nada mosquinha.

- Logo você vai entender, vou fazer com que recobre as lembranças de uma vida passada, quando nós trabalhamos juntos.

Naquele momento algo aconteceu. Fiquei sóbrio e ao mesmo tempo, confuso.Via tantas imagens num mesmo instante, que não conseguia entender bem o que se passava. Senti alegrias e tristezas, dores e prazeres. Vi-me nascer e me vi morrer, crucificado de cabeça para baixo. Espantado, quase desmaiei.

- Isso mesmo, Pedro, você está de volta e eu também.

- Como posso ter certeza que isto não é arte do demo? Como posso eu, um mendigo fudido das ruas de Roma, em pleno século vinte e um, ser também aquele Pedro, que é santo da igreja?

- Pedro, as coisas são simples, mas as pessoas complicam, porque não conseguem ver além das aparências.

- E você? Quem é você afinal?

- Pô Pedro, não sacou ainda? Sou Moska Kristo!

- Como pode ser isso? Como você, o salvador, pode voltar ao mundo como, como uma mosca?

- Os homens sempre esperaram mais do que realmente merecem. No nosso tempo, esperavam um rei-guerreiro, coberto de glórias e armado até os dentes, e Deus me mandou, simples e manso como um cordeiro, montado em um pobre burrico, para mostrar-lhes que o que importava não era a aparência, e sim a essência. Mas eu não fui aceito, senão por um pequeno grupo de pessoas que realmente receberam e entenderam a mensagem.

O tempo passou e as coisas voltaram a ser como era antes, ou até pior. Os homens começaram a me esperar de novo, a clamar de novo, por um rei de glória e guerra, que derrotasse o diabo, esse que vive nos corações das pessoas, que não movem uma palha para tira-lo de lá, e ficam nas igrejas rezando para que eu volte o retire, mas não querem faze-lo por conta própria, por medo de ficarem sozinhas. Melhor ter um diabo no coração do que esperar por um salvador que nunca vem.

- Que coisa horrível de se dizer, senhor!

- Mas é isso mesmo. Para preencher o vazio interior, as pessoas preferem até mesmo o diabo de que a elas próprias, porque assim justificam toda sorte de desgraças que fazem ou que recebem. O fato é que passaram dois mil anos esperando por mim, e eu aqui estou.

- Uma mosca? Não deram muito crédito ao homem, e darão a uma mosca? Senhor, pera lá! Acho que dessa vez pisaste na bola.

- Nada disso Pedro, o plano de Deus é infalível, mesmo que os homens, como sempre acontece, não entendam nada. Sempre se disse que se eu voltasse a Terra, seria novamente crucificado, pois bem, voltei ao mundo com uma missão, que deverá ser cumprida no espaço de tempo em que vive uma mosca: vinte e quatro horas.

- Acho meio impossível. Quem quererá ouvir uma mosca falante? Quem aceitará a palavra de Deus proferida por um inseto?

- É isso mesmo, Pedro. Deus mandou-me de volta nesta forma inferior, para dar mais uma cutucada no orgulho e na vaidade do homem. Eles esperam coisas absurdas e extravagantes. Querem que uma cidade inteira desça do céu e pouse na Terra, como se não houvesse coisa mais importante para se fazer do que construir cidades. Querem que o céu se abra e eu - na forma de um homem, é claro - vestido de roupas brilhantes e montado num cavalo - isso é demais - desça à terra acompanhado por um sem-número de anjos, para MATAR!. Eu não entendo, Pedro, como os homens podem ser tão estúpidos. Eu dei minha vida por eles, pregando o amor e o PERDÃO, como agora eu poderia voltar aqui e matar adoidado?

- Mas, uma mosca?

- É, uma simples e prosaica mosca. Mas uma mosca com um dom humano: Uma mosca falante.

- Se temos até o grilo-falante, por que não?

- Você tem uma grande missão, Pedro, novamente. Não se deixe seduzir pelas asneiras humanas.

