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cronicas-->A História Começa... -- 18/04/2008 - 16:52 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
...Não que ele não soubesse, mas ele e sua mulher já não se davam bem há tempos e ele simplesmente cansara de brigar com ela, simplesmente exaurira sua fonte de energia com tal coisa ínfima, pois sabia, no íntimo, que jamais poderia mudar seu jeito de ser assim como ela jamais conseguiria que ele se tornasse diferente do que era e a filha, armada de todos os subterfúgios, se escondia em festas para fugir dos conflitos que tornavam sua casa meio que irrespirável. Era inevitável que só voltasse tarde da noite, sentindo falta das recriminações "normais" que ela desejaria ouvir no lugar do silêncio desconfortável que se apossava de sua casa, meses antes que seus pais se divorciassem. Ele sempre usava a desculpa do trabalho acumulado. Ele amava sua filha, mas ela meio que o culpava pelo naufrágio e boa parte do tempo sequer lhe dirigia a palavra. Naturalmente, ele se defendia e se encastelava em seu escritório, fazendo as ligações de sempre para os contatos de sempre, conseguindo o sucesso costumeiro que sempre se confundia com as bases de seu sucesso na empresa que ajudara a fundar. A moça, uma bela menina de grandes olhos tristes, inteligentíssima e com um talento incomum para as artes, vivia pintando e desenhando, como numa reparação ao silêncio de seu lar e suas telas se punham a gritar nos quartos da casa confortável, tanto que quando seus amigos iam jantar, eles se espantavam com as bocas vermelhas das telas nas paredes.

--Que beleza, pode-se sentir o berro no ar!
--Quem sufoca tanto assim?

O casal, já acostumado ao silêncio mútuo, repentinamente procurava os olhos um do outro para um último acordo tácito.

--É nossa filha, ela diz que ser filha única às vezes a exaspera...
--...Então ela grita a plenos pulmões...

A autora quase nunca estava, pois preferia a morte a estar naqueles jantares onde quase todos se embriagavam e não raramente alguém se sobressaía de maneira menos adequada. As telas quereriam dizer, neste caso, que seus temas prediletos jamais seriam a revolução cubana regada a champanhe e caviar, ela que tinha um senso de ridículo mais apurado que os convidados que, numa mise-em-scène de dar dó, viviam a comentar dos divinos dons do "comandante" que tornara a ilha caribenha num paraíso socialista a poucos quilómetros da costa americana. Tudo regado a uísque dos mais caros, claro. Um dos convidados elevava o tom de voz, numa provocação óbvia ao estilo de vida de todos, para ouvir que daquela vez viera de chofer, então por que porra ele deveria colocar o dedo na ferida de todos, revolucionários de carteirinha, vermelhos até a medula? Ele sabia do que falava quando dizia que o meio em que vivia era habitado por cobras das mais variadas estirpes venenosas, porque bastava saírem da tal reunião ou festa e o esporte predileto deles se tornava então espetar os bonequinhos do vodu alheio e comentar sobre as intrigas de tal e qual convidado, numa maestria de mesquinhez que só mesmo este povo que nada tem a fazer aguenta mesmo. Talvez sua filha estivesse certa mesma de quase nunca estar, porque era só fecharem as portas, ia cada um para seu canto enquanto os empregados, cabisbaixos, retiravam a louça e os pratos, como que antevendo o que haveria mais à frente (e mais além). Na verdade, eles não vinham de um mesmo mundo, ela era de família rica e antiga e volta e meia jogava isso em sua cara, enquanto que ele se fizera sozinho, contra todas as chances e ganhara mais dinheiro que a família antiga dela jamais poderia imaginar e agora, de certa forma, ele era admirado pela sua tenacidade e perspicácia enquanto que ela via suas qualidades de antiga beldade se esvaírem junto a um marido que era de certa forma grosseiro: Como ele se atrevia a ainda pegar as hortaliças com as mãos perante os empregados? Ela, fina, chamava a filha pelo sino de cristal... Era um abismo insuperável.

