É prática de bons fotógrafos ajustar as lentes para registrar com grande nitidez a figura que desejam realçar, aceitando que seu entorno, a distàncias diferentes, fique, como se costuma dizer, fora de foco.
O Brasil de hoje está se parecendo a um retrato fora de foco. A figura central se destaca, nítida, sobre o restante impreciso, por obra da própria, que a encomendou, e de quem fez a fotografia.
A projeção é merecida em certa medida, pois em toda a paisagem retratada há muito de seu trabalho, como atestam aplausos internacionais e pesquisas nacionais.
Lástima é que não seja uma foto instantànea, tomada de surpresa. Que tenha cores de vaidades vistas "nunca antes neste país". Ou sombras indesejáveis de alegado desconhecimento de episódios escandalosos, como o do "mensalão". Que, desprezando a modéstia e a humildade, alimente o culto à personalidade, autorizando filme biográfico do "filho do Brasil", que pretende seja instrumento poderoso para multiplicar sua imagem simpática por todo o país, em proveito da candidata a sucedê-lo.
No retrato, há evidências de que a embriaguês do poder sobe à cabeça, misturando decisões acertadas com outras nem tanto e declarações infelizes. A campanha eleitoral é deflagrada ao arrepio da lei. As irregularidades em obras federais são contestadas, sob o argumento de que as paralisam e atrasam. Em decorrência, prepara-se alteração na legislação, restringindo atribuições do Tribunal de Contas. Em paralelo, o "apagão" arrasador em quase todo o território e o indesculpável acidente na construção de viaduto do Rodoanel paulista comprovam a necessidade de fiscalização por aquele órgão. Quando apontou inconsistências na administração da Petrobrás, foram abafadas por ação política que imobilizou a CPI instalada para averiguá-las.
Mais preocupante é a visão do papel da imprensa, que torna pública. "Só informar... Dar as notícias, não fiscalizar... Só publicar o que é falado, não tentar interpretar". Parece influenciado pelo aparente sucesso de outros governantes vizinhos em garrotear a liberdade de expressão. E, segundo consta, de seu próprio, em calar jornalistas independentes altamente conceituados.
Culto à personalidade, eximição de responsabilidade, rejeição à fiscalização, cerceamento da livre expressão são sintomas de tendência crescente de autoritarismo, incompatível com a vida democrática. Exemplos históricos comprovam que assim se firmaram os totalitarismos de direita e de esquerda que infelicitaram o mundo civilizado.
Acrescendo mais sombras ao quadro, assistimos a uma oposição que se debilita por falta de definição. Candidatos potenciais à presidência se digladiam na penumbra de desencontros sigilosos, deixando fugir oportunidades de apoio enquanto discutem se haverá ou não, e quando, consulta à s bases partidárias filiadas. Para quem acompanha à distància, a impressão que fica é que o espírito público foi soterrado por uma avalancha de interesses pessoais.
E mais um retoque está por ser adicionado ao retrato. Será exigida muita competência artística no uso do "photoshop" (instrumento da informática que enfeita ou deforma fotografias) para representar o efeito da decisão sobre o destino do italiano condenado à extradição pela suprema corte de justiça. Está nas mãos do primeiro mandatário fazer cumprir a condenação ou ignora-la. Ao contrário de muitas outras, quando foi possível recorrer a subterfúgios para ignorar acontecimentos ou transferir responsabilidades, vive um momento de decisão solitária. Se prestigia seu ministro que concedeu o refúgio político, contrariando pareceres de órgãos subordinados, por coerência com seu alinhamento de extrema esquerda, entra em conflito com a cúpula do poder judiciário, ignora tratado de extradição firmado entre Estados e corre risco de processo em corte internacional. Se retrocede da postura anterior, quando apoiou a concessão, fere gravemente partidários socialistas extremados, será acusado com veemência de ignorar direitos humanos e perde apoios que lhe farão falta na próxima campanha eleitoral.
O retoque estará mais nas mãos do retratado que nas dos retratistas, com sua incontestável habilidade política e a sensibilidade para avaliar reações do grande público.