E ali, naquele beco sujo, quase chegando a aurora, aquela mosca falante, pousada em minha ferida, disse-me:

- Tu es Pedro, e sobre esta pereba erguerei a igreja que derrubará todos os templos que os homens ergueram aos demônios que habitam seus corações.

Caminhamos naquele início de manhã, pelas ruas da cidade, enquanto eu procurava descolar alguma grana para o desjejum.

- E você, mosquinha, não come nada?

- Enchi a pança com sua ferida, não lembra?

- Você é nojento! Ainda nem tomei café e já estou enjoado.

- Pedro, nos tempos atuais espalhar a palavra é bem mais fácil, temos o rádio, a tv, a internet...

- Mas mosquinha, eu sou um mendigo. Nunca me deixarão entrar no prédio da RAI, muito menos apresentar um programa com uma mosca falante.

- Porque não tenta?

Foi assim, encorajado pela Moska Kristo, que eu cheguei ao prédio da emissora de tv. Montei um espetáculo circense na porta, conversando com a mosca, até atrair a atenção de muita gente. Elas ouviam a voz da mosca quando deixavam que ela pousasse perto de seus ouvidos. As palavras de Moska Kristo aliviavam seus doridos corações e elas partiam enternecidas, deixando algum dinheiro no meu chapéu.

De início as pessoas pensaram tratar-se de um número de ventriloquia, mas logo se surpreenderam com aquela mosca tão filosófica.

Uma equipe de reportagem da tv saiu à rua para gravar uma matéria para o noticiário matinal. Uma vez colocado no ar, chamou tanta atenção que os executivos pensaram em apresenta-lo no programa seguinte, de variedades e coisas do lar.

Fui então levado para as dependências da tv, sempre acompanhado da mosca. Trocaram minha roupa e combinaram comigo o que deveria dizer em frente às câmaras.

- Tudo bem, mas quem vai falar mesmo é a mosca, e ela vai precisar de um amplificador.

Eles me olhavam, ainda céticos, achavam que era alguma piada, ou então que eu era louco mesmo. Era evidente que a possibilidade da mosca estar falando aquilo tudo não era nem considerada.

Moska Kristo me pediu que perguntasse qual o alcance daquele programa. Era local, atingiria somente a Itália. Diante disso, ele recusou-se a participar. O programa seguinte, o "Questa Itália", era transmitido para todo o planeta, via satélite, e era nesse que Moska Kristo queria falar.

- Não esqueça que eu não tenho muito tempo de vida.

Fiz a proposta aos diretores, e eles quase me enxotaram dali, mas um outro me chamou para conversar em particular.

- Senhor, sabe que este programa é um retrato da Itália para o mundo? Quer que façamos um papel ridículo diante do planeta, apresentando uma mosca falante? Isto é matéria para programas de variedades para ser assistidos por donas de casa e desempregados, não para o mundo todo.

- Diretor, quero que entenda que eu não falo pela mosca, e que ela , ou ele, assim o deseja. Fala Moska!

- Obrigado Pedro.

Enquanto Moska Kristo falava, o semblante do homem se transtornava. Acho que ele passou por uma transformação interior naquele momento.

- Isto é incrível, é uma maravilha, um marco na história da humanidade. Vamos para o estúdio de "Questa Itália"!

Havia muita confusão no estúdio. Os apresentadores do programa estavam preparados para a entrevista da manhã, com um conhecido juiz caçador de mafiosos, quando foram informados da mudança drástica na seqüência do programa. Os técnicos se preparavam para closes com zoom, para captar o exato momento em que a mosca proferisse seu discurso.

Na pequena platéia sentia-se um certo desconforto. Comentava-se que uma aberração seria apresentada, desvirtuando o estilo do programa, que era assistido até pelo Papa. Talvez por isso é que o diretor fez tal alteração, para que a mensagem de Moska Kristo chegasse aos ouvidos do Sumo Pontífice e causasse, como de fato causou, uma grande comoção na igreja católica e em toda a cristandade.

