Usina de Letras
Usina de Letras
15 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62282 )

Cartas ( 21334)

Contos (13267)

Cordel (10451)

Cronicas (22540)

Discursos (3239)

Ensaios - (10386)

Erótico (13574)

Frases (50671)

Humor (20040)

Infantil (5457)

Infanto Juvenil (4780)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140818)

Redação (3309)

Roteiro de Filme ou Novela (1064)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1961)

Textos Religiosos/Sermões (6208)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->O emprego depois dos 40 -- 09/08/2001 - 15:13 (Luís Augusto Marcelino) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A maior parte do dinheiro das economias já tinha acabado quando recebi o telefonema milagroso. Já tinha perdido as contas de quantos currículos tinha enviado até aquele dia. Tanto é que, quando recebi o recado da Rosa - minha esposa – custei a decifrar qual das redes de farmácia havia me contatado e marcado uma entrevista para o dia seguinte. Enfim, um sorriso brotou em meu rosto depois de muitos meses.

- Nem acredito, querida!
- Eu falei que, mais cedo ou mais tarde, te chamariam. Vê se dorme cedo hoje, amor.

Bem que eu gostaria mesmo de ir para cama e pegar no sono antes da meia-noite para acordar com uma cara decente na manhã seguinte. Mas sabia que a noite seria longa, quase infinita. Seguindo as dicas de uma revista especializada, reformatei todo o meu currículo: nada de número de documentos, objetividade, destaque para as realizações concretas, enumeração dos cursos, palestras e conferências. Tentei também parecer “plugado”. Tinha a meu favor uma graduação na PUC de São Paulo, e uma pós na GV. Arranhava razoavelmente bem o Inglês e me virava em Espanhol. “La garantia soy jo” – brincava. Separei meu terno azul-marinho e os sapatos pretos, de bico quadrado. Fiquei indeciso quanto a gravata. A que eu mais gostava era uma de fundo vinho e listras transversais azuis. Mas o João Pedro, meu filho, disse-me que o que estava na moda eram as gravatas lisas. Acabei optando por uma azul-escuro. Rosa pediu para a empregada passar duas camisas. Também pensei em usar abotoaduras e prendedor de gravata. Mais uma vez o Joãosinho desaconselhou. Está em desuso, pai – disse maliciosamente. Só lá pelas onze da noite resolvi ir para a cama. Tomei um copo de leite gelado. Belisquei uma torta de atum e escovei os dentes amarelados. A noite e a madrugada, como havia previsto, foram passadas em claro, tamanha era ansiedade. Apenas por volta das 3 da manhã foi que eu peguei no sono. Mesmo assim, acordei algumas vezes.

Na manhã seguinte cheguei ao prédio da Drogalinda quarenta minutos antes da hora marcada. Foi tempo suficiente para entrar numa padaria e tomar um café. Lembrei da época em que fumava. Ainda sentia saudades do velho vício. Mas seria um retrocesso muito grande voltar a colocar um cigarro na boca. A lembrança se desfez. Só então percebi que a região da Paulista ainda não havia perdido sua magia. A agitação e movimentação de sempre. Gente elegante circulando para cima e para baixo, apressadamente. Senti muita falta daquela correria. Os meses de aposentadoria precoce e involuntária foram de um marasmo infernal. A única coisa que me distraiu foi navegar pela Internet. Que mundo imenso, maravilhoso e minúsculo ao mesmo tempo! Tão insignificante que cabia numa tela de 14 polegadas – filosofava. Queria que a Internet existisse quando eu era jovem. Deus sabe meu sofrimento para conhecer o mundo, há 30 anos. Tardes na biblioteca da Lapa e noites explorando a Britanica, de letras miúdas. Agora tudo ali, a um palmo da classe média, e os malditos jovens de hoje pensando em se embebedar nos botecos da Vila Madalena... Enfim, navegar, flutuar, sonhar através da Rede Mundial era minha distração. O resto era testemunhar o olhar piedoso e compreensivo da Rosa e enviar currículos para Deus e o mundo. O tempo foi passando moroso, sem piedade da minha aflição. Olhava para o relógio com freqüência e tentava me acalmar entre uma lembrança e outra. Meu último emprego, onde permaneci por 7 anos, foi o ápice do meu sucesso profissional. A Textillus chegou a faturar mais de 100 milhões por ano, e minhas comissões eram tão generosas que neste curto tempo construí todo o meu patrimônio. Patrimônio que, aliás, ainda tinha conservado. Mas que já estava à beira do abismo, pelo menos parcialmente. Os negócios próprios que tentei não funcionaram como tinha imaginado. A máxima de que ter um sócio é perder um amigo – agora eu sei – é uma das verdades mais absolutas do mundo. Perdi muito dinheiro. Além disso, a baixa estima foi tomando conta de mim e, não fosse a força da Rosa e do João, certamente eu teria perdido as rédeas da vida. Contudo, aquela seria minha chance. Por mais que não tivesse nada garantido, sentia que aquela entrevista era resultado de uma avaliação adequada do meu histórico profissional. Se o currículo tinha sido selecionado era porque tinha algum valor.

