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Cronicas-->O Homem Solitário -- 02/12/2010 - 19:52 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Pescoço alvo, longos cílios, cabelos fartos. Todo seu corpo demonstrava impaciência. Um ligeiro tremor percorria seus lábios, enquanto ela falava e tamborilava seus dedos finos e elegantes sobre a mesa de vidro da sala de jantar. Falava com rapidez, mal dando tempo ao seu companheiro de responder às suas afirmações. Nem que ele quisesse ousaria contrapor argumentos, os dela eram irrefutáveis. Um sentimento de inutilidade, de esvaziamento o inundava; como dizer o que sentia se o que havia para dizer era tão pouco?

--E então, Jaime? Como explicar tudo isto?
--Você tem razão, querida.

O problema é que ela sempre tinha razão. Frouxo, Jaime era o tipo de homem facilmente corruptível, facilmente manipulável. Percebendo isto, os outros-e outras-faziam dele gato e sapato. Daí, chegar àquela hora achando ainda que teria algum vestígio de razão era muita ingenuidade da parte dele. Ela tomara pulso da situação e, cá entre nós, havia algum tempo não o suportava. As pessoas escolhem os momentos certos, porém ela, com sua longa experiência de casos semelhantes e de longas noites investigando o que sempre suspeitara, agora resolvera de uma vez por todas virar a situação.

--E então?...
--Bem, posso explicar tudo, querida.
--Vamos ver. Posso tentar introduzir sua explicação. Trabalho até mais tarde? Não, não é, porque liguei no seu trabalho e você já havia saído.
--Bem, nem sempre me acham em minha seção.
--Sua seção fechou há horas. Só tem o vigia na empresa, se é que seu chefe controla quem fica lá dentro.
--Ligou ao meu chefe?
--Sim, perguntei se ele havia pedido que você fizesse o balanço da empresa. Sabe como é, final de ano, balancetes, fechamentos de folha, levantamentos. Francamente!

Os olhos dela, dois coriscos azulados e flamejantes. A boca com um sorriso cruel, de quem sabe o que fala. Lá, no fundo, as portas fechadas. Seus filhos, um estava fora viajando, o outro dormia (ou fingia) e se escondera de tal cena, tantas vezes repetida. Ele, meio que um traste, camisa meio amarrotada e um certo hálito que denunciava um certo abuso. O relógio de parede, com seus enfeites, dava as duas badaladas, altas horas da madrugada, hora de sua chegada silenciosa e humilhante. Ela demolia seus argumentos como um muro apodrecido, as bases de sustentação de seu edifício de mentiras caindo por terra. Ele, nervoso, tinha um tique que a irritava mais, apertava as orelhas e mordia os lábios num esgar que só o deixava mais ridículo, como se não bastasse sua aparência lamentável.

--Sabe o que parece? Parece um cachorro que caiu da mudança. Você já não me convence mais, "querido" ( e ela escandia as palavras, separando as letras para aumentar a sensação de desassossego nele). Estas horas extras, este trabalho todo, de que serve seu dinheiro se você nem liga mais? Se sua alma já não está mais por aqui? Hein, Jaime?
--Em verdade...

Os ombros dela... Levantando-se, ela ia à geladeira e apanhava um refrigerante. Arrancava a tampinha de metal, machucando o dedo, como sempre, sangrando a ponta. Ele então, largava a maleta, o paletó amarfanhado e corria ao banheiro, para apanhar um algodão. Isto não a faria cicatrizar as feridas que ele lhe impusera e nem traria de volta o encanto que evaporara de sua relação. Porém, era uma consideração que ele tinha que ela já relevava como algo secundário, forçado, algo que seria um ramalhete de flores secas ou um vaso de cactus, por exemplo.

--Não, querido. "Querido": chega por aqui.
--Como assim, Roberta?
--Falei com minha mãe. Ela tem um quarto. Vou me mudar para lá. Você fica, se quiser. Eu vou para lá, mexo minhas coisinhas. A gente precisa parar de se enganar, Jaime.
--Mas, querida... Vamos dar tempo ao tempo...
--Já perdi muitos anos de minha vida tentando lhe dar crédito, seu idiota. Se pensa que eu sou idiota, está redondamente enganado. Já fui; agora, não sou mais.
--Deixe eu explicar...
--Hã Hã! Vamos aos fatos. Você bebe, eu fumo. Você chega tarde, eu não. Criei meus filhos, você mal respira em casa. Você dirige um carro, eu volto de ónibus. Ainda tem o desplante de chegar a esta hora e vir com essa cara de vagabundo pedir tempo ao tempo? Toma vergonha, homem. Isso lá é atitude de homem?
--Homem eu sou, querida...

Apunhalado em sua própria masculinidade, depois de passar grande parte da noite exercitando... Bem, era demais. Os lábios dela falavam sem parar, dentes de uma perfeição de dentifrício, perfumados, inundavam a atmosfera de um caldo escaldante de ciúmes, pesado e ácido. A outra não; tinha a presença de um anjo. Nunca o cobrara. Jaime nunca se sentira tão pleno, tão sólido ao lado de uma mulher e agora, poucas horas depois da plenitude do gozo, era esfaqueado em sua própria hombridade. Como ele não era de discutir muito, como sempre fora um homem cordato, afastou-se da boca trovejante e entrou em seu quarto, tonto de zumbido. Os ouvidos zuniam, a boca seca , um forte pulsar nas têmporas, enquanto a chuva ácida o açoitava sem cessar. Antes que pudesse pensar, antes que sequer raciocinasse, antes que houvesse qualquer sentido nos seus passos, viu-se na rua. Caminhando ao largo, passos rápidos, iluminado pelos postes secos. O guarda noturno o viu e apitou. Imediatamente uma viatura se aproximou. Era uma hora suspeita, ele estava só, caminhava só e rapidamente. Sem documentos, tinha medo de ser preso. Sem direção, desesperou-se sem saber do risco.

