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cronicas-->Ligações Perigosas -- 19/05/2008 - 20:19 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Engraçado que com ela sempre aconteciam estas coisas. Num encontro, de repente, se iluminam várias janelas, num cruzar de olhos se descobre o que ela poderia chamar de alma gêmea. Em sua mesa de secretária-executiva da agência de publicidade, ainda estavam os convites para posar para uma revista masculina e outro para ser-- Deus a livre-rainha de bateria de uma escola de samba. Pudera. Morena, sensual e gostosa, como haveria de ser diferente? De certa forma, escrevera seu roteiro na noite anterior, mas não era de todo mentira que fosse de certa forma modelo, pois já fora um dia, até descobrir o preço que se paga para posar em determinadas horas do dia, ou da noite. Regina se lembrava com carinho da noite anterior, do suave escritor que a enfeitiçara. Escritor, jornalista, modelo, tudo se imbrica na calada da noite, após alguns copos de cerveja e muita conversa jogada fora, porque os dois sabiam bem o que queriam. Ele lhe parecera de certa forma embriagado, como passara a ela a impressão ao gritar "viva las putas" a plenos pulmões. Seu amigo, estes sim devia ser um pau d´água, saiu trançando as pernas. Ele, não. Ela esperou que ele saísse e os dois juntos foram passar o resto da noite juntos. Mentiras sinceras interessam e ele acreditou direitinho que ela fosse modelo, mas ela não devia nada, absolutamente nada, às ex-colegas que deixara para trás, depois que uma delas morrera de overdose de anfetaminas, puramente no desejo de se manter magra demais. Tragédia. Foi ali que decidiu partir para outra, deixou a ocupação charmosa, onde as capas sempre lhe abriam espaço, por outra onde ganhava bem, numa agência de elite, onde exercia seus dois idiomas com fluência e dignidade.

O mais interessante era saber que Ricardo conhecia uma parte da história de pessoas bem próximas a ela, pelo menos no que se referia a pessoas da publicidade. Ele achava que sabia tudo, mas ela, Regina, sabia bem mais do que seria permitido. Ela lhe diria isto na hora certa, agora se deliciava ao recordar a noite de amor que vivera com o moço jornalista, escritor ou sei lá o que fosse. Não importava agora, nesta hora da manhã,quando tinha de manipular documentos e planilhas que agendavam reuniões, que de certa forma fechavam negócios e punham frente a frente publicitários e donos de empresas de diversos tipos, que queriam ver seus produtos alçados à condição de sucessos incontestáveis. Isso é o que queriam, mas o preço a pagar por isto é o que teriam de negociar, depois que a campanha tivesse que ser autorizada a ser feita. Ela conhecia os meandros das negociações, as mentiras que eram ditas, as propinas que eram dadas e inclusive os jogos sujos entre uma e outra agência às quais ela prestara serviço em sua vida de secretária executiva participante. Isto o aspirante escritor teria de garimpar, se tivesse que dar um lustro de verdade à sua história e passar um mínimo de seriedade ao seu relato ainda incipiente. As obras se revestem de importància à medida em que se aproximam da realidade, sempre com um pé no onírico, um pé no sonho e um olho na vida real. Sempre fora assim, por qual razão com ele haveria de ser diferente? Estes jornalistas acham que sabem de tudo, metem-se a pesquisar a vida dos outros e se esquecem que podem cavar buracos mais fundos que a toca de um coelho ou, por outro lado, saírem numa dimensão completamente diferente, dando tintas de farsesco ao que dizem ser um achado de máxima seriedade policial. Portanto...

--Regina!
--Bom dia, chefe!
--Bom dia. Poderia me trazer a agenda do dia? Tenho uma reunião às nove, mas queria encaixar uma delas hoje à tarde.
--Vou ver o que posso fazer.
--Menina aplicada!