Às quinze para as nove estava acomodado num sofá em frente a uma saleta que, presumi, seria o palco da minha apresentação. Uma jovem chegou carregando uma pasta abarrotada de papéis. Mau presságio – imaginei. Se tudo aquilo fossem fichas de concorrentes, minhas chances diminuiriam. Soube depois que não eram.

- Muito prazer, sou a Vera.
- O prazer é todo meu.

Convidou-me para entrar na sala. Dei-lhe passagem, como um bom cavalheiro. Vera usava um óculos de armação moderna e tinha um sorriso aberto, aparentemente sincero. Foi logo explicando que, além de mim, havia dois outros candidatos que concorriam à vaga. Falou que o processo era composto da avaliação do currículo, daquela entrevista e, por último, um almoço com o futuro chefe – além da batelada de testes.

- Conte-me porque saiu da... deixe-me ver... Ah, sim! Textillus.
- Bem... na realidade a concorrência asiática esfacelou nosso ramo. Somente as líderes do mercado sobreviveram. Ainda assim, a muito custo.
- Hummm... O senhor era Gerente Comercial...
- Isso mesmo!
- Tenho que deixar claro, Sr. José Antônio, que o cargo que temos a lhe propor é de Gerente de Loja.

O golpe não podia ter sido mais implacável. Em questão de segundos visualizei-me numa grande farmácia, resolvendo problemas complexos como roubo de shampoo. Ou então discutindo a diferença do caixa, ao final do expediente. Por outro lado, não tive coragem suficiente para pedir licença para a jovem entrevistadora, alegando que ela tinha se equivocado imensamente. Senti-me humilhado, mas resolvi prosseguir.

- Em qual loja seria, Vera?
- No Shopping Ibirapuera.
- Ah, sim. Deve ser uma das maiores da Rede, não?
- Com certeza.
- Mas, veja bem... Sem querer desmerecer a oferta que estão me fazendo, não era bem esta a minha expectativa com relação à vaga. Creio que analisou meu histórico e, como deve ter notado, o meu nível gerencial era bem superior à condição que estão me oferecendo.
- Certamente, Sr. José. Mas, infelizmente, é a vaga de que dispomos. O senhor não se interessa por ela?

Ela não podia ter sido mais direta e cruel. Imaginei o rosto suave da Rosa tentando disfarçar uma motivação por eu não ter conseguido o emprego. Cheguei a ouvir a voz grave do João Pedro, com seu tom brincalhão, afirmar que aquela “farmaciazinha” não era digna do meu potencial. Mas, no fundo, isso era tudo o que eu não queria levar para a minha casa.

- Nada disso, Vera. Só estou fazendo uma colocação para que vocês tenham a certeza de que sou um profissional gabaritado.
- Sabemos disso, Sr. José Antônio. Bem, acho que devemos então prosseguir. Qual a sua experiência em relacionamento com o público consumidor?

Ficamos uma hora e meia trocando informações. Senti um aperto no coração. O salário não era atrativo como imaginei, e as condições de trabalho estavam distantes daquilo que sonhei durante a madrugada anterior. Notei uma certa desmotivação da moça, desde que citei minha qualificação. A certa altura, porém, ela começou a se entusiasmar com minhas idéias e colocações. Entretanto, até porque não tinha alçada para tal, permaneceu inflexível quanto a reconhecer que minha experiência e resultados comprovados eram suficientes para que recomendasse à empresa uma colocação mais próxima das minhas potencialidades. Retomei o assunto:

- Será que não há na empresa um cargo mais condizente com as qualificações que possuo?

Ela hesitou. Mordeu levemente a ponta da caneta metálica. Seu sorriso, antes aparente, mostrou-se tímido e involuntário. Olhou rapidamente para a janela. Percebi o movimento discreto de sua garganta – revelando que tinha engolido a seco. Quase tocou as minhas mãos longas. Percebi que queria me conformar. Mas resistiu.

- Sabe o que é, Sr. José? Tenho de ser sincera com você... Depois dos 40 anos, a coisa fica mais difícil... Não é nada contra o senhor, mas a empresa tem de seguir a tendência do mercado...
Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui