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cronicas-->Marcador -- 09/06/2008 - 14:34 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Um homem deve sempre guardar para si certas verdades, as que sobressaem na noite dos tempos quando chega o paredão do esquecimento. Ele não pretendia esquecer jamais tantos fatos isolados e acontecimentos de sua vida, de modo que tomava seu uísque predileto e se punha a ruminar nas horas em que, só, enfrentava a verdadeira face do que havia sido. Os fatos como que lhe saltavam aos olhos e ele sentia que a atmosfera de sonho ainda o podia envolver. A noite em questão era quente, o ar úmido e cheio da vertigem do dia que se fora, ele ainda era um frangote (como costumava chamar seus futuros assistentes, quando chegavam para beber da água que ele compartilhava, dizendo que qualquer um que a saboreasse, chegaria aonde ele chegara) e seus olhos miravam o horizonte da cidade grande, os edifícios enormes do Centro lhe convidavam ao mergulho naquele ruído infernal, sem volta.

Acabara de chegar de trem à Estação da Luz e erguia os olhos às estruturas impressionantes e imponentes que o assombravam do alto. O Banco do Brasil, as ruas cheias de vida, as correntes galvanizadas de pessoas em busca de uma verdade. Os automóveis e a fumaça. Os olhares das mulheres.
Chegar a São Paulo, vindo de onde viera com uma promessa no bolso, as economias que juntara com os votos do pai presciente de seu talento inegável (ele fora o único dos irmãos que merecera elogios do velho antes de cair na vida) e a noção do quanto teria de se esforçar, não fora fácil. O olhar de sua mãe ao se despedir dele, sua vontade férrea de vencer no que se propusera, o pai firme em sua velha cadeira, tudo isto o pusera em movimento. Um moto perpétuo se acendera nele e ele mesmo se espantaria com a sucessão de fatos e eventos que seria sua caminhada dali para frente. Dali da Estação ele andou pelas calçadas e viu a multidão se movendo, os homens de ternos de linho, chapéus na cabeça, as moças bem vestidas. Viu os meninos de boné e um deles se ofereceu para engraxar seus sapatos gastos pela viagem longa que fizera do sul até ali. Era um menino de cabelos acobreados e sardas que lhe davam um ar de doce insolência, principalmente quando se punha a limpar a testa na manga da camisa xadrez que vestia e o abrigava contra o frio e a garoa que insistia em nublar os olhos de quem vivia ali.
Os sapatos nunca rebrilharam tanto como após o trabalho do menino e ele mesmo se sentiu orgulhoso de ver o que havia feito. "Um bom trabalho" raciocinou o moço recém-chegado do sul. O menino olhava o rapaz, magro, cabelos negros e um olhar inquisidor. Via que ele tinha feições de italiano, pensou que ele fosse um radialista, talvez locutor de rádio que naquela época estava na moda. Tinha jeito de italiano, quem sabe um estrangeiro em nossa terra, pensou o pequeno sardento, mas ele falava português perfeitamente para sua surpresa e desapontamento, certamente sua féria não seria tão polpuda como esperava depois de tanto capricho. Seus olhos brilharam com o dinheiro que recebeu, no entanto; daria para comprar um bocado de alimento certamente e sua mãe agradeceria por pelo menos uma semana. Um bom trabalho, concluiu em voz alta o moço italiano e ele agradeceu não sem antes gritar com pulmões inequívocos para um espirro de seu tamanho:

--Engraxate!

A garoa fina caía sem freio do ar enevoado, nublado e carrancudo, pois era início de noite, estava úmido e as luzes dos postes já se acendiam, enegrecidas pela fumaça dos carros e pela falta de limpeza crónica. Ele andava a passo largo, sempre vigilante com sua pequena mala, com as palavras do pai impressas em sua memória, dizendo que todo cuidado é pouco. Todo cuidado é pouco na cidade grande. Ele via as meninas despudoradas a andar nas portas de hotéis de segunda categoria, na espreita de mais um cliente. Ele sentia as baforadas de cigarro em toda a parte e percebeu que devia ser pré-requisito estar com alguma forma de tabaco na mão e ele naquele momento tinha pouco dinheiro de modo que saboreou um maço de cigarros mentolados. Já fumava desde a adolescência e sempre escondera do pai e principalmente da mãe que não admitia que filho seu empesteasse a casa com a fumaça do tabaco, porque seu pai jamais o fizera e nem seu avó. O prazer o invadiu e vinha de dentro após a longa tragada, a fumaça de bom sabor lhe trazia as lembranças do beijo de sua namorada. O beijo dela tinha sabores, cores e texturas emocionais, quando ela estava zangada tinha um quê de ácido, quando estava relaxada era doce e quando o desejava, tinha um odor atraente que ele não sabia definir. Sabia distinguir pelo cheiro muitas coisas como bom homem do campo acostumado com os sabores brutos da terra e de seus frutos. Ela e ele costumavam subir a alameda do rio da cidade ornado de árvores que floresciam na primavera e de mangueiras que espalhavam suas cores amarelas de frutos maduros na época do Natal e eles colhiam do pé aquelas maravilhosas mangas rosadas.