Moska Kristo veio voando até o estúdio, como uma mosca qualquer, mas qualquer coisa que fosse, nunca seria uma coisa qualquer.

Eu tentava imaginar o que ele falaria na tv, mas quando caia em mim, via o tamanho absurdo que se apresentara ao mundo. O salvador, o filho de Deus, voltou ao mundo como uma prosaica mosca, e iria apresentar-se num programa de tv para todo o planeta. Aquilo era o fim da picada, ou quem sabe, o fim do mundo mesmo.

A apresentadora responsável pela entrevista com celebridades estava eufórica, mas ao mesmo tempo nervosa e visivelmente irritada com aquela situação que a deixava tão vulnerável frente às câmaras, coisa que ela conseguiu dominar no passar dos anos nesta profissão.

Eu me sentei numa cadeira ao lado de uns equipamentos, mas dava para ver Moska Kristo pousado ao lado de um microfone de lapela, que permitia ser focalizado por duas câmeras.

O programa foi ao ar. A apresentadora, uma belíssima senhora de seus trinta anos, armou-se de um grande sorriso e se dirigiu aos telespectadores:

- Bom dia a todos que assistem Questa Itália! Queremos pedir desculpas a todos porque não apresentaremos a entrevista anunciada, por um motivo que pode parecer hilário, mas que trará profundas mudanças em cada um de nós.

Ela lia o texto num monitor que ficava em sua frente, o texto que era escrito na hora pelo diretor do programa, sentado no chão, digitando em seu laptop.

- Hoje nós entrevistaremos nada mais, nada menos que uma mosca falante. Isso mesmo, não desliguem seus aparelhos. Não se trata de um número de ilusionismo, nem mesmo ventriloquia, mas um fato que irá fazer com que todos nós nos questionemos sobre as verdades que alimentamos em nossas vidas. Esta mosca não é uma simples mosca que aprendeu a falar, mas deixemos de conversa e passemos a palavra ao nosso convidado desta manhã, afinal, em boca fechada não entra mosca.

A última frase da moça foi um improviso que irritou o diretor, pois conferiu um tom sarcástico ao programa.

As câmeras focalizaram a mosca, enquanto ouvia-se a voz da apresentadora perguntando seu nome.

- Meu nome é Moska Kristo - disse o inseto - e este nome que pode parecer uma pilhéria, tal qual a que nossa amiga aqui ao lado fez há pouco, mas na verdade é um nome pelo qual fiquei conhecido na última vez em que vivi na Terra, porém em um corpo humano.

- Moska Kristo, isto quer dizer que você é a reencarnação de Jesus Cristo?

Neste momento ouvi um murmúrio de um técnico, mais ou menos assim: Meu Deus, isto é blasfêmia.

- Sim, isto é a pura verdade. As autoridades da igreja católica suprimiram toda e qualquer menção que se fez sobre o assunto nos escritos sagrados dos judeus e também nos escritos modernos sobre a minha vida como Jesus, para impor uma dependência do ser aos ditames da instituição, que rapidamente perdera os objetivos primordiais para se tornar meramente uma instituição temporal. A reencarnação é uma verdade, que as mentes prisioneiras nas mesquinharias materiais não admitem sequer cogitar, muito embora o vulgo consiga encarar com naturalidade esta condição comum da vida.

- Mas a reencarnação pressupõe que os seres humanos não encarnem em formas inferiores de vida. A doutrina da metempsicose é considerada falsa até mesmo por aqueles que defendem a reencarnação.

