Queria ter escrito este texto no calor da emoção. Da perturbação. Adoro escrever emocionada... Mas foi impossível.
Você já leu o conto Amor, de Clarice Lispector? Aquele em que Ana, a personagem, fica abalada ao ver um cego mascando chiclete.
Não sei como você reage a certos acontecimentos que parecem banais, mas que , na realidade, são fraturas no nosso dia a dia. Talvez por causa da sensibilidade, eu me emociono com muita coisa que passa desapercebida.
Ontem, voltando para casa depois de ter ficado o dia todo fora, também fiquei impressionada com o que vi diante do meu carro.
Na esquina do prédio onde moro, há um grupo de mendigos que se aconchega embaixo de um teto. É uma espécie de varanda sem portão. Eles jogam seus colchões ali e dormem amontoados. É, eles têm colchões...
Sempre que voltamos para casa, meu marido e eu comentamos alguma coisa sobre a condição em que se encontram essas pessoas, fico com o coração partido... penso no quanto é triste ver um homem se deteriorar... acabo viajando na minha dor que termina assim que entro em casa.
Ontem, quando parei no semáforo da esquina onde ficam hospedados esses mendigos, vi uma cena que me desorientou. Um deles atravessava a rua com uma garrafa pet na mão. Estava repleta de um líquido amarelado (cachaça, certeza). Mas o que me chamou a atenção foi ver o movimento da face daquele homem... ele mascava chiclete! Lembrei-me, na hora, do conto da Clarice Lispector. Na hora. Primeiro fiquei perturbada com a cena. Segundos depois... o conto. Eu vivi a mesma sensação da Ana. Acredita?
Vê-lo mascar chiclete me fez menos compassiva. Hoje não tenho mais pena deles. Mascam chicletes! Pode ser que amanhã meu coração volte a ser manteiga... mas hoje... Hoje é como se eu não precisasse me preocupar, pois vivem bem. Estou como se ele tivesse me olhado e dito: não precisa ter pena de mim, estou bem assim.
Fiquei perturbada porque vi um mendigo vivendo tranquilamente sua vida... mascando chiclete...
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