Sua mulher então ia com as amigas a um chá onde certamente ia desaguar a fonte de sua tristeza toda, deixando de colocar-se como co-responsável pelo sofrimento que dizia passar com aquele "carcamano" grosseiro. Isso, mais de uma vez, veio parar em seus ouvidos através de amigas em comum e fora isso que mais o magoara naqueles distantes tempos que ele recordava agora, logo antes da separação inevitável. Seu trabalho brilhava: Os prêmios que colecionava em suas campanhas eram a compensação mais do que merecida por ser chamado de "carcamano", então o grosseiro ia lá e desejava a todos a sorte que tinha e aos adversários a chance de vê-lo sempre assim triunfando de pé, naturalmente pensando mais em sua companheira que num possível rival, ao que ela dava olhares significativos a ele entre os aplausos que se seguiam aos seus dúbios discursos. Ele brandia os troféus no ar com uma pontada de orgulho, quanto mais prêmios tirasse melhores seriam os preços de suas campanhas impecáveis. Ele dizia que se pudesse fazer, colocaria cartazes de armas nas ruas a até isso venderia, sendo aceito entre todos como normal o seu orgulho. Os que o conheciam sabiam de sua solidão interior, os que o tinham visto crescer sabiam de suas dificuldades intestinas e lhe perdoavam o jeito brusco com que tratava os sócios. Ela de um lado, culta, vinda de família importante, casara com ele numa jogada de marketing mais dela que dele: Uma dondoca linda casada com a mais jovem promessa da nova publicidade, como era bela sua esposa, como era lutador aquele moço! Ela imersa em leituras, ele imerso em ação, entre baforadas de charuto e litros de uísque. No meio dos dois, a filha que desabrochava entre a cultura da mãe e o pragmatismo do pai que de certa forma a deixava escolher entre o melhor dos dois mundos. Ela captava as coisas no ar e mais de uma vez pedia que eles se acalmassem, temerosa do que se pudesse dizer nos cafés da manhã, quando todos se encontravam e ela ia, toda perfumada, estudar no colégio que tinha os alunos mais inteligentes da cidade.

Daí, os quadros dos gritos a plenos pulmões.
Num domingo, decidiram pela separação, em meio ao silêncio da casa que já fora um ninho de encontro. A resignação já tinha tornado aquele momento mais que aguardado, de modo que não foi sem surpresa que ele viu como tudo se arranjou rapidamente, sem dor maior que o momento trazia, até que se viu a sós em uma casa que era deles mesmos, em bairro próximo, onde poderia conviver mais alguns anos com a bela filha que agora já se aproximava da idade onde escolheria seus destino. Ela soubera da notícia pela boca da mãe, mas quisera saber isto dele mesmo, então fora à sua casa que ele acabara de montar, com móveis leves, poucos e bons livros. Ali ele iria montar seu quartel general, de onde partiria todas as manhãs por mais alguns anos até ver a filha se firmar na escolha profissional. Ali seria sua fortaleza da solidão, como sempre vira em gibis antigos. Ele não se sentia muito bem agora e mais de uma vez precisou de ajuda para superar o momento, mas foi sua filha distante e fugidia quem deu o primeiro passo e ele soubera sempre que o último passo seria o dele.

--Mas papai, vocês deviam reconsiderar.
--O que?
--Tentem pelo menos.
--Já tentamos de tudo. Separados de fato já somos, querida.
--Mas pelo menos terá um lar... Eu terei um.
--Sei que os filhos sofrem muito nesta hora, mas que tal pensar no que será possível daqui para frente? Por exemplo, sua vida. Você já está definindo seus rumos, com sua arte. Pararia tudo agora para ser, por exemplo, para seguir meu gosto, uma dentista de sucesso?
--Não.
--Então porque pede de mim algo que já está escrito em minha mente faz tempo? Veja, vou continuar a ver você, levarei você à escola e irei buscar, quando puder, você das festas, se ainda não for um estorvo, como você outro dia disse sem nenhum constrangimento.
--Não era para dizer aquilo!
--Você sempre diz isso e diz sempre, o mesmo. Isso é algo que você precisa mudar, por exemplo. Deixar de fugir destes conflitos que fazem a vida da gente se desviar. Fugir não adianta e eu não fugi, não entende?
--Como não?
--Eu me separei de sua mãe. Assumo os riscos, mas prefiro viver sozinho a enfrentar todo dia o desafio de tentar ser eu mesmo num lugar que já não me comporta mais. Isso é o que mais me magoa, Helena! Eu e sua mãe sempre soubemos que um dia ia acabar; no fundo somos dois marqueteiros de primeira!
--Posso perguntar uma coisa?
--Sem dúvida.
--Há mais alguém, pai?
--Se houvesse, vocês saberiam de primeira mão. Sua mãe saberia primeiro. Acontece que o que houve é um desgaste... Sei que você tem um namorado que adora você.
--Sim! Vou me casar com ele!
--Tomara! Mas, antes, veja se ele tem o mesmo nível de indagações que você. Ele está preparado a conviver com uma artista? Porque, se eu bem sei, seus quadros já estão por aí: A fama pode ser uma consequência, assim como o fracasso pode arrasar você. Ele sabe disto? Porque nosso erro, o meu e de sua mãe, foi não saber quando parar quando já devíamos, há muito tempo, ter tomado rumos diferentes. Acho que ficamos acomodados e nada teve a ver com você, filha. Fomos ficando juntos e a coragem necessária eu a arranjei agora!
--Já discutimos isso. Ele é mais velho que eu, você sabe. Ele já tem carreira própria e está bem de vida. Acho que a intrusa no caso sou eu!
--Não diga isso a si mesma, pois foi como me senti a vida toda. Um intruso no meio dos intelectuais, um estorvo para a cultura e a sabedoria de sua mãe. Veja, sou um "carcamano" ignorante, estúpido e cruel, que nunca sei parar de falar quando devo.

