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Contos-->Vitória, seus olhos -- 31/03/2000 - 11:54 (Alexandre A Mascarenhas) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Os dois acertariam todos os detalhes pelo telefone, mais tarde. Pelo menos era esta a proposta de Paco; ele pronunciava cada palavra de modo que elas seguissem uma espécie de marcação, um ritmo: lento, repetido, insinuante.Leonora parecia dizer que sim.

Para ficar em pé ele a surpreendeu com um salto, o corpo estava encolhido e, de repente, estica-se ligeiro - tenso. Leonora não tinha pressa ao acompanhá-lo, acabaram desaparecendo através do pórtico da sala; sem que ele se desse conta, neste momento era ela que o conduzia: ao contrário do que estavam habituados. Os móveis da sala apresentavam sinais inusitados; lentamente, eles tomavam a forma de Leonora. Em pouco tempo Paco retornou, sem ela. Sentou-se à mesa e deixou que um rápido sorriso alongasse levemente seus lábios - um colado ao outro. Olhou em torno de si procurando alguma coisa. Finalmente, partiu na minha direção e quase chegou a me tocar.

Antes de se aproximar ainda mais - talvez faltasse menos do que um passo -, Paco virou-se, caminhou até o banheiro e sumiu, embora não tenha fechado a porta. Permaneceu algum tempo lavando as mãos (o ruído jorrava abafado e grosso, distante...) e, possivelmente, reparava a sua imagem, refletida no espelho. Fechou a torneira com um movimento calculado, diligente; secou as mãos, os braços; e sentiu-se preparado para agir segundo os seus desígnios. As cortinas da sala agitavam-se como se fossem uma coisa viva.

Ele sentiu necessidade de se concentrar e passar na própria mente todos os passos minuciosamente planejados que, de uma maneira ou de outra, o levariam a atingir a sua meta. Dirigiu-se até a estante metálica - exatamente na minha direção, no lado oposto da sala - e escolheu, observando as diversas opções, um CD. Com uma das mãos acondicionou-o no aparelho e com a outra tratou de acionar delicadamente uma tecla, fazendo girar a superfície prateada de círculos imponderáveis. Música clássica.

O mesmo compositor, a mesma faixa que ouvimos milhares de vezes ao longo dos quase três anos em que estivemos casados. Leonora aguardava seu telefonema, ansiosa. O quarto dos fundos, Paco foi transformando no seu atelier: quando os nossos encontros aconteciam naquele local podia-se avistar pequenos barcos de movimentos invisíveis e cores vibrantes; o anfiteatro de aparência geométrica para espetáculos ao ar livre; o emaranhado de calçadas entre a avenida e a margem deslavada da represa. As janelas eram amplas e permaneciam abertas, o ar tinha um cheiro de novo.

Estranhamente, Paco evitava me olhar e dirigia-me escassas palavras - passou a não me tocar; dedicava-se exclusivamente às cores, às composições, aos traços, cuidadosamente dispostos sobre a tela: uma após outra.

A tarde custava a avançar. E se Leonora mudasse de idéia?; poderia haver um imprevisto que a fizesse desistir e tudo isso já em cima da hora. - Merda, passaria pela cabeça dele. Paco não se conformaria sequer com um leve atraso; por outro lado, eu era a única a saber que ela seria capaz do recuo; neste momento, era eu que os conduzia: exatamente como planejara. De fato, o que vem se desenrolando entre Leonora e Paco - eu não faço outra coisa senão observá-los - nestes dois anos e nove meses é semelhante e, certas vezes, o mesmo que se passava entre eu e ele: já aconteceu dele se distrair e chamá-la de Vitória (quase choro de tanto rir!). Ela fitou-o assustada e minutos depois estaria nos braços de Paco que lhe contava uma longa e intrincada história, repleta de personagens e cenários que alternavam-se indefinidamente entre o prólogo; o enredo; o epílogo.

Leonora imaginava que ele já estaria subindo pelas paredes enquanto aguardava o seu telefonema e mesmo assim decidiu retardá-lo um pouco mais, embora a última aula tenha sido cancelada: não havia mais o que me obrigasse a estar ali. Paco não tinha muito o que fazer além de lançar olhares desconfiados na direção do aparelho de telefone, próximo à porta de acesso à cozinha, no canto da sala. Voltou a escolher mais um CD - desta vez algo que não me comovia - e tornou a se aproximar de mim: encarou-me como se quisesse me revelar um segredo, uma descoberta recente, ou qualquer coisa que não teve chance de contar antes. O telefone, era Leonora.

- Paco? Sou eu!
- E então, você vai topar?
- Claro, daqui a pouco eu chego...
- Mas você não quer que eu vá te buscar?
- Não precisa, eu vou de carona, um beijo!

Desligou. Música clássica. Aparentemente, não faltava nada: o material de pintura, o vestido que a faria usar, a corda.

Ela estava especialmente bonita, feminina, cândida. Paco escolheu a iluminação perfeita, estudou o melhor ângulo, prendeu a respiração e começou a esboçar Leonora. Eu tinha uma excelente visão tanto da tela como de Leonora, que parecia tranqüila - pelo menos no início. Ele cantarolava enquanto movia ambos os braços com uma impressionante agilidade; do nada, ela surgia como se já estivesse ali há tanto tempo e, no entanto, somente agora lhe era conferido o direito de se mostrar. Sem imaginar se ainda faltava muito ou pouco para o final, ela indagou-me (sem que ele notasse) com seus olhos úmidos e claros: eu pisquei meu olho esquerdo dando-lhe a entender que a obra estava praticamente concluída.

Paco assinou o retrato e partiu para cima de Leonora, exatamente como ocorrera comigo: ele não poderia imaginar que eu o esperava, através dela. Música clássica.
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