Retiro do passado uma noite especial,
E, comovida, sofro novamente,
Por remoer a minha impotência,
Em não conseguir conter a dor do mundo.
Quero esquecer esse pesadelo – não posso,
Apagar dos olhos a cena real,
Da criança esquálida,
Desfigurada e pálida,
Jogada a um canto do estacionamento,
Como inútil trapo,
Cabeça curvada nas pernas,
Ao lado, a latinha de merla,
A mochila vazia,
A barriga vazia,
A cabeça vazia.
O corpo entorpecido pela droga,
Já não sofre mais
Porque não mais existe
Deixando para trás a infância
Para cair nos braços da morte,
Lenta e corrosiva,
Ilusão do esquecimento momentâneo
Da triste condição de verme,
Pária de uma sociedade indiferente
Que idolatra o prazer ao consumismo
E não protege da humilhação
Aqueles que nada têm.
E eu, filha dessa mesma sociedade,
Não soube o que fazer
Ante a destruição de uma criança,
Desistente de um mundo
Que não a quis acolher.
Expectadora inerte, apenas reconheci
Que a minha vida prosseguiu
Agora modificada pela compaixão
Por todos aqueles que não acreditam
Que para eles exista algum amanhã,
Ou um motivo especial para viver.
Gloria Callafange
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