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Cartas-->Ao meu filho que vou matar -- 10/09/2005 - 14:15 (Roberto Bordin) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Meu filho:


Esta carta que estou escrevendo para ti é uma arrematada loucura. De antemão sei que não vais ler por vários motivos. Primeiro, porque só tens quatro anos e nem sabe ler. Claro que se esperarmos mais alguns anos, tu estarás alfabetizado e poderás ler tudo o que estou a escrever neste papel como uma confissão. Mas nós sabemos que isso é impossível.
Quero confessar-te, tua doença é irreversível. Teu corpo não reage, tua doença não tem volta. Os médicos só sabem dizer que tu podes viver um dia, um ano, dez anos, sei lá . Ninguém sabe nada. A Medicina está morta. Deus está morto. Mortos, como está teu corpo respirando por aparelhos. Teu corpo não poderá brincar com teus amiguinhos, de roda, de pião, de empinar papagaio. Não poderás tirar uma moça para dançar, apertá-la em teus braços, ter sua primeira ereção ao som de uma música romântica (se é que ainda existe uma música romântica). Não poderás abraçá-la ou beijá-la, dizer-lhe juras de amor, nem poderás declarar-lhe amor eterno, pois de eterno só tens o teu sono. Não poderás casar com a mulher amada, nem ter filhos, netos e bisnetos. Tiraram tudo isso de ti. Condenaram-te a viver cercado de enfermeiras que, como uma obrigação, vão te ministrar doses e mais doses de remédios para prolongar tua vida. Mas isso que te destinaram é vida?
Crescerás, arrebentarás pijamas e mais pijamas do hospital, pois teu corpo não aceitará aquilo que te dão. Na puberdade, de ti brotarão pêlos e mais pêlos, transformar-te-ás em homem.
Um homem que não produzirá, que não entrará na roda viva que é a vida. Um homem que não saberá a cotação do dólar e do euro, nem os índices de custo de vida e de inflação. Não saberás e nem quererás saber se Al Kaeda cometeu outro atentado ou não.. Não reagirás a nenhum 11 de setembro seja em que ano for. Pouco irás te importar se o primeiro-ministro ou quem quer que seja é de direita ou de esquerda. Liberal ou conservador? Nada te afetará.
Tu não és autista, nunca foste, mas te obrigam a agir como tal. Passarás anos e mais anos alheio a tudo que te cerca. Teu corpo jazerá eternamente nesta cama. Sem uma reação sequer. Como disse um médico amigo do papai, vivo só é o ar que tu respiras. É o único sinal que tu mandas para nós. É apenas o presságio que ainda existe vida em ti. Até quando, ninguém sabe...
Meu filho, este sinal é tudo? Só isso? Nada posso esperar de ti? Nada mais além disso? Agora, eu te pergunto, é vida? Ficar olhando para ti, acompanhar este tênue movimento de tua respiração. Privar-me de tudo o que poderias me oferecer e que seria tão belo: tua formatura, tua carreira, tua ascensão, teus sucessos.
Não, não sou tão pretensioso. Claro que estaria ao teu lado enxugando teu suor, tuas lágrimas pelos fracassos. Meu papel também é de confortar-te nas horas difíceis e não só gozar as horas alegres e de sucesso. Rir e chorar faz parte da vida. Da vida de muitos, menos da tua. E volto a te perguntar, isso é vida?
Não, não espero tua resposta. Recolhido no teu sofrimento, sei que não podes responder nada. Não tens idéias, não tens respostas. Serás que estás coberto de interrogações, como estou? Serás que estás coberto de dúvidas como estou? Serás que tu pensas se há algum o sentido nesta merda de vida? Não. Não podes estar, tu só tens quatro anos, apenas quatro anos e nem consegues entender como ela é amarga.
Com esta tenra idade já tens todas as esperanças roubadas, usurpadas. Nem podes questionar nada. A idade dos questionamentos ainda está longe de vir. Não poderás conhecer as alternativas do que serias quando crescesses? Médico? Engenheiro? Poeta? General? Déspota? Ditador? Gay? Garoto de Programa? Don Juan? Andarilho?
Tua única é o teu leito, espécie de túmulo em vida.
Eles falam que estás em processo degenerativo. Definhando a cada dia, a cada hora, a cada minuto. Isto é vida, meu filho? Responda: isto é vida?
Qual o quê? Não respondes, não dás, nem darás sinal algum.
Ah, meu caro, sou um covarde! Não sei como agüentar tudo isso? Não posso suportar esse marasmo que está se tornando minha vida resumida em apenas te olhar. Não posso agir, nem interagir, não posso ensinar, nem repreender, nem aconselhar. Que pai sou eu? Que pai serei eu?
Ah! Deves estar perguntando: só pensas em ti? E eu, pai, e eu? Quem sou eu, pai? No que fui transformado? Num....
Não, não fales assim! Nem penses nisso! Tire todas as idéias negativas de tua cabeça. Não te rotules de nada, não penses em te qualificar disso ou daquilo. És apenas o filho meu e de tua mãe.
