Água e álcool (*)
Em Brasília, há muito não faz tanto calor. O clima superseco, agravado pela falta de chuvas e em decorrência da poluição geral, obriga o indivíduo a tomar quantidade maior de líquido; no caso, o mais acessível: a água.
Na firma em que Francisco trabalha, com 2300 empregados, vinte andares e cinco subsolos, há um sistema eficiente de servir esse líquido precioso. Os de posição mais elevada, que usam copos de vidros (alguns até de cristal) recebem-no na mesa, várias vezes por dia, trazido pela garçonete: moça jovem e dinàmica, que se esforça para agradar aos mandatários. Os mais humildes, que desempenham tarefas simples, usam copo de plástico (que economizam e guardam para uso futuro) e o pegam nos filtros abundantes, que existem no prédio: pelo menos dois em cada ala dos andares.
Os botijões de vinte litros de água mineral da melhor qualidade, muito bem lacrados, precisam ser substituídos constantemente. Depende do público bebedor e também da quantidade (maior ou menor) que utiliza diariamente. Em média de dois em dois dias.
Servidor sexagenário, habituado com o trabalho e com a disciplina da vida, acabou sendo eleito, de maneira espontànea, responsável pela tarefa de limpar, desinfetar, abrir o vasilhame e colocá-lo no suporte. Nesse mister, sempre usa as mesmas ferramentas, a que, carinhosamente, chama: instrumentos de abertura. Guarda-as a chefe da administração, dona Magnólia, pessoa trabalhadora, prestativa e que tem sob sua responsabilidade atender a todas as solicitações que lhe chegam, o que faz com gosto e eficiência.
Sempre, antes de trocar a água, Francisco tem o cuidado de examinar o filtro. Quando é necessário, lava-o com o material próprio a fim de que possa cumprir bem o seu papel: filtrar impurezas da água, que apesar de mineral, pode trazer alguma sujeira. Deixa o receptáculo asseado e em condições de atender aos mais de cem empregados que há no andar.
Para abrir o receptáculo, precisa dos instrumentos que solicita à chefe, que os repassa imediatamente. É pouca coisa: álcool, algodão e faca. Outro dia, precisou deles e pediu à armazenadora: a chefe da administração. Com gesto sereno e costumeiro falou-lhe:
-- Preciso dos instrumentos.
Cometeu a imprudência de dizer:
-- Litro de álcool, algodão e faca.
Recebeu-os e foi cumprir o seu dever (quase diário) de limpar, desinfetar abrir o bujão de água. Quando havia retirado o plástico que encobre a rolha e tinha de desinfetá-lo para pór no suporte, teve uma surpresa: o litro de álcool estava seco, vazio, sem uma gota do líquido que o rótulo anunciava deveria estar ali dentro. Meio desanimado e sem alternativa diferente, teve de socorrer-se de colega de outra repartição, que o emprestou. Conseguiu realizar o trabalho; porém, pensou:
-- Vou reclamar à dona Magnólia essa indelicadeza. Como eu peço um litro de álcool, e ela me entrega um litro vazio? Isso é um absurdo! Vou questioná-la mais tarde.
Passou o tempo, já no final do expediente, avista-se com a dona Magnólia e cumpre o que prometera a si mesmo:
-- Dona magnólia, eu lhe pedi um litro de álcool, e senhora me entregou um litro vazio. Como pode ter feito isso logo comigo que a estimo e admiro tanto?
-- É fácil. Explico: o senhor me pediu um litro de álcool; entreguei-o de imediato. Não há razão para reclamar. Vê se não amola.
Meio desolado, Francisco tenta argumentar, e ela cada vez mais educada esbraveja;
-- Olha, Francisco, se você tivesse pedido um litro com álcool, seguramente eu entenderia que o seu desejo era ter o produto. Do jeito que me solicitou (litro de álcool) eu compreendi de outra forma, ou seja, o litro vazio mesmo.
Aí ele se lembrou da frase de Olavo de Carvalho: "Se uma pessoa não pensa, não sabe o que fala nem compreende o que lhe dizem. Discutir com ela é impossível."
Amargou mais um descaso. Entretanto, levou consigo a certeza de que é preciso difundir mais as figuras de palavras, principalmente a metonímia. A culpa maior, sem jogar tinta em demasia, está nos cursos feitos à s pressas, à noite, sem atentar para o dito: diploma sem saber é perigo e vergonha.
Mesmo assim, continuou o ofício de providenciar a água bem cuidada para todos. Comprou um litro de álcool e guardou no seu armário. Desse modo, não vai haver tanta polêmica em torno de algo sem muita importància. Poderá fazer a assepsia sem molestar a dona magnólia, que talvez precise de rever algumas figuras de linguagem, no caso específico a figura de palavra METONíMIA.
Enfim, é a vida.
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(*) Brasília, DF, 10/10/2008.
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