Foi quando ele soube que ela realmente o amava. Seus olhos marejaram e ela o olhou tão intensamente que o que fizeram foi ficarem olhando pela janela da velha casa, mais de meia hora, calados, ela abraçada nele com a ternura real de uma pessoa ferida pelas circunstàncias
--Então, então. Está bem, você veio me visitar, estou vivo e sobrevivendo, viu? Nada derruba esse grosseiro vilanesco.
--Cale-se, papai. Pare de falar assim de si mesmo!
--Desculpe. Quer tomar um chá?

Mostrou à surpresa filha que sabia preparar um bom chá, naquele domingo em que sua empregada tirava folga. Ele ali podia pegar as verduras com as mãos nuas sem ser censurado e sempre chamava a empregada pelo nome, sem sinos ou intermediários. Era sua gente, era o seu jeito e ele carregaria esta pele até o final que ele mesmo determinaria, vários anos depois. Seus empregados gostavam dele porque era generoso e justo, sempre perguntando como fora o dia e sempre recebendo em troca um amável sorriso em troca. Ele tinha um chofer que era português, que tinha uma origem humilde e uma história para contar que valia um livro, de sua emigração de Portugal com sua esposa ainda grávida, pasmem, para fugir da punição paterna de deserdá-lo porisso. Não fora uma guerra, não fora uma ditadura que o mandara para cá nem um rei interessado nas riquezas de além-mar: fora o temor do pai que o impelira ao continente de seus parentes que já moravam aqui e ele aceitou a praga paterna como um desafio e de emprego em emprego conseguiu erguer a casa com as mãos, num subúrbio da cidade grande e educara seus dois filhos graças ao emprego que ele lhe dera quando soube que em sua empresa trabalhava alguém tão raçudo como ele jamais fora.
Quando ele saiu de casa, manteve o chofer não para si, mas para a filha e seus compromissos e ele se deliciava com o sotaque ao perguntar das atribulações a Alves, seu motorista:

--E então, Alves?
--A senhorinha estava, ora pois, linda! Com um perfume delicado como o de uma flor, ela deixa o carro do senhor uma graça. Trouxe umas amigas, seu Fernando, que eu, Deus que me perdoe e que Maria não me escute de jeito e maneira, mas que são a perdição. Bom, quando levo as três juntas, quando as deixo em algum lugar não é sem uma ponta de ciúme que eu aconselho a tomarem cuidado. Das três, a que melhor se comporta é sua filha. Ela é uma pequena e tanto!

Alves, Alves, seu nariz afilado e comprido, seu bigode fino e bochechas pálidas e seu sorriso de lado a lado deixando os dentes muito alvos e grande expostos em contraste com a boca fina e vermelha de tanto ele morder os lábios, tudo encimado por um par de pequenos e expressivos olhos claros de um tom indefinível entre o verde e o cinza. Ele que o ajudara a fazer a penosa mudança, que seria a penúltima de sua vida de tantas mudanças. Ele se contristou muito quando soube que era inevitável a separação, mas feliz ficou ao saber que continuaria prestando serviços ao casal.

--Está pensando em quê, papai?
Ela o olhava com olhos grandes, sempre inquiridores.
--No Alves. Foi ele que trouxe você?
--Eu ia pegar um táxi, meu carro quebrou, você sabe, e ele fez questão. Foi dar uma volta e daqui a pouco está lá fora me chamando.
--Se quiser, eu a levo em casa.
--Não pai. Não mesmo!
--Tem certeza?
--Claro! Olhe, lá está o murruga! Tchau, carcamano! Nossa, estou cercada de estrangeiros!

A risada de Helena era uma de suas alegrias destes dias difíceis. Uma risada franca, alegre, cristalina, que vinha do fundo de sua alma clara e sábia.Essa foi a primeira vez que o visitou, meses depois da separação e não seria a última.
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