Não, meu filho, tua mãe não é o maior dos problemas. Nem imagines que nossa separação é por tua causa. Nada a ver. Nada a ver... Separamo-nos... Apenas isso. Não havia mais amor... Só indiferença... Nossas brigas não começaram depois da tua doença. Vieram de antes, bem antes. Estavas muito pequeno para entenderes. Certo que brigamos mais agora diante do teu sofrimento. Temos opiniões opostas. Aliás, todos têm a mesma opinião oposta à minha. Tua mãe vai ao extremo de declarar aos jornais, que tu és filho dela de qualquer jeito, andando ou mofando numa cama, correndo pelos jardins ou definhando; rindo alto ou apenas respirando sôfrego. Será que ela tem razão? O errado sou eu? Os jornalistas acompanham-me a toda parte. Querem que eu me defenda dos ataques de tua mãe. Prefiro me calar. Já disse o que penso.E ela continua a atacar-me. Pelo rádio, pela TV, pelo jornal. Acusa-me de pai desnaturado. Atira-me na cara que sou descrente, desumano, que joguei todas as minhas esperanças no esgoto que se tornou minha vida. Será que é isso, meu filho? O que tu achas? Não é uma questão de descrença, aceito a realidade dos médicos que dizem que teus dias estão contados, que a Medicina por mais aperfeiçoada que esteja não encontrou o remédio para tua cura. Não existe paliativo para tua doença, nenhum elemento químico que te faça abrir os olhos e sorrir para mim, para tua enfermeira ou para a esperançosa de tua mãe. Ninguém se aventurou em descobrir uma droga que te faça ressuscitar para a vida.
Tua mãe xinga-me quando digo que estás morto para o mundo. Vira bicho, uiva, quer avançar sobre mim como se eu fosse o mais abjeto dos seres. Cega pela ilusão, sonha com um remédio a jorrar dos céus, que recolherá com as mãos, besuntará teu corpo inanimado, transformando-o em vida, vida nova. Repete como autômato: “ a esperança é a última que morre”. O que ela não entende que não estás morto, mas também não estás vivo. Ela quer apenas ficar com a migalha que é teu respirar.
Particularmente, eu gostaria muito que voltasses de onde estás, para contares tuas experiências, tudo o que estás passando, sentindo, vivendo. Eu queria partilhar contigo de tudo isso. Mas eu sei que não há jeito. Reconheço quer teu retorno é impossível.
Só uma coisa é incontestável, não tenho capacidade para acompanhar teu definhamento a cada segundo.
Meu filho querido, tomei uma decisão. Uma drástica decisão. Após terminar esta carta, desligarei todos os aparelhos que te fazem, não viver, mas sobreviver e – desculpe a palavra rude – que nem um vegetal.
Sim, meu menino, tu não passas de um morto-vivo de apenas quatro anos. Dói-me fazer o que farei, mas dói-me mais, muitíssimo mais te ver assim como estou te vendo agora.
Eu não queria chegar a esse ponto. Aconselhei-me com os médicos deste hospital. Eles mostraram-se covardes, deram-me razão, mas ninguém quis se comprometer. Desconversaram, falaram em avanços da ciência. Dentro de 10, 20 ou 30 anos haverá uma solução para teu caso. Mas ninguém garante que sobreviverás todo esse tempo. O que querem eles? Jogar teu corpo numa redoma repleta de formol, conservar-te como uma múmia, até descobrirem a solução para o teu mal? Ou congelar-te-ão na vã expectativa de que um sábio acene com a fórmula mágica digna de um Prêmio Nobel.
Não! Não! Mil vezes não! Eu não suportarei isso. Prefiro ver tua doce respiração transformar-se num último suspiro. Tua face levemente rosada transformar-se na pálida rigidez da morte. Prefiro velar teu corpo morto do que olhar este ser amorfo sem esperança.
Não se impaciente, meu filho, já estou chegando ao fim desta longa carta. Farei o ritual de assiná-la, colocá-la num envelope, deixando-a na mesa. Depois me levantarei, desligarei cada aparelho ao qual estás ligado. Voltarei a me sentar e tranqüilamente aguardarei o desenrolar dos acontecimentos, ficarei a espera da execração pública. Sei que fazendo isso serei condenado por todos. Cuspido, apedrejado qual Maria Madalena. Tudo bem, serei a prostituta que vendeu não só o corpo, mas a última esperança dos que já não tem mais nada para dar, quanto menos vender, como é teu caso, meu filho.
Não peço perdão a ti, pois sei que me entendes. Não peço perdão a Deus, por que não acredito nele e tens uma parcela de culpa nisso. Mas não te sintas constrangido, nada tem importância agora. Não peço perdão à tua mãe, minha atitude está acima da compreensão dela. Não peço perdão para os homens, nem para a Justiça deles. Não peço perdão a ninguém. Assumo a culpa, fiz por amor a ti. Condenem-me, sei que mereço..
O importante é que entendas que quero te ver em paz. Se houver um céu, tua inocência irá para ele. A mim restará o fogo do Inferno se é que ele também existe. Perdeste as melhores coisas da vida e eu perdi a fé. Só vou reencontrá-la se algum dia, eu puder saber que para onde tu fores, realmente ficarás feliz.

Adeus ou até breve, meu filho

Teu pai, que te ama muito, mesmo que o mundo inteiro diga que não.


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