Ela gostava de ser elogiada, ainda mais por aquele que era uma locomotiva. Todos os sinais lhe diziam, este homem é de ferro, vai longe!Sentia por ele uma atração que não chegava a ser sexual, não, pelo contrário, era uma atração pela sua agilidade, pela sua perspicácia em achar no recóndito da alma do cliente o que ele buscava assim num jogo de palavras, num acesso de fúria do mesmo, quando ele e o cliente pareciam quase ir às vias de fato: Surgia uma brilhante campanha, um anúncio definitivo e o creme de depilar virava coqueluche da noite para o dia. Era isto que a atraía, este senso pelo sucesso, este tino pela luz e vitória, coisa que não se vê muito hoje em dia, na maioria dos jovens que ela conhecia. Eles estavam mais interessados em carnalidade, mais interessados na fruição dos sentidos do que no planejamento passo a passo de suas vidas. Viviam o agora, o já. Ela vira um pouco disto em Ricardo, mas quando olhara seus olhos, tivera a certeza de um achado raro, apesar da neblina provocada pelos excessos do álcool. Ele tinha uma mente particularmente brilhante e fazia, sim, sexo como poucos que conhecera! Ainda teria muito a aprender se realmente quisesse ser um escritor de sucesso, sendo menos superficial na procura por fontes mais qualificadas. Ela seria sua fonte, dentro de um meio que ele mal conhecia.
Ela via a si própria no espelho da sala que servia como anteparo a sala de seu chefe. Alguns clientes se comportavam mal com ela, com sua beleza estonteante. Outros pareciam que iam passar numa consulta com um médico. Alguns sempre a olhar seus relógios, suspiravam impacientes...

--Ele está na agência?
--Na criação, mas sua reunião com ele está marcada...
--Dá para apressá-lo? Não tenho o dia todo (e isto porque chegara há dez minutos...)

Ela conhecia a história de Ettore, que era uma lenda entre os do meio da publicidade. Sabia onde morava um personagem real! Que honra ter tal conhecimento, sentia como se sua vida ganhasse importància, alçando-a a uma condição não só de observadora, mas talvez (quem sabe) de co-autora. Ela teria de fazer isto discretamente, sem introduzir os fatos mais escabrosos de maneira acintosa no tal romance. Por exemplo, Ricardo deveria saber que Ettore na realidade era bem sacana. Bem sacana e mulherengo como ninguém; ela conhecia pelo menos três das várias conquistas dele, além de sua adorável filha Helena que tinha quase a sua idade. O velho carcamano teria de ser pintado de um ponto de vista menos idealizado. Sem ter contato com esses fatos, o romance de Ricardo cairia no vazio! Ela pensou em sua importància na trama, que assumiria e talvez se tornasse assim uma espécie de Ghost-Writer (gostava deste tema, alguém que escreve sem ser percebido, se fazendo passar por autor de uma obra que seria de outro, que acaba levando os louros da vitória...). Claro, ele teria de saber que Helena era chegada a crises de melancolia, em que passava horas e horas sem produzir absolutamente nada, até que numa espécie de surto, deixava as imagens brotarem de seu inconsciente e quase mediunicamente, fazia brotar dos pincéis sua mais nova criação. Também ele deveria saber que seu marido, um importante negociante, fora flagrado por ela mais de uma vez ao telefone em ligações suspeitas e perigosas, talvez com golpistas, talvez com negociadores estrangeiros, ao que ele desligava acintosamente o telefone e ela se indispunha com ele por dias e semanas. Estes detalhes tornam os personagens mais humanos, recortam seus perfis contra um fundo de possível banalidade, dão contorno e aprofundamento emocional. Não basta descrever...

--Regina, mande entrar o apressadinho.
--Pois não, pode entrar!
--Já não era sem tempo!

Ouvia a gritaria de sempre...

"--Porra, se quer que eu faça sua campanha, não me encha o saco! Porque eu faço, e faço bem! Porra, eu sei o que faço! Porra! Então, se vem à minha agência..."
--"Não vem que não tem cara. Quero uma campanha perfeita, está me entendendo? Perfeita! Já com a outra agência, o cara estava mais interessado em passar a mão na bunda da secretária... O que não seria uma má idéia aqui... mas não saía, entende, não saía! Porra..."
"-Então? O que você quer? Quer vender o quê? Uma vitamina com poderes afrodisíacos? Uma camisinha de sabor sushi? Uma lingerie que dá choques elétricos? Me diz! Solta a franga, desembucha! Vamos, sua bicha velha..."

As risadas marcavam o território aberto das negociatas, o território depois que ela desbravava em suas planilhas, o jabá do supremo criador, a verba absurda para a produção, as ligações que faria como de costume para negociar com as produtoras... Depois seria a vez de enfrentar as atrizes aspirantes mal-encaradas que iriam ser instruídas a como participar da campanha... Que geralmente era um sucesso.

--Porra!
--Que foi, chefe?
--Acabou a água com gás. Tem mais?
Ela tinha.
--Menina esperta! Estou falando!
--Chefe, linha três.
--Quem?
--O cara da produtora. Diz que o preço está muito baixo. Quer cobrar mais.
--Manda ele...
--... Cortar gastos com dublês.
--Tirou as palavras de minha boca.

