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cronicas-->Sorocabana -- 27/09/2008 - 00:39 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O trem estava pronto para partir e os ruídos e trancos denunciavam que as manobras para pó-lo em marcha já estavam adiantadas. As linhas eram limpas, ouvia-se de longe o barulho das ferragens batendo, aço contra aço, ferro contra madeira. Um apito anunciou a breve saída e quem pode saltou da plataforma a tempo de pegar o seu respectivo vagão. Não é como na Europa, onde tudo tem sua fleuma, nem como no Japão onde as pessoas são tangidas como bois para entrarem nas composições: Tratava-se de uma viagem daqui mesmo, no Brasil de todos nós. O calor lá fora fazia árvores tremeluzirem enquanto as composições rangiam em sua progressiva aceleração. Eu olhava a janela meio suja de lama, meio empoeirada e num lance eu via a parte interna do vagão.
Uma senhora de mantilha tecia uma espécie de centro de mesa e duas adolescentes estouravam bolas de chiclete perto dela, como se a provocassem. O máximo que conseguiam era despertar um débil sorriso nos lábios dela que voltava seus olhos cansados e claros ao serviço que a entretinha. As doces meninas davam risadinhas empedernidas e não cessavam o estalar de suas ocas mentes.

--Última chamada, Corumbá. Último aviso!

O estrilo do apito se misturava ao guincho do trem que começava a sair da estação em determinada marcha e alguns moleques corriam loucos para pular em uma porta e saltarem de outra, num arriscado jogo de pegar ou largar. O risco era o de caírem entre o trem e os trilhos, prensados na estação e isto os fazia rir. Mas eles estavam protegidos pela imunidade dos incautos e desatentos. Finalmente se fecharam as portas e o trem se destacou da estação que agora se distanciava. O guincho agudo nos levou ao desvio e um sinal amarelo alertou ao condutor de uma composição de carga imensa que passaria ao lado da nossa e foi aí que eu vi em velocidade crescente as manchas dos vagões do trem de carga se misturando às manchas de poeira de meu quinhão de janela a caminho da cidade mais quente do Pantanal. Minha companhia era uma mochila verde que eu havia comprado semanas antes do Exército, junto com o coturno e a cinta que me serviria de apoio para colocar a arma que eu receberia se fosse aceito no Serviço Militar. Deixava para trás a cidade que me concebera, à caça de possíveis horizontes novos de trabalho e de vida nova, quem sabe para um novo porvir que me fizesse sair do marasmo em que me encontrava no limiar de minha vida adulta. O cheiro inconfundível de diesel queimado se misturava a um saudável odor de mato verde e de chuva recém-caída. Chovera muito por lá e sempre à esta época caem as monções que recarregam os caudalosos cursos de rios que fazem desta bacia hidrográfica uma das maiores do mundo.
--Impressionante, não é mesmo?

O meu interlocutor não deveria ter mais de quarenta anos, os cabelos ralos denunciando a calva que se espraiava em seu crànio alongado, olhos argutos a observar a paisagem errante que se descortinava veloz à frente e se abria em nesgas de clarões verdes quando o trem passava por pontes ruidosas sobre rios nunca vistos. O Pantanal se descortinava e com ele as nuvens carregadas que se desfaziam em enormes manchas de chuvas que se descortinavam ao longe, como grandes fiapos de luz cinza em que os raios teciam suas estranhas trajetórias.

--Chove muito nesta época.
--Verdade.
--Sou caixeiro-viajante. Gosto de vender livros nas comunidades ribeirinhas. No entanto, muita gente compra quinquilharias, cortadores de unha, buchas de banho, batons baratos...
--Então não vende livros?
--Posso até vender livros, mas eles não são muito populares num país de iletrados.

O ruído dos trilhos aumentava quando passávamos sobre as pontes que saltavam sobre os rios cheios de volume agora, alguns até vorazes demais em suas corredeiras. Não devia ser bom cair ali, seríamos tragados em morte certa e rápida.
--... Uma vez, de noite, no escuro, o trem devia estar veloz e escorregou nesta ponte. Era de noite, o céu estava claro, as nuvens povoavam o horizonte e o trem se precipitou rio abaixo com fúria. Os jacarés se fartaram naquele dia fatídico!

Como para fazer contraponto comecei a ouvir grossas gotas batendo nas paredes do vagão em que estávamos. Um casal sentado a duas poltronas de nós se esfregava descaradamente, num beijo que se não arrancara suas línguas ainda era porque deviam estar coladas no céus de suas bocas. A senhora que tecia as toalhas de vez em quando dava uma espiada para os dois e o sorriso que as adolescentes mascadoras arrancavam dela virava um suspiro, tal como se recordasse dos tempos em que urdia a malha de sua vida com outro e não mais com suas mãos cansadas de trabalho e com os argutos olhos de velha.