- Pois então fiquem vocês sabendo, por estarem me vendo, que a metempsicose, ou como queiram chamar, não é de todo falsa, mas é necessária para a própria evolução do espírito. Além do que, Deus, quando criou do puro amor as formas que por este mundo já passaram, não determinou escalas de qualidade, mas apenas ponderou necessidades. Os seres humanos, em seu mundo diminuto, quando não conseguem ver o que de maior o espera, é que repartem as coisas e dão valores a isso e aquilo, de acordo com suas impressões errôneas. Há mundos em que os humanos prezam os excrementos mais que os diamantes. Eu mesmo, somente estou falando a vocês porque pude fazer algumas pessoas me aceitarem como que digo que sou, até mesmo por se tratarem de seres que conviveram comigo quando andava como homem nas terras dos judeus.

Os telefones tocavam freneticamente. As perguntas dos telespectadores eram muitas. O superintendente da rede vinha e voltava, falando alegremente ao diretor que os índices de audiência nunca foram tão altos. A entrevista prosseguia.

- Eu estou, simplesmente, maravilhada, senhor Moska Kristo. Quando me disseram que eu entrevistaria uma mosca falante, nunca imaginei que estaria diante de, de...

- Minha cara., Fico feliz por perceber que me aceitas em seu coração, mas muitos nesta assembléia estão apavorados, outros espumam de ódio.

- O senhor não imagina o que se passa no mundo nesta hora. Mas voltemos ao bate-papo. Sua primeira missão foi uma missão de amor, e esta agora?

- Continua sendo uma missão de amor, mas por vezes o amor deve provocar algum espanto, quando os corações se protegem dele revestindo-se de couraças de ódio e egoísmo. Não estou muito distante do que fiz em Jerusalém, quando esperavam um messias vestido de glória e armado até os dentes para combater os romanos, e vim eu, montado num burrico, para simbolizar a humildade e a paz, que é o que deve interessar a todos os seres. Infelizmente queriam um messias de guerra, e escolheram a Bar Abbas me condenando à cruz. Morri como fora determinado, e fechei o ciclo que me aprisionava na Terra. Minha volta era tida como certa nos primeiros momentos do cristianismo, mas com o passar do tempo, as pessoas, oprimidas por seus medos e pelos tiranos que se armam frente aos homens para combater a paz, esperavam novamente um guerreiro, um príncipe engalanado, montado num corcel branco decorado com ouro e jóias reluzentes, descendo das nuvens... É uma imagem linda para um conto de fadas, mas nunca poderia ser real, porque minha volta teria que sacudir nos corações todo o orgulho que há depositado em seu fundo lodoso, destronar o egoísmo cultivado à base das exclusões dos semelhantes, por aqueles que se arvoraram a donos do céu, escolhidos para retornar ao paraíso, não se importando que quase toda a humanidade fosse condenada ao fogo do inferno, desde que eles estivessem salvos. Se uma única ovelha se extraviar, o pastor irá busca-la. Não deixará que uma única pereça, porque quase a totalidade do rebanho está a salvo. Para Deus não existe quase. Ele criou tudo e tudo deverá retornar a ele, no final.

- Não sou especialista, mas estou recebendo algumas perguntas de teólogos que dizem estar o Senhor contradizendo dogmas antigos e misturando cristianismo com budismo e hinduismo. Alguns religiosos estão acusando-o de herético, e há muitos pedidos para tira-lo do ar. Isto me faz lembrar daquele trecho dos evangelhos, quando Jesus invadia o templo, repleto de ladrões e comerciantes. Vieste trazer a paz ou a espada?

Naquele instante vi surgir na porta do estúdio o superintendente. Tinha o semblante preocupado, diria até mesmo abatido, e cochichou algo com o diretor, que o deixou aturdido. Levantando-se, veio até mim e disse-me que o Papa ligou, irritado, e ordenou que a entrevista fosse retirada do ar, por se tratar de grande ofensa à Santa Igreja Católica. Ficamos longos segundos em silêncio, que ele interrompeu com uma bravata: "Ao diabo com a igreja, prefiro a verdade.". Depois ligou para o superintendente e discutiu calorosamente, até convence-lo em manter Moska Kristo no ar.

Algumas pessoas na platéia estavam começando a se manifestar ruidosamente, o que demandava maior contingente de seguranças para manter a ordem. De qualquer forma, eu já estava me inquietando para onde tudo estava se encaminhando.

