Apenas para esclarecer um aspecto que pode ter sido mal compreendido no artigo que publiquei há alguns dias, devo dizer que não considero – e nem poderia – razoável que algum escritor, por melhor que seja, arvore-se da pretensão de estar acima, ao lado, adiante ou abaixo de seu tempo. A minha arraigada formação marxista, que estou muito velho para renegar, é absolutamente incompatível com essa hipótese.
É de todo evidente, para citar dois significativos exemplos, que Camões e Gil Vicente resultaram de condicionantes históricas muito bem delineadas. Ambos expressaram a ascensão da burguesia, a imposição dos valores morais da nova classe dominante e as contradições (ou tensões) sociais daí resultantes. Seria absurdo pensar o contrário, porque se poderia supor, seguindo semelhante raciocínio, que as tartarugas sobem espontaneamente a mais alta das árvores. Entretanto, mesmo que assim o seja, não é por terem os autores citados sido o resultado imediato e inegável das transformações sociais ocorridas no Portugal renascentista que se pode ler um ou outro com menos deleite, daí a grandeza da literatura que deixaram.
Bem ou mal, desejando ou não esse resultado, os escritores – os que perduram e os que se evaporam – servem de riquíssima fonte de estudo para os historiadores. Nenhum deles, em síntese e ao cabo, do mais arrojado ao mais Paulo Coelho, deixa de ser um retrato de sua época e um perfil de seu tempo. O que distingue os bons dos maus escritores não é que aqueles escrevem cartas a navegantes espaciais e estes mantêm sempre o pé no chão; o que os diferencia, e que se esgote aí o assunto, é que o retrato talhado pelos segundos amarela em pouco tempo, enquanto as obras dos escritores – e outros artistas – que realmente merecem esse nome causam a cada dia mais espanto.
|