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cronicas-->O Gato -- 15/12/2008 - 14:38 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O gato olhava fixamente seu dono saboreando um belo filé, desses que vez em quando ele procurava nas latas de lixo do lugarejo. Ele sabia da consistência da carne e se lambia todo só de imaginar o que poderia receber de seu dono já entrado em anos, solitário morador daquelas paragens onde ele o achara um dia, por acaso, andando na rua do vilarejo e o adotara assim como se adota um lugar qualquer para ficar ou morar; era seu costume. O bom homem tinha lá suas manias, mas era sozinho, o que era bom para ele porque sempre havia a perspectiva de sobrar mais comida e guloseimas que ele pedia das maneiras mais perniciosas que um gato pode fazer com seu dono. Já tivera outros, um dos quais tinha vários filhos que puxavam sua pelagem e ele odiava aquilo tudo com um esmero e um requinte tais que ele em troca fazia surgirem várias meias desfiadas e calças furadas rendendo semanas de diálogos culposos e caras amarradas até o dia em que ele resolvera sumir do mapa e deixar os diabinhos brigando entre si.

--Jones!

Ele olhava o seu dono, a barba branca meio suja de molho da carne que pendia em sua mão direita agora. Era já hora do almoço e ele devia receber a parte que lhe cabia.

--Aqui, vagabundo!

Uma ova, ele vivia caçando ratos (era o que ele pensava que fossem) na velha casa que era a dele agora, como poderia deixar de ser no minuto seguinte; era sua maneira de ser, gatos são livres por natureza.Assim devia ser sempre, desde tempos imemoriais. Então longe de ser um vagabundo, ele lhe era útil, daí... O pulo dele surpreendia seu dono pela agilidade absurda e pela voracidade com que ele arrancava o naco de carne de sua mão.

--Com fome hein, bichano? Jones, Jones...

Olhando de cima da casa, se via a extensão do terreno que fora de sua família e ele recuperara quando voltara da longa viagem que fizera para esquecer as mágoas que a vida lhe impusera. Muito longe de ser infeliz, se propusera uma vida solitária por achar que pouco poderia acrescentar a uma família sendo tão individualista. Tampouco queria constituir uma família novamente, pois já tivera uma e o que experimentara antes de se desfazer de tudo o que tinha para comprar a casa em que vivia agora fora desagradável. Optara pela solidão porque se sabia insuportável, sabia que não aguentaria mais pessoas lhe observando, cobrando ou sequer falando com ele: Preferia o silêncio de seu gato que agora se refestelava com o maravilhoso pedaço de carne que ele lhe oferecera. Ele também se incomodava com ele, quando ele o chamava assim de Jones, às vezes o bicho se eriçava e sumia para depois, nas horas mais impróprias, reaparecer com as duas faíscas verdes iluminando seu caminho de reflexões. Na hora do cachimbo, por exemplo, quando ele se servia do tabaco, moendo-o dentro do cachimbo e o acendendo, o ruído da chegada de Jones sempre vinha antes da primeira baforada que enchia a sala de bom cheiro de tabaco perfumado. Óbvio que Jones estava escondido em algum canto, porém era sempre surpreendente como ele costumava aparecer e sumir como por mágica.

--Jones, Jones! Onde foi se meter de novo, hein? Deixe-me ver esta pata.

O exame era minucioso e ele costumava miar mais alto quando seu dono atingia o ponto nevrálgico ou tocava a ferida de maneira brusca; era um aviso que dava sempre que podia e de vez em quando erguia suas patas em franca hostilidade quando ele exagerava em seus cuidados.

--Gato malvado! Estou tentando te ajudar.

Falava assim enquanto lia a correspondência que chegara à tarde, através do carteiro que vinha de bicicleta. Aquela área onde morava era de mais difícil acesso, o terreno ficava do outro lado da montanha, mais protegido dos ventos que batiam na região. A estrada era mais acidentada e somente de bicicleta se poderia margear a pequena estradinha que vinha para este lado da montanha. No inverno as coisas pioravam, de modo que ele havia alugado uma pequena casinha ao pé do morro que costumava encher de mantimentos para os meses mais frios para depois não precisar descer ao vilarejo desnecessariamente. O pacote de cartas e correspondências que levava seu nome não era muito grande e poderia trazer importantes informações que ele pretendia averiguar agora.

--Vamos ver o que a vida ainda reserva para este seu velho companheiro.

Se Jones pudesse ler ele o ajudaria, porque o velho tinha lá seus achaques. Dormia no meio da leitura e mais de uma vez, ele o vira sobre as cartas, roncando desmesuradamente. Só acordava com o seu ronronar perto de sua orelha. Quando o fazia, era das raras vezes que o via sorrir, para logo depois pegar ávido as cartas e documentos e ler sem parar por horas. O que ele achava que servia ele guardava na gaveta de uma estante de sua sala. O que descartava alimentava a fogueira que acendia na lareira, quase sempre à mesma hora, quando a casa ficava aquecida, morna e agradável. Jones adormecia vendo seu dono ocupado em ler as cartas e as notícias do jornal que ele comprara no dia anterior. Veja bem, notícias do dia anterior!

