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Cronicas-->A Pescaria -- 25/11/2011 - 16:50 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

O barulho do mar, batendo nos costados dos barcos ancorados ao largo, no porto sob o sol seco de Setembro, era um eterno borbulhar. Ondas entravam na baía e deixavam riscas de espuma em grandes faixas;gaivotas faziam vôos rasantes, numa eterna e sonolenta procura pelos peixes desovados na praia pelas gigantescas redes de pesca. Eu saboreava um cigarro, desses que se vendem em lojas de pequenas quinquilharias, onde aos maços se misturam pentes, cortadores de unha, estojos de coser roupa, carteiras baratas, espelhinhos de cabelo e brinquedos baratos. Tragava e a fumaça poderosa, espessa, penetrava nos pulmões, saciando minha sede de nicotina.

Se havia uma imagem do Mal, essa era a imagem das redes traiçoeiras, enredando os peixes como se almas perdidads fossem , atraídos pelos alimentos do fundo da baía e arrastados à desgraça por uma força irresistível, maior que a de suas pobres nadadeiras. Nada podia deter o arrastar movido a braços musculosos, gritos que começavam ao longe, luzes nas pontas das redes.

--Miguilim, apruma aí, apruma aí!

--Arrasta mais; puxa! Puxa que vai escapar!

Vinha a multidão, cada qual num pedaço de rede, levando os pobres seres marinhos em sua passagem; os mais fortes saltavam, pulavam por cima do cordame que era aonde estavam as mãos dos pescadores. Não só uma vez, mas várias, eu mesmo vi golfinhos devorando em pleno ar sardinhas que pulavam para fugir de um inferno maligno ao purgatório negro dos dentes devoradores. Apruma aqui, grita outro acolá, mais um que quase se afoga((de novo) e chega a rede fervilhando de vida e brilho. Sim, luz, algas marinhas que preenchem os vazios na mistura de barbatanas, nadadeiras, espinhas, peixes-espada; polvos se arrastam com dificuldade, milhares de siris transtornados tentam ferroar as mãos que os prendem em grandes ganchos.

Não me cansava de ver as águas vivas rebrilhando em pulsos estranhos, em espasmos de cor variegada, entre o âmbar e o azul, o verde fosforescente e o amarelo. Notei a presença do taciturno homem ali, bem ao lado da rede, a olhar para o infinito. O que chamava a atenção era sua altura, alto e magro, a reserva nos modos, o olhar que estava entre a indiferença e o sonho.

--Miguel, puxa mais a sua parte! Puxa!!!

--Incrível como o mal está em toda a parte.

Era o estranho homem, vestido de um sobretudo cinza que serviria num mar chuvoso, mas à beira da praia, naquele calor da areia que já se insinuava, dava-lhe um ar lúgubre que bem ornava com as palavras que acabara de dizer.

--Refere-se à rede?

--Ela é só uma parte da idéia. Eu digo que o mal está em toda a parte, senão o que estaríamos fazendo aqui, contemplando estes seres desesperados que tentam de todas as formas sobreviver? Do ponto de vista deles, somos a própria encarnação do mal, quando na verdade somos intermediários; apenas cumprimos os desígnios de uma força maior, que determinou que se fizesse a rede, que os capturou a todos. Esta sim é a força maligna.

Eu traguei mais fundo, antes de virar-me e contemplar verdadeiramente seu rosto sob a sombra da noite que terminava.

--Isto o incomoda?

--De jeito nenhum. Incomoda-me como nos acomodamos à idéia do mal necessário. Justificamos tudo pela sobrevivência. Precisamos de comida, logo fazemos a rede. Logo se justifica tal mortandade--porque este inferno não se justifica senão pela fome que pretende combater.

--Mas se assim o é, como faríamos para combater a fome?

--Já ao início, se apenas pescassem o que fosse preciso e devolvessem os pobres seres ao mar que não iriam consumir, fariam melhor. Mas não: Destroem todas as formas que desconhecem, em nome do progresso, do combate à fome, em nome do dinheiro que precisam ao fim de um mês. Para quê?

--"Jesuíno! Traz pra cá, traz pra cá."

--Eles nem sabem, mas o mal os persegue até a raiz. Na raiz de suas vidas já brota a semente da escuridão. No alimento que consomem, no peixe que nada até a morte, medra o sonho do espelho invertido de suas vidas...

"O que é o mal? É esta perversão, este frenesi em que se refestelam os homens, numa busca louca pelo que sobra e pelo que lhes agrada. Degradam a tudo, mancham de nódoa as águas puras do mar e empesteiam o ar com suas nuvens de tóxicas fumaças. Este é o mal, o mal moderno, progresso a qualquer custo, apego ao mínimo vintém desalmado. Esta é a essência da perdição do Homem."

"Em nome do poder, nações se levantam entre si; duelam em frágil batalha, da qual saem todos perdedores. Podem destruir o planeta milhares de vezes e continuam acumulando acima de suas cabeças os mais perversos instrumentos da morte. Voam impávidos em todas as direções, assoreando os rios da vida e enchendo de sujeira até os mais ínfimos abrigos onde ainda poderia medrar um brilho em suas almas."

"Esse é o mal"

O mar mostrava ao longe estranhos ruídos, como se protestasse contra a nova colheita covarde que se lhe fizera. Quebravam ondas mais altas nas margens da baía e o vento eriçava as águas profundas. O ar em rajadas anunciava nova tempestade, os pescadores se apressavam porque ainda a rede assomava do mar em carrancas ameaçadoras. Um peixe negro voou nas ondas que se avolumavam e mais de um pescador pensou ouvir um grito de mulher. Cheios de superstição, muitos se persignavam.

"Esse é o mal", ecoavam as palavras do sinistro visitante, que eu já não via mais. Eu o vi se afastando, como que fugindo.

A rede trouxe o corpo de uma moça desconhecida, pálida e linda, e estava como se dormisse.

Ninguém se atreveu a tocá-la.

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