O debate democrático é elemento constitutivo do desenvolvimento. Um governo realmente democrático não só ganha eleição, mas tem que enfrentar a crítica pública
Manfredo Araújo de Oliveira é professor da Universidade Federal do Ceará (UFC) e filósofo
Publicado no jornal O POVO, dia 03 de maio de 2003
Há na atual conjuntura brasileira um elemento muito promissor: não só cresce o debate entre fiscalistas, mercantilistas, desenvolvimentistas, etc, a respeito do que se deve fazer para mudar o país, mas amplia-se o horizonte da discussão, na medida em que cada vez mais emerge a pergunta a respeito dos fins de toda vida social, ou seja, do projeto de vida humana que deve perpassar e fundamentar o debate sobre os meios para realizá-lo. Neste contexto, as reflexões de Amartya Sen nos trazem uma grande contribuição por repensar um conceito básico no projeto moderno de sociedade: o conceito de desenvolvimento. Que é afinal desenvolvimento? Que significa tomá-lo como ideal das sociedades humanas? O fracasso ético das formas de sociedade que a modernidade produziu nos obriga a repensar as bases de uma sociedade verdadeiramente humana no contexto das condições criadas pelas próprias sociedades modernas.
A tese básica de Sen é provocadora: desenvolvimento é um processo de expansão de liberdades reais, de tal modo que a liberdade é o fim primordial (o papel constitutivo) e ao mesmo tempo o meio principal (o papel instrumental) do desenvolvimento. A liberdade enquanto fim do desenvolvimento tem a ver com o que ele denomina a liberdade substantiva, que inclui capacidades elementares, como por exemplo ter condições de evitar privações como a fome, a subnutrição, a morbidez evitável e a morte prematura, bem como as liberdades associadas a saber ler e a fazer cálculos aritméticos, ter participação política e liberdade de expressão, etc . (Desenvolvimento como Liberdade, pg. 52). Neste sentido, o desenvolvimento só é verdadeiramente humano quando ele significa a expansão destas e outras liberdades básicas, enquanto processo de enriquecimento da vida humana, e conseqüentemente não pode ser reduzido a crescimento do Produto Nacional Bruto (PNB) e da industrialização - e muito menos tê-los como fim último. Numa palavra, uma concepção adequada do desenvolvimento tem que ir muito além da acumulação de riqueza e do crescimento do PNB, que não podem ser considerados fins em si mesmos, mesmo que devamos reconhecer a importância do crescimento econômico.
Para Sen, a liberdade envolve tanto processos que possibilitam a liberdade de ações e decisões como as oportunidades reais que as pessoas possuem em suas situações pessoais e sociais. Assim, as privações da liberdade podem surgir em ambos os níveis, isto é, tanto na violação dos direitos políticos e civis como na ausência de oportunidades elementares para uma vida humana digna, como no caso da fome e da miséria. Neste horizonte normativo, as liberdades substantivas são essenciais e o êxito ou o fracasso dos projetos políticos devem ser avaliados segundo as oportunidades abertas aos membros de uma sociedade de desfrutarem suas liberdades substantivas.
A liberdade é então critério para a avaliação do êxito ou do fracasso de nossos sistemas sociais. Neste contexto, vale a pena nos alegrarmos com a liberdade política que temos hoje no Brasil, que se traduz na discussão atual, precisamente porque ela dá aos cidadãos a oportunidade de debate sobre valores na escolha das prioridades e de participar na seleção destes valores. É lamentável a atitude ainda muito comum entre nós de considerar o debate democrático na base das categorias de fidelidade ou traição a projetos considerados intocáveis. É claro que muitos se reportam à luta de 40 anos de tantas pessoas que às vezes deram sua própria vida e que desembocou na eleição do atual governo. Isto, contudo, não justifica por si mesmo a aceitação acrítica de qualquer coisa que dele provenha. O debate democrático é elemento constitutivo do desenvolvimento. Um governo realmente democrático não só ganha eleição, mas tem que enfrentar a crítica pública.