A lareira e suas crepitações. O relógio de parede, tiquetaqueando sem parar e mostrando as horas em suave música. Os ruídos das folhagens das árvores batidas pelos ventos ainda fracos- porque a época dos ventos ainda não chegara. O barulho das cartas sendo lidas. O cheiro do fumo adocicado. A suave bruma que se abatia sobre a montanha que se erguia ao fundo, majestosa. Os pássaros chilreando em eterna corrida canora. O olhar do dono às vezes raivoso, outras vezes se turvando. As cartas, as horas. A folhagem habitada de olhos fosforescentes, mágicas sendo urdidas, mistérios sendo engendrados, ele ali no tapete observando entre um cochilo e outro a eterna evolução dos sábios dias. Só ele sabia quantas criaturas impensáveis moravam ali, em perfeita harmonia com ele e seu dono. Se quisessem, poderiam transformar a vida dentro daquela casa em verdadeiro inferno, mas não, as doces criaturas preferiam manter por perto tão saudável companhia, ou, talvez, suportar seria a palavra mais certa, de modo que nem ele saberia nem eles precisariam fazê-lo saber de sua existência. Só Jones.

--Ora, ora, Jones! Vejamos o que isto aqui significa!

Era um homem de poucas palavras. Isto pouco lhe importava, afinal de palavras estava cheio, preferia o diálogo perfeito que fazia com os olhos do homem que se achava seu dono. Ele preferia o cheiro adocicado do tabaco que enchia aquele aposento aos mil odores e milhões de ruídos da casa dos pestinhas que o despelavam. Sentia-se mais seguro!

--Quem é vivo sempre aparece!...

"Caro senhor James, espero que esta lhe chegue gozando de boa saúde. Da última vez que nos falamos parecia estar muito gripado ao telefone. Mas espero que tenha noção de quão importante é a sua presença na reunião de nossa antiga confraria. Como membro da confraria do tabaco, convoco-o a comparecer em dois meses à rua tal, número tal, para saborear os mais finos tabacos de nossas últimas aquisições. Certo de poder contar com sua presença. Ivory."

Isso parece ter mexido com ele, pensa Jones, enquanto seu dono saboreia o cachimbo, estimulado pelas lembranças agradáveis de um convívio que o afastou por algum tempo dali, fazendo-o procurar por alimento em outras paragens e deixando inquietos seus pequenos amigos da floresta.

"-Quando ele volta?"
"-Não sei, isso é com ele!"
"-Mas ele não é seu dono?"
"-Ele pensa que é. Deixem-no pensar deste modo. Prefiro assim."

As horas surgem no relógio de parede e voam misturadas às lembranças do vulto que solta baforadas e vez por outra solta a gargalhada que ele conhece que é própria dos momentos de desprezo.

"Meu caro pai. Devo informar-lhe que preciso conversar consigo a respeito do espólio de meus avós. Muito embora seja um assunto seu velho conhecido, você se nega a tratá-lo com o devido respeito. São propriedades que precisam ser regularizadas, para que o senhor as tenha efetivamente nas mãos, assim podendo dispor delas para o que deseje fazer. Como advogado, devo lembrar de suas responsabilidades. Torna-se difícil eu ir para sua casa, ainda mais quando se aproxima o inverno e as estradas se tornam inacessíveis. Por favor, retorne esta carta o mais breve possível. De seu querido filho, John."

--Responsabilidades, Jones. Ora, eu fui a vida inteira responsável! Trabalhei, recebi a herança. Agora, desejo descansar! Ele me vem falar de responsabilidades! Levou anos para se formar, tudo à minhas custas. A mãe sempre cuidou para que fosse assim, como me irritam!

Era hora de Jones se esconder atrás de algum livro ou por trás da poltrona, porque nesta hora, quando chegavam as cartas de seu filho ou algum queixume familiar, nesta hora não raramente ele ficava com raiva e algo lhe dizia que era melhor manter uma distància segura de forma que ele se ocultava para depois reaparecer, a conselho de seus pequenos amigos da floresta.

"-Ele está mais calmo?"
"-Sim, está."
"-Pode voltar agora. Não o perca de vista!"