Caminhar pelas alamedas de sua cidade natal na época do Natal... Certamente nunca se sentira tão dono de si mesmo, tão confiante quanto ao lado dela, lindos lábios que escolheram o caminho de sua boca numa festa do vinho. Ele já trabalhava, primeiro com o pai na colheita das uvas e no preparo dos vinhos que o patrão dele vendia em Bento Gonçalves, um vinho encorpado, mas que vinha ganhando fama nas casas dos abastados. Ele se orgulhava de participar do feitio daquele que seria o vinho das multidões, como falava o patrão de seu pai. Ele pensava nas multidões vertendo os vinhos das taças vermelhas do rubi do precioso líquido, imaginava como seria sentir o prazer do gosto do vinho a descer pela garganta, aveludando a noite fria com o calor agradável de sua estimulante presença e imaginava como faria aparecer o vinho nas lojas. O pai lhe ouvia enquanto os dois, ele rapaz já feito, esmagavam as uvas no tanque com mais outras pessoas, rindo da imaginação dele que já pressagiava o que ele seria em breve, uma espécie de mago das vendas.

Estudar não era seu forte. Ele preferia trabalhar duro, acordar cedo com os irmãos e ajudar o pai. Não que não fosse à escola, mas o aprendizado lhe parecia enfadonho, detestava aquilo que certamente não lhe serviria no futuro e se apegava ao que mais lhe agradava, passando sempre de ano com notas medianas. O que divagava era sua imaginação e ele se deliciava em contar histórias fantasiosas aos irmãos, como na noite em que deixara os outros de cabelos em pé com a história dos espíritos do campo da casa do alto que é como eles chamavam a casa abandonada que a mãe não gostava de jeito algum, talvez pela sua lenda, porque fosse muito antiga e talvez trouxesse riscos a eles ou porque ela mesma já ouvira tantas histórias a respeito dela que preferia se persignar ao ouvir que algum deles chegara perto daqueles muros arruinados.
Depois de algum tempo, já formado no ensino médio, ele recebera do pai a incumbência de arranjar trabalho, porque os outros ainda não haviam chegado ao final da escola e ele teria de ajudar no orçamento. Longe de se revoltar, agarrou as chances que lhe foram oferecidas. Como era alto, magro e forte além de inteligente e sagaz, haveria sempre tarefas que ele podia fazer para engordar a conta de casa. Então, lá ia o moço à procura de trabalho, sempre de imaginação ligada, com os olhos focados no futuro. Na época em que deixou a escola não existiam universidades ainda, pelo menos como hoje em dia. A vida, dizia seu pai, era a melhor das escolas. Ele aprendeu rápido e cedo. Foi assim que começou a trabalhar no jornal da cidade, pois seu pai conhecia muita gente, sendo simples e respeitado como era. Ele fazia a sua parte e começara como distribuidor de jornais nas bancas da cidade e logo a redação viu que seria um excelente foca. É o início de qualquer jornalista e ele começou caçando as notícias mais reles. Notadamente extrovertido, conquistara a afeição do chefe em pouco tempo e as notícias de mau jornal deram lugar às de cunho esportivo pois ele corria bem, era esperto no falar e deixava os jogadores embasbacados com suas perguntas à queima-roupa. Ele olhava a neblina de São Paulo e se lembrava das partidas que cobria nos campos da cidade natal, fria, com jogadores mais parrudos que técnicos, como sempre foi o futebol sulino, eficiente como o futebol europeu, mas não tão vistoso quanto o praticado nos estados do Rio ou mesmo São Paulo.

