O AMOR ATRAVÉS DOS SÉCULOS-III
Transcrevo aqui uma carta de amor escrita há quase dois séculos. E fica provado que o amor, com suas realizações e seus conflitos, continua o mesmo no coração do homem. Esta é uma carta diferente, ou diferente é a missivista... Ela nos sugere que, mesmo quem se entrega ao amor divino, também se rende ao amor humano. Ela nos mostra a liberdade de ser.
Soror Mariana Alcoforado nasceu em 1640 e faleceu em 1723,em Beja-Portugal. Era uma religiosa que professou no Convento da Conceição, na mesma cidade, tendo sido escrivã e vigária do mesmo convento. Esta carta consta da coleção “Cartas Portuguesas”.
Terceira Carta
"Que será de mim?....e que queres tu que eu faça?...
Vejo-me bem longe de tudo o que tinha imaginado!
Esperava que me escrevesses de todos os lugares por onde passasses; que as tuas cartas seriam mui extensas; que alimentarias a minha Paixão com as esperanças de ainda ver-te; que uma inteira confiança na tua fidelidade me daria alguma espécie de repouso; e que ficaria assim em um estado suportável, sem estrema dor.
Tinha até formado alguns leves projectos de fazer esforços que me fossem possíveis para curar-me, no caso de saber com certeza que me tinhas esquecido completamente.
A tua ausência, alguns toques de devoção, o receio natural de arruinar totalmente a pouca saúde que me resta por cansadas vigílias e tantas inquietações, a escassa aparência dá tua volta, a frieza da tua afeição e doa teus últimos adeuses, a tua partida fundada em frívolos pretextos, mil outras razões mais que boas e demasiado inúteis, pareciam prometer-me um auxílio assaz certo, se me viesse a ser necessário.
Não tendo enfim a combater senão comigo, mal podia desconfiar de todas as minhas fraquezas, nem aprender tudo o que hoje sofro...
Oh! triste de mim! Quanta compaixão mereço, visto não sermos ambos participantes das penas, mas eu só a desgraçada!...
Este pensamento mata-me, e morro de susto de que jamais tenhas sido extremamente sensível a todos os nossos prazeres.
Agora sim, conheço a má fé de todos os teus afectos...
Enganavas-me todas as vezes que me dizias ter sumo gosto de estar só comigo...
Às minhas importunações devo somente os teus desvelos e transportes...
De sangue frio formaste a tenção de me abraçar, e consideraste a minha paixão como um trofeu, sem que o teu coração jamais fosse comovido entranhavelmente...
Não deves tu ser bem infeliz, e ter bem pouca delicadeza, para nunca haver sabido colher outro fruto dos meus enlevamentos?...
E como é possível que com tanto Amor eu não tenha podido fazer-te completamente venturoso?
Lamento, por Amor de ti somente, as deleitações infinitas que perdeste...
Por que fatalidade não quiseste desfrutá-las?...
Ah! se as conhecesses, acharias sem dúvida que são mais sensíveis do que a satisfação de me ter seduzido, e terias experimentado que somos mais felizes, e sentimos qualquer coisa de mais fino mimo em amar ardentemente, do que em ser amados.
Não sei nem o que sou, nem o que faço, nem o que desejo...
Mil tormentos contrários me despedaçam!...
Quem poderá imaginar um estado mais deplorável?...
Amo-te como uma perdida, e modero-me ainda assim contigo, até não ousar talvez desejar-te as mesmas tribulações, os mesmos transportes que me agitam...
Matar-me-ia, ou a não fazê-lo, morreria de dor, se estivesse certa que nunca tinhas repouso, que a tua vida era uma contínua desordem e perturbação, que não cessavas de derramar lágrimas, e que tudo aborrecias...
Eu não me sinto com forças para os meus males, como poderia suportar a dor que me causariam os teus, mil vezes mais penetrantes?...
