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Cronicas-->As Reminiscências -- 20/04/2008 - 21:14 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Elas surgem assim, em meio à noite, quando bate um vento na veneziana e de maneira estúpida, a gente se levanta pensando em fechar tudo e proteger da chuva as crianças. Em seu caso específico, a criança que já não mora com ele, que faz tempo o visita na casa de campo, Helena que já é artista famosa e que sempre que pode pinta um de seus quadros já menos sufocantes agora na fase de convivência com seus pesadelos mais profundos que já a libertaram do jugo do fim da infància. As lembranças batem porque ele se lembra que hoje não acordará mais cedo para pegar o carro e ir conferir os trabalhos dos estagiários que tanto o respeitam em sua agência, não mais precisará ser escravo do relógio que ele batiza de "coração mecànico" (um cebolão que ganhou do velho pai, este sim um velho carcamano que ganhou grande parte de sua vida plantando e colhendo uvas em Bento Gonçalves, num casarão que só de ele lembrar sente o cheiro das tortas da nona, a boa velhinha que ficava plantada à porta quando seu pai saía para trabalhar muito cedo pela manhã, ela que perdera o marido na guerra...). Batem as venezianas em lufadas que prenunciam a tempestade e ele se vê obrigado a fechá-las, não porque uma criança dependa mais dele, mas porque sobe um frio em sua espinha que o lembra estar sozinho nas alturas, embora o telefone esteja à sua mão, pronto a ser usado.

Quatro da manhã, ele enxerga no cebolão de grandes ponteiros, com rubis dentro dele, garantido pelo velho pai que o comprara de um oriundi empobrecido que precisava alimentar sua cria, então vendera o relógio por uma ninharia. Melhor pouco no bolso que nada para alimentar as crianças e seu pai, o velho carcamano (essa palavra estava em seu dicionário agora) além de comprar o relógio, ajudara a combater a fome do amigo empobrecido mas não conseguira salva-lo da tuberculose, pois que a cria comia e ele não e foi emagrecendo, emagrecendo até sumir. O que foi feito da viúva ele nunca soube... Quatro da manhã e um clarão ilumina a encosta da montanha e uma lufada arrepia sua espinha com o ruído dos uivos dos lobos que jamais existiram ali.

Ele era pequeno e dormia com os irmãos no quarto que dava fundos para um paredão e lá em cima ele sabia que tinha um terreno baldio que sua mãe sempre invocava nos momentos de desobediência:
--Lá é melhor não irem: Seu pai diz que é assombrado!
De fato, lá vivera uma família que perdera tudo na guerra da qual haviam fugido e o pouco que tinham era para sustentar uma família numerosa. Mas fazia muito tempo e haviam todos morrido. Todos. A casa estava vazia, tomada de mato e grama, o telhado ruíra e porisso era perigoso andar por lá. Mas naquela noite, o vento, a chuva e os raios o acordaram e ele olhou para as venezianas e notou um par de olhos fosforescentes perscrutando o quarto onde dormia com os irmãos e o primo. Foi a primeira vez que teve contato com o mal, em sua forma mais dissimulada, em sua maneira mais disfarçada. O mal estava lá fora, viera do terreno baldio e estava à espreita fora da janela, esperando a menor chance para adentrar o quarto e levar as almas de todos eles. Ele, num grito mudo, olhou os olhos esverdeados, sem poder mexer as pernas e cobriu a cabeça. O clarão estava lá, ele sabia que o vigiava e só ele saberia desde aquele dia que o mal está sempre à espera de que nós demos uma chance para que cresça em nossas vidas.

Ele olhou as venezianas, apenas o clarão dos raios que se aproximavam. Ele teve de descer da cama, o vento açoitava as janelas e ele achou que esquecera alguma coisa aberta no andar de baixo, desceu e olhou para a porta, fechada e trancada com a tranca que usava agora que morava sozinho ali. Mas ele olhou para o céu ameaçador e viu os clarões verdes dardejando o horizonte, algo se aproximava da montanha. Os raios iluminavam nuvens carrancudas que desceriam em cataratas de água em grandes velocidades através do vale, ele olhou para a pequena cidade lá embaixo e foi ao telefone.

--Aló!
--Aló, quem fala aqui é Ettore.
--Diga, seu Ettore! Como vão as coisas aí em cima? São quatro e meia da manhã!
--As coisas vão ficar feias aí, não é melhor alertar a defesa civil? Tem uma tempestade se formando aqui que está feia à beça!
--Estou ouvindo a trovoada. Nuvens baixas, Seu Ettore?
A voz do delegado agora denunciava preocupação pois mais de uma vez o Homem da Montanha avisara a tempo, só que desta vez era madrugada.
--Sim, nuvens baixas e escuras demais. O vento: está ouvindo?
-- Sim!Precisa de ajuda, seu Ettore?
--Creio que não, mas avisa o pessoal aí que fica perto do riacho. Não sei não, mas já deve estar chovendo lá pra cima, a água desce rápido aqui!

Sua avó lhe contava a história do vilarejo em que vivera, na Itália, perto de Trento, uma região que chovia muito. Ela lhe contara que certa vez chovera tanto que os habitantes foram acordados por um rugido e só tiveram tempo de sair de suas casas e correr, pois boa parte de cidade foi soterrada por toneladas de lama que caíram das encostas das montanhas varridas pelas chuvas torrenciais. O país se consternou quando soube das dimensões da tragédia.
--Mas era um barulho, Ettore. Ma che! Um barulho que parecia a garganta do diabo...