--Veja a floresta. Faz trinta anos que passo aqui. Tenho duas famílias, sabe? Uma não pode saber da outra, viu?
Incrédulo eu ouvia aquelas revelações todas e olhava-o assustado com tanta ousadia.
--Desculpe, não quis ofender você. Nem aborrecê-lo!
--De jeito nenhum!

Minha atenção foi desviada pela presença suave de uma moça loira de cabelos presos que viajava sozinha, uma mala enorme ao seu lado no chão. Ela me viu e sorriu expondo os alvos dentes em um sorriso tímido e ao mesmo tempo comprometedor, como se com aqueles dentes alvos pudesse compartilhar comigo um medo íntimo, talvez um insondável desejo que a acompanhasse em todos os lugares que fosse naquele trem. Percebi que minha mente viajava e era sempre assim, mesmo quando criança me deixava levar pelass divagações enquanto a velocidade se apoderava de meu corpo, num deslocamento relativístico como só Einstein pudesse prever em suas absurdas equações. Lá estava ela, suave, magra mas de pernas bem feitas, rosto alvo e ombros cobertos pelo casaco leve que não iria protegê-la do frio que nos assaltaria de noite naquele vagão que ia junto ao trem e a toda a gente a caminho de Corumbá e seu calor infernal.

--Olhe lá: Ali!
--Onde? O quê?
--Não está vendo?

O calvo senhor me apontava a árvore próxima que balançava com o efeito do deslocamento do trem que passava perto de sua copa. Vários macacos, pequenos e numerosos, saltavam em busca de visão mais próxima e eu depois soube o porquê: Muitos passageiros lhes jogavam frutos, bananas, pedaços de pão. Um alvoroço na árvore que devia ser sua morada. A moça contemplava a cena extasiada, talvez nunca tivesse visto tal coisa, talvez fosse como eu, bicho da cidade, boquiaberto de ver tantas flores berrando assim na natureza, tanta água assim espelhando o céu que beirava o infinito e que ao pór do sol se incendiava perto dos trilhos, numa labareda que se consumia à medida que o trem avançava pelas infindas planícies do Pantanal.

Eu a vi levantar, abanando um leque que apareceu como por mágica e que a refrescava agora enquanto ela se dirigia a algum lugar para dentro da composição. Será que tinha fome? Ou seria sede que a assaltava àquela hora dentro do inferno verde que nos cercava? Eu a perdera de vista mas não custaria a achá-la se assim eu quisesse, porém os olhos da multidão se voltaram para o imenso espelho abaixo da ponte onde passava o trem e onde milhares de bocarras apontavam seus afiados dentes para ar como se pudessem devorar os insetos que zumbiam em torno das carcaças que haviam sido seus alimentos ali. Um cheiro acre invadia o ar, o festim tinha seu preço e era o cheiro das águas paradas e dos restos da refeição doa jacarés que deixava no ar o odor de morte característico.

Pedi ao caixeiro viajante para olhar minha mochila de guerra e fui ao banheiro e tive a surpresa de ver a bela moça loira voltando de seu passeio pelo trem; ela me olhou divertida e corou em encantadora demonstração de timidez. Lá fora passava a floresta veloz.

--Está sozinha?
--Minha mãe mora em Corumbá. Moro sozinha em São Paulo, mas penso em me mudar para lá, é muito bom. Você não imagina...

O solavanco nos interrompeu, devia ser mais um desvio, mas o apito avisou que passaríamos perto de paredões de pedra, portanto ninguém poderia ficar com a cabeça fora de sua janela.

--Eu vim tentar a sorte em Corumbá.
--Vai servir Exército?
--Certamente!

Sentamos perto um do outro e a maravilha da natureza nos invadia pouco a pouco e seus olhos tinham uma suavidade que me deixava enlevado, as garças espalhadas ao longo da rota das águas só não eram mais bonitas que as revoadas de pássaros e as nuvens de borboletas que vinham nos brindar com uma sinfonia de cores. Seus olhos cruzaram os meus e sua mão pousou sobre a minha, trazendo um calor que eu até então desconhecera.
A senhora das mantas certamente teria de olhar com outros olhos o aspirante a soldado que beijava a moça loira bem ao lado de onde ela cerzia talvez nosso futuro com um sorriso de cumplicidade nos lábios.
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