Contudo não posso do mesmo modo resolver-me a desejar que não me tragas no pensamento, e para falar-te sinceramente, sinto com furor ciúmes de tudo quanto possa causar-te alegria; comover ä teu coração, e dar-te gosto em França.
Ignoro por que motivo te escrevo...
Vejo que apenas terás dó de mim, e eu rejeito a tua compaixão, e nada quero dela;
Enfado-me contra mim mesma, quando faço reflexão sobre tudo o que te sacrifiquei...
Perdi a minha reputação; expus-me aos furores de meus pais e parentes, às severas leis deste Reino contra as religiosas... e à tua ingratidão, que me parece a maior de todas as desgraças...
Ainda assim eu sinto que os meus remorsos não são verdadeiros, e que do íntimo do meu coração quisera ter corrido muito maiores perigos por Amor de ti, e provo um funesto prazer de ter arriscado por ti vida e honra.
Tudo o que me é mais precioso não devia eu entregá-lo à tua disposição?...
E não devo eu ter muita satisfação de o ter empregado como fiz?...
Parece-me até não estar contente, nem dás minhas mágoas, nem do excesso de meu Amor, ainda que, ai de mim! não possa, mal pecado, lisonjear-me de estar contente de ti...
Vivo, e como desleal, faço tanto por conservar a vida, quanto perdê-la!...
Morro de vergonha... acaso a minha desesperação existe somente nas minhas?...
Se eu te amasse com aquele extremo que milhares de vezes te disse, não teria eu já de longo tempo cessado de viver?...
Enganei-te... tens toda a razão de queixar-te de mim... Ah ! por que não te queixas?...
Vi-te partir; nenhumas esperanças posso ter de mais ver-te. e ainda respiro!... É uma traição...
Peço-te dela perdão.
Mas não mo concedas...
Trata-me rigorosamente.
Não julgues os meus sentimentos veementes...
Sê mais difícil de contentar...
Ordena-me nas tuas cartas que morra de Amor por ti...
Oh! conjuro-te de me dares esse auxílio para poder vencer a fraqueza do meu sexo, e pôr termo às minhas irresoluções, por um golpe de verdadeira desesperação.
Um fim trágico obrigar-te-ia, sem dúvida, a pensar muitas vezes em mim...
A minha memória te seria cara, e quiçá esta morte extraordinária te causaria uma sensível comoção.
E a morte não é porventura preferível ao estado a que me abaixaste?...
Adeus!
Muito quisera nunca haver posto os olhos em ti.
Ah! sinto vivamente a falsidade deste senti- mento, e conheço neste mesmo instante em que te escrevo, quanto prefiro e prezo mais ser infeliz amando-te, do que não te haver jamais visto.
Cedo sem murmurar à minha malfadada sorte, já que tu não quiseste torná-la melhor. Adeus.
Promete-me de conservar uma terna e maviosa saudade de mim, se eu falecer de dor; e assim possa ao menos a violência da minha paixão, inspirar-te desgosto e afastar-te de tudo!
Esta consolação me será suficiente, e, se é força que te abandone para sempre, desejara muito não deixar-te a outra.
Dize, não seria nímia crueldade a tua, se te servisses da minha desesperação para, pareceres mais amável, mostrando que acendeste a maior paixão que houve no mundo?
Adeus outra vez...
Escrevo-te cartas excessivamente longas, o que é uma falta de consideração para ti: peço-te mil perdões, e atrevo-me a esperar que terás alguma indulgência para com uma pobre insensata, que o não era, como tu bem sabes, antes de amar-te.
Adeus.
Parece-me que demasiadas vezes me dilato em falar do estado insuportável em que estou.
Contudo agradeço-te, do íntimo do meu coração, a desesperação que me causas, e aborreço o sossego em que vivi antes de conhecer-te...
Adeus.
A minha paixão cresce a cada momento.
Ah! quantas cousas tinha ainda para dizer-te!..."
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FONTE: http://www.npd.ufes.br/textos/texto22.htm
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