Dentro de sua limusine comprida um homem tem acesso a gelo, uísque e, pasmem, um telefone! Isso mesmo. Eu ali, diante da tela da TV, assistindo a um filme de mocinho e bandido, máfia, dinheiro e mulher. Espionagem, armas, explosões. Não faço idéia de que filme era, nem mesmo me lembro da cara do ator, mas lembro perfeitamente do telefone preto com o fio em espiral ligando-o ao carrão. Eu, criança fascinada. Meu telefone, em casa, cujas ligações não eram feitas com a facilidade e a qualidade proporcionada pelos serviços de hoje. Pouquíssimas pessoas tinham um telefone. Era um bem equiparado a um apartamento, não pelo valor, claro, mas pelo fato de não ser uma coisa que se desvalorizasse com o tempo. E eu fazia parte dessas poucas pessoas que viam chegar a conta da CETEL. Entretanto, para ter um telefone dentro de um carro... Só mesmo numa limusine a caminho da mansão.
Nesse exato instante em que me lembro desse filme, toca o celular. Paro a Belina no acostamento para atender à ligação. E preciso dizer que parei para atender para ser politicamente correto e ensinar como se deve proceder. Na verdade atendi com o carro andando ainda, pois o telefone tem esse poder de furar as filas.
Abro um parêntese para perguntar se alguém já pensou sobre o poder de furar filas que esse aparelho tem. Você pega um ónibus, perde seu tempo deslocando-se até a instituição onde pretende obter alguma informação, paga a passagem, mas vai pessoalmente na ilusão de que será bem atendido. Pára diante do balcão. Quando a recepcionista vai atendê-lo, o telefone toca e seu vizinho, aquele de parede-meia, em casa, com o filho assistindo Pokémon e a mão direita numa bacia de pipocas, chega na sua frente. A recepcionista não conseguirá atender você com o telefone insistindo bem ali do seu lado. E você até concorda que o aparelho deve ter prioridade. Mas se for parar para raciocinar... Você gastou seu tempo, sua passagem ou gasolina, ou até álcool, para estar ali, e outro vem assim, do nada, e passa sua frente? Não deveria ser o contrário? A prioridade não deveria ser de quem está ali, de corpo presente em detrimento de quem está com o corpo ausente?
Mas eu estava parado no acostamento com minha Belina, falando ao celular. Do outro lado, alguém tinha ligado para o telefone fixo da minha casa e me achou ali, dentro do carro. Acho que isso não tinha naquele filme. Maravilha! A consciência dessa maravilha me deixou feliz, hoje. Sonhei com um telefone no carro e tinha esquecido que, hoje, não é preciso estar dentro de uma Ferrari para ser dono de um telefone móvel. Basta um Fusca. Aliás, nem é preciso ser dono de carro algum. E, ainda por luxo, sem fio, o danado. E se você não estiver em casa, o sinal vai atrás e o acha em qualquer lugar!
Estou maravilhado com esse mundo em que estou vivendo. As seringas são descartáveis, a higiene no mundo melhorou, a comunicação é outra, as cabeças são outras. Nos sonhos de um adolescente, hoje, não há a intenção de armar-se cavaleiro e lutar pelo amor de alguma donzela. Aliás, arrumar uma donzela, além de raro, é coisa para se pensar duas vezes. Prefiro a mulher madura, experiente, com a vida ganha, trabalhando fora, de preferência, para ajudar no orçamento familiar.
Escuto música enquanto escrevo e não preciso sujar minhas mãos com penas e tintas e papel escuro. A luz elétrica clareia tudo em volta e há muitos livros para ler com acesso fácil, bem mais fácil do que os manuscritos do mar morto ou quaisquer manuscritos de copistas antes da existência da tipografia.
E quando chego no trabalho, feliz com toda a tecnologia a meu favor; pulando de alegria por estar vivendo num mundo iluminado, comunicativo e participativo em todos os amplos sentidos; quando piso no ambiente em que passarei o resto do dia, aquele sujeito olha sério para mim e diz que hoje está difícil suspirando da pseudodificuldade da vida.
Eu, por dentro, sorrio com vontade de dizer: difícil é morrer, meu amigo. Difícil é morrer...
FAUTH
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