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cronicas-->O Anjo Teodoro -- 09/09/2010 - 01:01 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Teodoro era uma pessoa boa. Lembro-me de seu olhar sempre firme e calmo, seus cabelos duros e curtos, o sorriso triste no rosto. Era ele que sempre me recebia em meus plantões lá no bairro distante de Embu-Guaçu. Eu tinha de passar sobre o trilho de um trem e de manhã enfrentava uma bruma que se infiltrava em toda a paisagem, pesada, úmida e que gelava meus ossos... Teodoro era o vigia da clínica em que eu trabalhava. De manhã nos saudava sempre; de noite recomendava cuidados mil e sempre me mandava entrar depressa, pelo bairro conhecido como de fama violenta. Ele tinha uma filosofia de vida, não era um malandro qualquer. Era um homem vivido, já de cabelos meio brancos. Nunca soube sua idade, até porque os negros têm a idade indefinida, mesmo quando são mais velhos mesmo. Nunca consegui arrancar isso dele.

A cidade, nunca vi direito. A bruma não deixava, todas as pessoas se tornavam fantasmas corredios. Conhecia os cidadãos dela pela frequência do atendimento. Lá, atendia um trauma, ou outro senhor que chegava com infarto. No outro dia, uma criança com meningite... Tantas pessoas carentes que por lá passaram... Meu grande amigo gostou quando eu comecei a levar minha televisão preto e branco para as noites em que eu ficava lá. Era eu, a enfermeira, a auxiliar de enfermagem e Teodoro. Nos intervalos, quando amainava o ritmo, assistíamos um filme das onze da noite.
Quando chegava uma urgência mesmo, uma remoção necessária, contávamos com a ambulància da prefeitura. Partos por exemplo, ambulància neles. Teodoro tinha uma teoria sobre os partos e sempre que eu chegava numa lua cheia ele entrava na sala de atendimento e olhava para mim com a cara mais séria do mundo e dizia:

--É hoje que vosmece traz uma alma para esse mundo. É sim senhor.

--Meu amigo: Afasta de mim esse cálice.
Ele me mostrou a arma que levava ao cinto. Um colt 45 legítimo, de filme. Arma que ele ganhara numa jogatina anos atrás de uns americanos colecionadores de armas. Ele ganhara na moral, como ele dizia. Ele tinha boa pontaria, era certeiro e letal. Caçara muita onça no mato pra riba de cima do mataréu, era bem o que ele falava. Nunca o vi bravo. Dizem que os piores soldados são os mais calmos, capazes de estripar dez malucos por noitada perdida. Peguei aquilo na mão e devolvi, cónscio da iniquidade que é possuir um tão perto de mim. Quero distància disto.

A noite de lua cheia chegou e desta vez Teodoro acertou na previsão. Chega na sala de emergência uma moça loura, cabelos encaracolados, sem família e sem marido. Cadê a ambulància?? Servindo de palanque ao prefeito da cidade!! Olhei para cima e disse:

--Valha-me, guia-me nesta empreitada; somos eu e você agora!!!

A moça tinha dezesseis anos e seu companheiro sumira no mundo. Lembrei de todas as artimanhas e manobras que deveria fazer, caso algo desse errado. Para minha sorte, um desses espíritos protetores deve ter estado passando por ali e viu minha situação. Eu, que nunca enfrentara sozinho a situação ouvi o primeiro choro de um lindo bebê de seus três quilos e meio. Não tem como não chorar, seja você o mais durão do mundo, seja você um tolo. Nada se compara ao surgimento da vida!

--É, doutor. Eu disse, dia vai, dia vem... vosmecê já fez sua parte.
--Veja como são as coisas, Teodoro. A gente nasce, cresce e nunca pára de aprender!
--Ah, ié. Isso ié. Sou velho e já vi muita coisa aqui, causos que se contasse pro senhor, ficava de cabelo em pé.
--Mula-sem-cabeça?
--Disso ainda não vi não...

Caía na gargalhada, expondo as gengivas escuras e os dentes grandes. Usava sempre conjuntos de roupa com calça e suspensório. Tinha sempre uma espécie de casaco à mão, fizesse chuva ou torrasse um sol que por aquelas bandas é raro-perto da serra, é muito nebuloso o clima.
Lá por um ano se passou e lá estava eu atendendo minhas velhas fichas, as senhorinhas gordas de pressão alta, os velhinhos coitados estropiados e danados, os marrentos bêbados e suas feridas abertas... Teodoro, malandramente, chegou no consultório e pediu para falar.

--Doutorzinho, doutorzinho...
--Que foi Teodoro?
--Tenho uma moça lá fora. Nossa que ela é linda feito um anjo! Tem os cabelos da cor de ouro, encaracolados, parece uma deusa, patrão. Quem é ela?
--Sei lá hein!!!
--Pois é; ela disse que trouxe seu filho!
--Hein???

Entrou a encarnação da beleza; talvez a própria Afrodite. Vinha acompanhada de seu filho, um pequeno Apolo... Loirinho de cabelos encaracolados e olhos azuis que nem os dela! Reconheci a moça de um ano atrás! Ela me deu um beijo no rosto e pós o menino em meus braços. Não tem como não se emocionar... Contou-me que morava com os pais agora que se tornara mãe solteira. Contou-me de seus trabalhos, de sua vida e de como amadurecera desde a vinda de seu pequeno. Teodoro de soslaio olhava, de esguelha dava piscadelas... Trocamos telefones, ela ficou de ligar para mim, mas nunca o fez... Medo? Vergonha? A bruma daquele amanhecer levou bem mais que só mais um dia de trabalho. Levou todo um mundo embora, toda uma época.

Sei que meu filho vingou e virou um espigão: Virou o orgulho da cidade, campeão de lutas em karate... E estudou comprando uma boa casa para sua mãe que casou de verdade, depois ela me disse quando resolveu me telefonar depois de anos de silêncio. Sei que a clínica ainda existe e sei que seu anjo da guarda se foi tentando defender o seu ganha-pão de assaltantes que eram muitos. Não sei onde foi enterrado, nunca mais voltei lá.
Não esqueço nunca mais os trilhos, enevoados, se encontrando nas encostas de uma montanha que somente se insinuava aos olhos dos passantes e de seu clima ventoso, que arrancava arrepios de quem o desafiava abertamente...
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