- Respondendo sua pergunta, digo a você e a todos que vim trazer-lhes a paz, mas não aquela concebida na mentira. A paz não é ausência de violência e sim a cortesia e o amor que se possa ter para com o próximo. Não há paz quando as pessoas se armam esperando um gesto agressivo dos outros, pois o ato de armar-se já é agressivo. Não há paz quando apenas um grupo seleto pode usufruir determinadas prerrogativas, enquanto multidões vivem em meio ao sofrimento e a angustia. Vim trazer a paz, uma segunda vez, e de uma forma contundente e direta, para não dar margens às segundas intenções dos fazedores de seitas, que buscam dividir os homens enquanto toda minha mensagem visa apenas uni-los.

- Se era preciso que viesses uma outra vez, porque a forma de uma mosca?

- Se aqui me apresentasse na forma de um homem, seria mais um, mais uma voz que diz estar carregando consigo a mensagem, mas são tantos os embusteiros, tantos os enganadores que, nestes tempos ávidos de esperança se lançam a enganar os pequeninos amados de meu Pai, buscando construir seus impérios de luxo sobre a miséria dos homens, que preferi chamar a atenção de todos de uma forma mais enfática.

- Mas, porque a mosca?

- Porque é um ser tão odiado, tão combatido, um ser que todos devotam grande repulsa, que seria como uma bofetada para acordar de uma vez todos os incrédulos. Aqui está uma maravilha, uma obra de Deus para chamar os homens de volta ao caminha da paz e do amor. E aqui estou eu para passar esta mensagem no tempo em que vive uma mosca. Ouça-a e viva-a, pois esta é, de fato, a última chance.

Naquele momento uma mulher enlouquecida começou a gritar e se lançou ao palco, diante das câmeras, sapato em punho, procurando acertar Moska Kristo. Ela gritava histérica, chamando-o de demônio, e sua invasão pois fim ao controle dos seguranças. O programa saiu do ar e Moska Kristo fugiu voando, e ao passar por mim disse: "Espere-me nos fundos.".

Um pandemônio tomou conta do estúdio, e os seguranças estavam fechando todas as saídas para tentar conter aqueles que queriam a todo custo entrar para matar a mosca. Eu consegui deixar o lugar o mais rápido possível e me dirigi para os fundos do prédio, onde achei Moska Kristo pousado sobre uma caixa de papelão.

- É verdade que você vai viver a vida de uma mosca? Apenas vinte e quatro horas?

- Sim meu caro Pedro, até Deus tem que respeitar suas próprias leis. Não fique triste por mim, pois morrerei mais feliz que da primeira vez, servirei de alimento para uma aranha qualquer, e não para a sanha assassina da multidão enlouquecida por falsos líderes. Ouça Pedro, preciso ir até o Vaticano. Tenho que me encontrar com o Papa.

- O que tens a dizer ao Papa, Senhor? Não era para ele que falava, era para o povo. O Papa, ou qualquer líder de qualquer religião pouco tem que ver com aqueles que têm fé.

- É um homem sensato Pedro. Os últimos dois mil anos serviram para aplacar sua impulsividade. Tens razão. Não preciso ver o Papa, mas quero muito isso. O que eu disse na televisão deve ter mexido com os fiéis do mundo todo.

- Não ficaria tão confiante, Moska Kristo. A tv é um circo dos horrores. Hoje foi uma profética mosca falante, amanhã é um cantor comedor de crianças, depois um terrorista milionário a denotar edifícios, uma cantora que beija qualquer mulher que lhe aparece na frente. É uma loucura atrás da outra, para preencher os espaços que ficam vazios nas almas dos homens que não podem enche-lo com milhões de dólares.

- Está amargo, Pedro? Não se deixe dominar pela amargura. Temos que nos fortalecer com o máximo entusiasmo para vencer o mal que vem disfarçado de desesperança. Vamos, acompanhe-me até o Vaticano.