Ouviu um estampido.

Ergueu as mãos, vencido pelo medo e pelo cansaço. Um holofote poderoso mirou seu rosto, cegando-o momentaneamente. Ele pensou, não sem razão, que ali começava uma saga ou terminava a sua.

--Não sabe que não pode andar assim rápido pela rua a essa hora, civil?
--Sim, senhor.
--Então, que faz na rua a essa hora, ó remelento?
--Vim pensar, senhor.

Levou o cassetete nas costas, dobrando involuntáriamente as pernas, caindo sobre os joelhos inerme, mole e tremendo de pavor. Algo lhe agarrou os cabelos e puxou para cima, enquanto outras mãos tateavam seus bolsos à procura de armas, drogas ou dinheiro. Qualquer coisa servia nestas horas.

--Ele não tem nada, Senhor!
--Nem umzinho?
--Nada, Senhor!
--Nem uma verdinha?
--Limpo, senhor! Deve ser um desses pobres diabos que não tem casa, Senhor!
--Não parece.
--Não sou mendigo!

O murro veio certeiro, tirando seu fólego já curto.

--Quem disse que a boneca pode falar?
--Sim senhor. Me desculpe senhor.
--Para onde está indo? Encontrar-se com os subversivos praticantes de Yóga nas catacumbas? Ou vai visitar mamãezinha no cemitério vertical?
--Pensava apenas em pensar. Pensar na vida.
--De pensar morreu um burro, não é tenente?
--Sim, senhhhor!!
--Cabo, leve esse homem na viatura. Lavre uma queixa: Desrespeito à lei do sítio, uso de psicotrópico; Doença mental, perturbação da ordem pública...O de praxe.

Na moderna viatura ele foi fichado e levado à delegacia. Como não tinha antecedentes, liberaram-no, não sem antes dar uns safanões.

--Mendigo de merda!
--Sim, senhor.

Já acreditava ser mendigo. Decidiu ir à casa de sua namorada, o centro de todo o redemoinho. Ela, tão perfumada e doce...Ela, com seus olhos suaves, as mãos sábias a percorrerem seu corpo...Ela que nunca o cobrava, que nunca o deixava sem um carinho... Depois de longa caminhada se esgueirando pelos becos e sórdidas ruas escondidas, chegou à casa dela. Viu uma luz em sua janela. Ela, acordada?
Tocou o interfone.

--Sim?
--Oi linda!
--Jaime?!!
--Surpresa!
--Mas, não era para você estar em sua casa?
--Era.
--Que faz aqui?
--Atrapalho algo?
--Ahn, não. Pode subir.

Ele subiu após o estalido do portão eletrónico e tomou o elevador. Quando ela abriu a porta, estava de cabelos molhados e havia um estranho perfume no ar. Ele entrou, desorientado e ela se compadeceu, pois ele exibia hematomas no rosto e machucados nos cotovelos, além de sua camisa estar toda amarrotada e a calça com marcas de urina.

--Bebendo de novo? Já falei que não gosto disso!

Ele tinha sido, toda a sua vida, um homem cordato. Pensava ter sido um bom pai, no entanto, seus filhos nem o olhavam porque no fim já sabiam de suas escapadelas com ela. Bom marido já não era faz tempo. Agora, depois de tudo o que passara, ainda chegar e ser confundido com um bêbado, depois de ter sido chamado de mendigo de merda...

--Até você???
--Calma, perguntei só por perguntar.
--Aliás, que faz acordada a esta hora? Não é você que vive dizendo que tem de dormir cedo porque amanhã, ah sempre o amanhã, tem de trabalhar duro? Não é você que vive me mandando me apressar porque tem de sair cedo para o trabalho? Hein, gatinha?

Sem pensar a agarra pelo pescoço, pelos cabelos e a puxa contra si. Tenta lhe beijar mas ela o repele...

--Espera, não é assim! Você está...fedendo!
--Que é que você esperava? Que usasse perfume francês? Que eu chegassem em casa e minha mulher que você tanto abomina porque ela me trata mal estivesse me esperando com a boca cheia de dentes lindos e me beijasse para me passar sua pacífica decisão de não me querer mais? Que você esperava depois de eu andar por horas nessas ruas sujas, ser preso por violar o sítio e ser espancado por policiais que me diziam coisas horríveis? Esperava o que, hein?
--É que...Bom... Eu...

Ele olhou com o canto do olho e viu o vulto de um homem sentado numa poltrona do seu quarto. Compreendeu de imadiato. Não disse um ai. Saiu pela porta, como havia entrado, não sem antes ouvir a biscate murmurar...

--Jaime...Eu te amo...Posso explicar!
--Vá se danar! Você, minha ex, meus filhos, a putaqueospariu.

Saiu às ruas. Sentiu-se livre. Jogou-se no mundo. Nunca mais apareceu na casa da moça. Sumiu do emprego, a mulher desesperada procurou inutilmente seu "querido"; os filhos o buscaram nas ruas. Ele se mudou definitivamente para os cantos escondidos, vivendo de pequenos serviços. Fêz questão de não se degradar. Oferecia seus préstimos a padarias, reformas pequenas, serviços de eletricidade... Todos o conheciam, agora, por Roberto. Vivia num cómodo, que dividia com vários expatriados como ele. De noite, lá pelas onze, quando havia lua, ele pensava, no alto do prédio onde vivia:

--Liberdade, ainda que tarde...
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