Ela se refestelava na idéia de poderia interferir na vida dos personagens de Ricardo, que mal a conhecera e já desfilava um milhão de personagens despudoradamente em sua frente. Como é complexa a alma de um escritor, vai tecendo a vida de seus pequenos súditos como o rei de um reino perdido, numa onipotência quase divina. Talvez não muito diferente da nossa vida real, em que algo ou alguém tece nossos destinos e corta os laços dele como as personagens gregas que teciam o fio da vida dos heróis e mortais... Assim ela se sentia uma espécie de deusa e refletia sobre isto, porque à vista dos fatos que ela pouco a pouco lhe destilaria, ele próprio e seu romance que ainda estava para nascer sofreriam um abalo considerável, como se um terremoto mexesse com todas as vidas de suas criações. Pode-se daí presumir que todo escritor inventa um pouco de si e de todos para poder sobreviver e parecer ao mundo o que realmente não é. Pode-se falar de uma farsa, um ato teatral, uma cena de um filme B, mas a farsa maior está em se escrever o que nunca se viu, como uma capital em que nunca se pisou ou uma ave canora que nunca se ouviu cantar. Ela manipulava as planilhas da próxima campanha, dando os acertos da agenda do próximo dia de seu chefe. Ela sentia o cheiro característico de lá de dentro, não queria contestá-lo, era seu destino afinal, era sua vida que levava, ela o admirava, mas enfim, ele tinha seu livre arbítrio.

--Regina!
--Sim?
--Chame o boy para despachar um malote. Vamos ver se esses originais o babaca paga!
--Vou chamar.

O boy tinha cabelos compridos, espinhas no rosto e era filho de um dos ex-sócios de seu chefe. Nada melhor que espezinhá-lo para lhe ensinar certas regras da vida, porque este moleque vivia se estourando nas motos e noitadas com amigos e não aprendia nada da vida, era o que diziam dele. Mais de uma vez o flagrara olhando sem vergonha para ela. Mais de uma vez o reduzira à insignificància que realmente aparentava quando sorria amarelo e respondia com a voz ainda frágil de adolescente meio que saído da infància, flertando com a possibilidade de viver uma vida mais fácil, com as benesses do pai que até aquele momento lhe cedera em tudo até que dera um basta. Interessante como ela sabia disto tudo, ela estava a par de tudo dentro de sua esfera. No entanto, nisto não se sentia tão poderosa como haveria de se sentir quando pusesse as mãos no texto de Ricardo, desafiando-o a enxugar a trama e afiar os personagens em suas extensas corridas no tempo que urge e passa.
Mas ela tinha ainda o que fazer, ainda teria de ir para casa e alimentar os peixes do aquário de água salgada que seu último namorado lhe dera e presente, toda aquela aporrinhação com controle de acidez, alcalinidade, oxigênio e temperatura. Ela lia muito, aprendera sobre os peixes multicoloridos que sobreviviam naquele microcosmo, naquele habitáculo. Repentinamente, outro flash de sua conversa com Ricardo lhe abriu a mente: Os peixes, os personagens, flutuavam por assim dizer num mar perfeitamente construído pelo autor, que tenta adequar uns e outros á sua mente, à sua experiência de vida ou ao pouco que conhece da vida deles. E se o mundo perfeitamente contido daquela espécie de aquário se rompesse e o autor perdesse o controle sobre suas personagens? Cada um tomasse conta de seu destino aleatoriamente, assim de repente Helena faria quadros delirantes e optaria por viver em uma comunidade hippie, enquanto Ettore se mataria com um rifle no dia fatídico de sua dor final, o pequeno falcão invadiria a casa de sua ex-esposa e comeria os livros mais sagrados de sua coleção insuportável de clássicos embalsamados (ela conhecera de perto...) e suas mil amantes sairiam da escuridão e viriam cobrar o ónus de terem vivido acobertadas em todo o romance, pedindo cada uma o seu quinhão de fama e vertigem? Seria possível isto?

Não, Regina, você está em sua casa, cuidando dos seus peixes, alimentando os azuis que faíscam ou as estrelas-do-mar que mourejam preguiçosas a se arrastar pelas paredes com suas bocas vorazes... Você está cansada por um dia cheio e está com um tesão enorme. Um desejo enorme de encontrar seu pretensioso intelectual e dar nele um banho de realidade, um choque de idéias estapafúrdias.
Será que ele merece uma ligação perigosa?
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