E assim fomos até a praça do santo xará que, por coincidência, era eu mesmo. Confesso que este negócio de reencarnação estava me deixando meio confuso, mais do que quando enchia a cara e dormia atirado na sarjeta.

Assim que chegamos ao centro da praça, Moska Kristo pediu que me afastasse o máximo, pois ele precisaria de espaço. Não entendi nada, mas fiquei espantado com o que aconteceu depois.

Moska Kristo começou a crescer, crescer, crescer, até ficar com a espantosa altura de uns trinta metros. Eu estava estupefato. Não conseguia nem sequer coordenar o pensamento para entender o que estava acontecendo. Naquele instante ele começou a gritar bem alto, com uma voz terrível. A voz de uma mosca falante de trinta metros. Ele chamava o sumo pontífice pelo nome:

- Damian, Papa Damian, apareça agora mesmo!

Em volta da praça estava formada a assistência mais estranha que já vi num espetáculo público. Porém nunca soube de um espetáculo dessa natureza. Turistas, padres, soldados do Vaticano, repórteres. Todos queriam saber que diabos estava acontecendo ali. Sem falar nos gritos histéricos que se ouviu no início da metamorfose da mosca, de mosquinha para moscão, e nos desmaios das beatas e freiras. Não sou machista. Muitos homens também desmaiaram, eu quase desmaiei também.

O Papa Damian apareceu no balcão de onde ele pronuncia seus sermões públicos. Com a ajuda de um megafone, dirigiu-se a Moska Kristo:

- O que queres, ó aberração demoníaca. Já não foi suficiente a loucura transmitida pela televisão? Agora é este circo?

O papa Damian era um homem de sessenta e seis anos, mas seus cabelos ainda não eram de todo branco. Era bastante vigoroso, mas uma corcunda em suas costas fazia-no andar encurvado, o que causava uma impressão estranha para quem via pela primeira vez o sumo pontífice.

- Não me fale de aberração Damian -bradou Moska Kristo. Ordeno que revele a verdade perante o mundo!

- Não sei do que fala, demônio. Aparta-te e volta para as profundas.

Então Moska Kristo desenrolou sua longa tromba e apontou-a na direção do Papa, esguichando um líquido ácido e gosmento que dissolveu suas vestes, para espanto de todos os presentes.

A mitra papal se desmanchou como papelão molhado, e a vasta cabeleira de Damian caiu imediatamente, deixando ver um par de chifres pouco acima de suas frontes. Eu não estava perto o suficiente para ver aquela coisa, mas os cinegrafistas gravaram tudo de um lugar que permitia uma vista privilegiada. As roupas de Damian também se desmancharam, deixando-o nu e revelando sua verdadeira natureza. Um corpo coberto de pelos grossos, pernas que lembravam patas de cabra, terminando em cascos no lugar dos pés. Uma cauda escamosa e pontuda, que balançava de um lado para o outro, e o mais espantoso: sua corcunda era na verdade um par de asas negras e membranosas, que agora se abriam atrás de si.

Não preciso dizer que o caos se instalou naquele momento. O pânico dominou as pessoas na praça, que corriam desorientadas. De repente percebi que vários religiosos, padres, freiras, monges, se transfiguravam, metamorfoseando-se em demônios e começavam a atacar s pessoas, destroçando-as, e regozijando-se após cada assassinato. Depois eu soube que o mesmo fenômeno ocorreu em todo o mundo, com religiosos de todos os matizes, não somente cristãos, mas todos, sem exceção.

Damian pulou da sacada, e enquanto caia, aumentava espantosamente de tamanho, ficando da mesma altura do nosso Moska Kristo.

Os dois colossos se engalfinharam ferozmente, desferindo golpes violentos, que estremeciam a praça. Era uma coisa única ver aquele anime ao vivo, uma luta monstruosa que lembrava as velhas séries japonesas dos anos sessenta, como Ultraman ou Godzila.