Ele, agora sem sono, foi à pequena biblioteca e escolheu o melhor uísque que tinha: Se viesse a chuva e arrastasse a casa com a encosta da montanha e tudo, que fosse com a melhor de suas bebidas que ele estaria se deliciando, ora!
Uma lufada de vento fortíssima deu como se fosse um soco na casa e ele pode ver uma árvore sendo açoitada pela ventania selvagem, enquanto que pedaços de galhos batiam em seu telhado velho e pesado e gotas espessas se formavam e vinham ao encontro das vidraças. Roupas voavam de seu varal, ia dar trabalho recolher as peças que sobrassem depois da tempestade. Os clarões verdes e baços se tornavam mais e mais frequentes, ele sentia a opressão da tempestade que se formava bem acima de sua casa, como num prenúncio de catástrofe. A calmaria não o enganou e ele esperou passar o vento para ouvir, ao longe, os pingos enormes começando a cair na encosta da montanha. Este barulho várias vezes o fizera recolher as coisas correndo antes que a chuva o ensopasse completamente, o aviso da mata próxima servia como alarme e ele tirava o que podia do alcance das águas que desciam com calma e precisão do céu antes limpo. Só que, nesta noite, ela viera mais furiosa que o costume. Viera precedida de clarões que nunca vira, em meio a ruídos que ainda não presenciara enquanto morador daquelas paragens. Sentiu medo, um medo indefinível que se apossou de sua alma, a princípio leve, como um desconforto, mas o ruído da água se tornava mais e mais imperioso e ele num crescendo viu chegarem as ondas de chuva a fustigar suas vidraças com lufadas de vento intensas e duras. Quase podia sentir a ventania no rosto, mas ele jamais sairia aquela noite para experimentar o sabor da chuva, tantos eram os raios que caíam. Um crispou seu rosto de tão próximo, outro riscou o horizonte e açoitou a colina próxima.

Sua mãe o confortava nas noites de tempestade. Ela costumava pegá-lo assustado, ele que era o mais novo dos irmãos e aconchegar sua cabeça em seu colo, enquanto fazia cafunés em seus cabelos. Ela era uma boa mãe, assim como seu pai fora um bom homem, trabalhador que jamais deixara faltar pão à mesa e bom vinho no almoço, a taça que bebia de bom grado junto ao pão que repartia para que todos comessem num simulacro de Santa Ceia. Era assim que ele via os almoços de sua família, com os olhos do Sagrado, seu pai sempre à cabeceira e a prece antes do ataque aos pratos. Seu olhar severo impedia que se matasse a fome do corpo antes de matar a sede do espírito. Todos o respeitavam, porque ele era honesto, porque sempre dizia coisas sensatas e porque ele dava a última palavra. Sua mãe lhe dizia, nas noites de chuva, que se tranquilizasse, porque quem mandava a chuva era o mesmo Deus que traria mais pão para eles se alimentarem. A visão de mundo de Ettore aos poucos se formava e sua mãe com suas opiniões e seu pai com sua presença foram determinantes para que ele se formasse no que era hoje e no que viria a ser no futuro.

As pedras ricocheteavam em seu telhado, o granizo viera forte e ele lamentou, pois havia espigas de milho bem tenras esperando o momento da colheita que jamais haveria. Um dos raios caiu pertíssimo e ele notou um cheiro de queimado. Teria de arrumar outro telefone, aquele fora incinerado. O medo em sua alma se insinuava como quando ele se vira fixado pelas pupilas iridescentes de sua infància: O Mal absoluto que a todos observa, o mal puro, que existe solto nas trevas e que desprezamos, ele estava bem ali, ao alcance de sua mão, na forma de um rifle.

Sua avó fumava um cigarro de palha forte, que deixava seu quarto impregnado. Ela vivia num quarto que ficava quase nos fundos da casa que era só seu, pois quando seu avó morrera ela não via sentido em ficar no quarto de casal, de modo que se desfez das coisas que a lembravam de seu querido esposo e se mudou para o quarto que servira como uma espécie de escritório. Teria espaço para viver ali até o último de seus dias, quando ele chegou da escola e encontrou sua mãe chorando a um canto, amparada por sua vizinha. Ele sabia ser algo grave, pela atmosfera que reinava, pelas pessoas que começavam a chegar e finalmente pelo abraço sentido que recebeu do pai. Ele, em um instante, ficou sabendo que uma era se fora, que uma estrela nascera no céu e ele ficou pasmo de saber que jamais poderia conversar de novo com sua nona, somente em sonhos. Naquela época se velavam os mortos em cima da mesa mesmo e onde antes eles ceavam, lá estava o corpo da velha avó, cheio de rosas e perfumes.

A pequena cidade lá embaixo já esperava pelo pior quando a chuva desceu. O Homem da Montanha ajudara mais uma vez, algumas famílias foram avisadas a tempo e seus poucos pertences salvos á beira do riacho que se tornaria um algoz não fosse o aviso providencial. O delegado estranhou que a linha da casa de Ettore estivesse muda. Talvez precisasse subir mais tarde para verificar, talvez o poste estivesse caído, mas dali de onde ele via a cidade, ele póde ver que havia luz na casa da montanha. Um pensamento lhe passou pela cabeça, mas ele tratou de afastá-lo, como se afasta um sonho ruim.
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