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Contos-->ERRO MÉDICO -- 25/07/2001 - 00:44 (Lílian Maial) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
ERRO MÉDICO


Foi acordado de forma brusca, mal conciliara o sono. Por instantes não sabia bem onde estava, mas aquele cubículo abafado, com um colchão de plástico azul, sem lençol de forrar, nem travesseiro, logo o fizeram lembrar-se do terrível plantão que estava acontecendo. Há tempos não havia paz. Nem podia recordar da última vez que dormira mais de 2 horas sem alguma interrupção.

Não paravam de chegar vítimas e algozes, com toda sorte (coisa irônica) de ferimentos e moléstias.
Interessante é que nunca que se acostuma à dor.
Levanta-se com o desejo de que não seja nada, talvez só uma prescrição de calmante... foi-se o tempo...

É, sem dúvida, mais um esfaqueado de alguma esquina, ou um baleado de não se sabe onde. Pior é quando eles vêm aos montes, em tragédias de maiores proporções.

- Onde está o acadêmico, pôxa! O cara só atrapalha o dia todo e à noite some! Ninguém deveria ficar doente à noite...

Seus pensamentos vagavam em cascata, oscilando entre o mundo dos sonhos e a dura realidade.
Hummm... barriga suspeita, dolorosa, distendida... aí tem coisa.

- Há quanto tempo sem eliminar gases?
- Gases, doutor?
- Sim, gases, senhora... punzinho...

A terna senhora, que não esconde a face da dor e da idade, lança-lhe um sorriso ruborizado e abaixa os olhos castos, informando não lembrar. Em sua cabecinha leiga ainda soa a frase: - e quem vai prestar atenção a que horas solta os ventos?

Sobe a paciente para o Centro Cirúrgico, infecção da vesícula recheada de pedrinhas. Velha rotina de escovação das mãos, uma piadinha com o anestesista, para acordar os ânimos da madrugada.

- Onde está a instrumentadora? Quê? Não veio? E quem vai passar e contar o material? Ah, sei... aquela estagiária, a que nem sabe a diferença entre uma pinça e uma tesoura. Sei... Bem, não dá pra parar tudo agora, a paciente está crítica, no melhor momento para o sucesso cirúrgico.

Nisso, lembrou dos ensinamentos do seu chefe há 20 anos – nossa, como o tempo passou – ele já aposentado, cuidando dos netos, e nosso doutor, seu pupilo, agora chefe de serviço, ainda se valendo desses 20 anos de bons ensinamentos.

O sono foi afastado, o diagnóstico estava, como sempre, correto, baseado na técnica apurada e numa teoria dos primeiros lugares em todos os concursos e das inúmeras noites mergulhado em livros e artigos de atualização.
Agora, pouco mais de 40 anos, a visão já cansada, óculos que embaçam com a máscara cirúrgica – podia operar de olhos vendados.

Lá se foi a vilã – uma vesícula biliar cheia de pedras e pus – uma massa única de sangue, pus, tecido friável, pedras e gaze.
Agora estava tudo bem, tudo checado, nenhuma intercorrência, cavidade limpa, apenas com o sangue costumeiro. Pronto. Mais uma barriga fechada, vida salva, dor resolvida. Família satisfeita, sorridentes, cumprimentando o herói cansado e sem lençol.

Bateu uma fome, mas o refeitório já fechou doutor – você sabe que só fica aberto até meia-noite, comesse antes!

Acorda a paciente, beija as mãos abençoadas que lhe cuidaram do corpo e pisca para aqueles olhos que lhe afagaram a alma. Está feliz. Estão ambos felizes. Mais felizes ainda dois dias depois, quando a doce senhora recebe alta do hospital, andando e muito agradecida.
Foi mais um plantão e ela nem soube que naquela madrugada operara mais três. E no dia seguinte ainda atendera na enfermaria e depois no ambulatório.

Pausa para um banho – ah, só em casa, não dá tempo!
Casa. Ele sorri ao lembrar daquele cheiro de paz e de conforto. Sorri ao ver em seus pensamentos a bela esposa e os filhos queridos. Queria tanto abraçá-los agora... O que estarão fazendo? Já tinha três dias que não os via. Queria ir para casa, tomar banho, descansar, depois fazer amor e dormir nos braços perfumados dela.