O estalido da lareira o deixava alerta, pois algumas fagulhas o atingiam. Acendiam-se as luzes da casa, era seu dono ocupando os espaços lentamente, sintonizando o rádio que ganhara na guerra e que fiel ainda enchia o ar de estática e ruídos distantes. Mais de uma vez viajara para a Nova Zelàndia e dera uma passada por Guiné Bissau, não sem antes ouvir as falas monótonas dos repórteres oficiais das rádios do Oriente Médio e suas ladainhas convocando os fiéis a virarem para Meca na hora determinada. O chiado do rádio se confundia com o da chaleira que já fervia no fogão a lenha. Seu dono, apesar de ser homem, por causa da guerra aprendera a se virar cedo. Daquele fogão saíam coisas que ele reconhecia serem de um talento desconhecido para ele, mas o senhor James sabia fazer como ninguém que conhecera. Geralmente, James não terminava de ler as cartas todas. Deixava um pouco para terminar pela manhã seguinte. As doces criaturas da floresta sabiam disto, sempre bisbilhotando através das cortinas da sala entre as folhagens das árvores copadas que enchiam os jardins da casa antiga. Conforme se aproximava a noite, estalavam as madeiras da casa, como a escada em caracol que levava ao andar de cima, por onde James passava quando ia se preparar para dormir. O silêncio era quebrado pelos sinais flutuantes do rádio que ficava horas ligado, desde o início da noite até próximo da madrugada.

"-Podemos nos fazer ouvir, se você quiser. Será que ele entenderia?"
"-Com certeza, não. Ele é muito racional. Simplesmente não os ouviria como nunca os enxergou nas caminhadas pelo bosque."
"-Que acha da idéia então?"
"-Péssima. Assim está bom."

James lia agora as notícias do dia anterior, porque dia seguinte não haveria outras a não ser as do rádio, que chegavam em ondas como os ruídos de uma festa longínqua batida por ventos distantes. Jones levantava os olhos, via a chaleira fumegando, sentia o aroma do chá de maçã (o seu predileto) e sabia que haveria um pires com leite e biscoitos em breve bem próximos da lareira que aqueceria seus ossos mais uma vez entre tantas que ele se perdia na bruma dos tempos. O leite aquecido esquentava seu estómago, dava-lhe uma sensação de conforto que o fazia se encostar nas pernas do velho dono que se comprazia com os afagos dele em retribuição.

--Jones e James. Uma grande dupla!
"-Uma grande dupla!"
"-Esse animal me dá engulhos."
"-Como assim?"
"-Podíamos ir lá e reivindicar o espaço que nos cabe na vida de James. Jones é um usurpador."
"-Todos os gatos o são. Em seu lugar, deveríamos estar habitando aquela casa."

As pequenas vozes e os luminosos olhos se faziam entender através da mata próxima, um guincho aqui, outro arrulho ali, a noite chegava e os animais que eram espertos se recolhiam porque chegava a hora dos predadores noturnos, sempre invisíveis e mortais. Todos olhando com inveja Jones e seu pequeno castelo maravilhoso, Jones e sua lareira aquecida, Jones e seu pires de leite.

--Jones!

Era a senha a esta hora. Ele teria de representar seu papel na peça do mundo, no simulacro de realidade em que vivia ao sopé da montanha que era um vulcão extinto, bem próxima da floresta de árvores raras que era habitada por uma miríade de seres da mais variada espécie, todos eles com inveja de Jones, embora ainda mantivessem o diálogo. Mas agora Jones seria o predador da casa e mesmo os mais parrudos deles tinham medo das vorazes mandíbulas do gato vagabundo, imune aos ventos e ao frio, forte como um touro devido aos alimentos e cuidados que eles não tinham.

"-Jones!"
"-Que é? Não vêem que estou caçando? O que fazem aqui dentro? Ele pode ver vocês!"
"-Ele é muito racional, Jones. Jamais nos veria aqui como jamais nos vê na floresta ou quando vai pescar os dourados que você adora e que pomos no anzol para que você os coma!"
"-Isto não é verdade. Não sou aproveitador!"
"-Então o que você é, Jones?"
"-Sou um gato!"

Ele se põe a correr para caçar o que lhe cabe e proteger aquela casa velha dos velhos problemas de sempre que os gatos fazem desde tempos imemoriais, quando foram domesticados ou quando resolveram domesticar a humanidade; tudo é uma questão de ponto de vista. Os gatos protegem a Humanidade destes pequenos seres que os invejam também desde tempos imemoriais. O problema é que o tempo passa, as horas se somam na parede do relógio, os ruídos do estalar da casa se somam aos ruídos da caçada e James estranha quando se faz silêncio antes da hora, pois a esta altura Jones deveria estar subindo a escada em caracol para dormir, saciado com a caçada e orgulhoso pela missão cumprida.

--Gatos! Sempre misteriosos. Isto lá é hora de sumir e ir namorar? Jones!

O eco de sua voz se abate sobre as miríades de luzes e olhos que se retraem e, silenciosamente, sobem a escada em caracol atrás dele, sem se fazer perceber.

"-Ele é muito racional."
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