Enquanto lutavam, aqueles seres enormes iam destruindo o Vaticano, derrubando a Capela Sistina e outros prédios vizinhos, numa devastação sem igual.

Eu estava escondido sob alguns escombros, a salvo dos padres-demônios e torcendo pelo sucesso de Moska Kristo, que parecia estar em desvantagem contra o vitaminado demônio Damian.

Mas nunca devemos descrer do poder do Bem contra o Mal. Moska Kristo deferiu um golpe arrasador no peito de Damian, atravessando-o com uma das patas, e levando junto seu coração.

Aquele golpe foi fatal. O demônio estremeceu e derreteu-se numa gosma marrom e mau-cheirosa. Percebi que os outros demônios também estavam derretendo, o que converteu a praça de São Xará numa fedentina só, como se uma disenteria coletiva tivesse acometido seus visitantes em dia de discurso papal. Moska Kristo voltou ao tamanho normal e voou em minha direção...

- O que? Porque vocês estão me olhando assim? Está bem, está bem. Não foi "exatamente assim que aconteceu", mas não está muito longe de ser a verdade.

Quando eu cheguei nos fundos da emissora, ouvi os gritos de Moska Kristo que estava preso numa teia de aranha, e se debatia sem muito sucesso, enquanto aquela criatura asquerosa seguia rapidamente em direção do mestre para fazer dele seu almoço, pois já era quase meio-dia.

Desesperado, sem poder alcançar a teia da aranha, tirei um sapato e atirei na sua direção, destruindo a armadilha do aracnídeo e pondo Moska Kristo a salvo. Ledo engano. Com a sapatada, Moska Kristo ficou gravemente ferido. Resgatei-o dentro de uma lata de lixo e limpei-o das teias na palma de minha mão.

- Pedro, Pedro, minha missão chegou ao fim. Não há mais nada a fazer nem mais nada a dizer. Não mais serão enviados seres divinos para a Terra. Os homens terão que encontrar a paz e o amor necessários à sua sobrevivência por seus próprios esforços. Já os ensinei a pescar, agora, mãos à obra. Peço a você que mantenha por mais alguns anos a chama de minhas palavras acesa. Encontrará somente quem te queira calar. Muitos quererão destruí-lo, para que meu nome seja apagado da história. Quem afinal desejaria ser discípulo de uma mosca falante? Mas te peço Pedro, que mais uma vez não se cale e cultive minhas palavras como um jardim, até que as flores comecem a despontar. Nessa hora, posso assegurar, as bem-aventuranças estarão sendo despejadas sobre as cabeças dos seres deste planeta, que experimentarão finalmente a minha paz. Adeus Pedro. Deixo-te meu corpo como prova da minha aliança contigo.

E dizendo estas palavras, Moska Kristo expirou ali mesmo, em minha mão.

Chorei muito, pois fui o causador da morte do meu mestre, mas desde então, tenho vagado pelo mundo contando sua história e mantendo acesa a força de suas palavras de paz, amor e esperança de dias melhores.

O homem precisará ainda, por muitos séculos, das palavras de alento que avatares diversos lhes doaram ao longo do tempo. Moska Kristo no entanto não é apenas mais um deles, mas sim o Príncipe dos salvadores da humanidade, que entregou por fim a chave da paz aos homens para que eles a alcancem por seus próprios méritos, sem se escorarem nas muletas das religiões. Por isso mesmo eu não erijo templos nem forjo rituais, apenas sento aqui e converso com vocês sobre uma mosca falante que se atreveu a mostrar aos homens que ainda é possível retomar o caminho mostrado há dois mil e cinqüenta anos.

- O que é? Ainda assim você não me acredita? Mas acreditará agora mesmo, quando eu te mostrar algo. Está bem aqui, nesta caixa de fósforos. Foi onde eu guardei o corpo do Mestre Moska Kristo. Vê? Você está vendo agora?



Marco Antonio Cardoso
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