A sirene de outra ambulância o arranca dos braços morenos. Mas não era mais ele de plantão. Tanto fazia... estava ali mesmo... aproveitou para percorrer as enfermarias, trocar alguns sorrisos e curativos, escutar alguns “causos” e lamentos, agradecer alguns elogios e olhares ternos, retribuir tanto afeto.

Finalmente em casa! Onde foram todos? Ah, é verdade, trabalho, escola...
Uma carta sobre a mesa chamou-lhe a atenção, algo como uma intimação. Já estava a caminho do banho, quando a curiosidade e uma estranha agonia intuitiva o trouxeram de volta à mesa de jantar.
Era mesmo uma intimação seca e lacônica – erro médico!

Um frio percorreu-lhe a espinha, um desconforto... Tanto cansaço, tanta privação...

Erro médico? Erro? Quando houve erro? Quando ele aceitou o emprego, foi aí? Ah, mas não é fácil abrir mão de emprego público quando se tem bocas a alimentar. Sim, hospital precário, ele sabia, falta material, instrumentadora, auxiliar, fios adequados, mas muito se faz de bom, muitas vidas são salvas. Falta lençol, falta algodão, falta comida, mas sobra carinho e dedicação.

E vem um papel qualquer falar de erro médico? E os acertos médicos? E as renúncias? E o estudo, estágios, congressos, ausências, falta de lazer, de boa alimentação, remuneração condizente, e as cenas roubadas dos filhos crescendo? E as faltas às festinhas, os Natais ali, ao lado dos pacientes, enquanto a família lamenta sua ausência... os inúmeros plantões de Ano Novo, onde se brinda em copo de plástico com um pouco de Coca-cola e uma dentada num sanduíche esquecido no Centro Cirúrgico.

Erro médico!

E quem julga isso? Um advogado, que nem faz idéia do que seja uma barriga infectada, sangrando, onde mal se identifica os pedaços dos órgãos em meio ao sangue e pus, por incisões pequenas, cujas mãos do cirurgião passam apertadas, para deixar uma pequena cicatriz nas senhoras vaidosas.

Nisso o nó da garganta rompe num choro infantil, ao ler o nome do autor da ação (ele sabia o nome de todos os pacientes): era uma senhora, dessas sorridentes e agradecidas, de olhar maternal e cúmplice, cuja vida havia salvo numa dessas madrugadas sem lençol e sem instrumentadora, onde uma pequena gaze escondeu uma brilhante carreira de dedicação, esforços e privações.

Não suportava sentir-se assim. Pena de si mesmo era uma situação desconfortável e arrependimento não era a melhor palavra. Como se arrepender de escolher servir e aliviar? Não, isso não estava acontecendo, deveria ser equívoco, erro de pessoa, isso sim!

Onde ficavam todas aquelas noites em dormir, todas as festas que perdeu, todos os dentinhos que não viu romper, todos os gozos que nunca experimentou?
Onde o conforto, a fortuna, o retorno?

Ah, esse cansaço...

O escudo começava a cair, o elmo a pesar, a lança a envergar. O guerreiro fora atingido pelas costas. Covardemente alvejado, no coração, no altruísmo, nos sacrifícios, na fé nos homens e na ciência, talvez em Deus.

Entendeu que agora seria uma outra batalha, em outro campo, território inimigo, desconhecido, desprotegido, apenas armado de seu caráter, seu passado irretocável, seu amor incondicional e, talvez, de alguns sorrisos e olhares agradecidos, que agora perdiam parcialmente o brilho, ofuscados pelo cintilar do ouro, das moedas, da ambição e do desamor.

Foi para o banho tentar lavar a angústia e a profunda solidão que sentia. Lavou o rosto com sabonete e lágrimas, enxugou a dor do coração e já ia deitar, esperando o abraço carinhoso dos filhos e o conforto doce e perfumado da esposa, quando o celular o avisava que deveria cobrir a falta de um colega, que acabara de sofrer um infarto e estava internado na Unidade Coronária do hospital, brigando para continuar vivo.
Levantou-se, vestiu a velha roupa branca e foi, sem nem olhar para o papel traiçoeiro.

Erro médico... o colega cometeu esse erro... erro médico...

Não viver mais a vida havia sido certamente seu maior erro médico.


Lílian Maial
Rio, 24/07/01.
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