Foi na redação do matutino que começou a namorar a futura profissão, sua verdadeira vertente, sua fonte de águas claras. Flertou com ela num anúncio da capa do jornal onde exaltava as propriedades de um elixir recomendado pelos jogadores por ser um tónico muscular. Ele deu tal verve ao anúncio que em breve as farmácias da cidade não davam conta dos pedidos e a coisa se espalhou em torno de Bento Gonçalves, chegando a Gramado, Canela e até locais mais distantes. O diretor do jornal quis saber quem era o autor das palavras mágicas e não foi sem uma pitada de medo que ele entrou no gabinete do dono do jornal, suportando as mais variadas espécies de advertências veladas que iam desde a mais pura gozação até a mais deslavada inveja. O fato crucial foi que ele se portou como sempre, de maneira clara e aberta, como seus pais sempre lhe ensinaram. Nunca na vida ele agradeceu tanto o fato de ter referenciais tão pertinentes em sua vida. Ainda não servira o exército porque na época de se alistar ficou como reservista-era o fim da guerra e os pracinhas já voltavam para casa. Disto ele escapou. Porém nesta idade mesma, já começava a anunciar produtos e lojas que revertiam em lucros; era uma espécie de subproduto de seu trabalho como repórter esportivo, que lhe deu a agilidade verbal necessária para disparar os certeiros tiros na alma das pessoas. Ele e o dono do jornal já sabiam que o que ele realmente faria dali para diante estava escrito nas páginas de anúncios, nos "reclames", nas propagandas de remédios baratos e promoções de vendas relàmpago que sacudiam a cidade e enchiam o cofre do jornal incipiente e regional que o empregava.

Quem diria que ele, filho de um homem do campo por sua vez filho de um imigrante italiano fugido de tempos difíceis para se aferrar à terra poderosa do sul brasileiro, quem diria ele, mal tendo se formado e nada afeito aos estudos, agora produzisse estes brilhantes anúncios que prometiam sorrisos mais bonitos, menos dores menstruais e mais dinheiro em contas de poupança? Ele fitava as estruturas agigantadas de São Paulo, recordando-se da proposta irrecusável que recebera de trabalhar como estagiário em uma grande agência desta megalópole: Todos sentiram que começava a nascer uma estrela e ela arrastaria em seu rastro os destinos de mais pessoas do que ele imaginava. O convite viera de alguém que lera seus anúncios, recomendado por ninguém menos que o prefeito da cidade que o fizera vir ao mundo. Os talentos já nascem feitos, dissera o prefeito, há que se burilar este diamante bruto; "o bom filho a casa retorna, trará reconhecimento ao nosso rincão".

Jamais retornou como previra seu mentor, nunca mais pós os pés na cidade natal, a não ser nas raras vezes em que visitou os pais em sua lenta passagem para o envelhecimento. Foi numa destas passagens que ele se perdeu em paixões por uma menina e ganhou dela um beijo maravilhoso em plena viagem de volta à sua casa; ela, uma gaucha de Porto Alegre, bela como o sol nascendo na montanha, lhe oferecera a totalidade do amor em suas mais diversas formas. Deste encontro nascera mais do que uma paixão, nascera a certeza de que suas raízes eram fortes, uma certeza que ele remoia agora, tomando seu velho uísque escolhido a dedo, na casa que escolhera para viver perto da montanha que sempre escudava sua casa contra as agruras do inverno e suavizava seus mais quentes verões. Ele, mais do que qualquer outro, se lembrava com carinho de sua cidade agora próspera, com seu circuito de vinhos que ele tanto ajudara a fazer nos dias da juventude dourada com seu pai, que se fora tristemente, num dia de semana gelado em seu coração que ele trazia como uma marca indelével em sua alma: Jamais se sentira tão triste quando viu sua mãe se despedir para sempre daquele orgulhoso carcamano que formara cinco filhos, entre os quais ele se destacava altivo.

--Até nunca mais, meu querido!

O copo de uísque gelava sua mão. Ele se recordou de sua antiquíssima paixão e do que guardara dela: Num de seus encontros com a gauchinha, ela lhe dera uma pétala de rosa. Ele a tinha seca, dentro de seu livro mais querido, lembrando-o de suas poderosas origens e de seu destino inevitável.
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