Escrevo uma crônica sobre as camisas eternas do futebol e recordo março de 1970. O ônibus da seleção brasileira sai devagar do aeroporto Santos Dumont. Tudo pendente e atrácute;s das janelas escuras vêm os jogadores. Eu estendo um caderninho de anotações. Quem autografa é o jogador Piazza. Guardo ainda esta gentileza. Peço em outra janela. Quem assina é o Paulo César Caju. Tento um terceiro autógrafo. Vejo o nome do Tostão na borda da folha. Quem diria? O craque quase ficaria cego por causa daquela lesão no olho, no entanto, ele me viu, os olhos acompanharam e eles também autografaram o meu caderno.
Pelé devia estar no fundo do ônibus.
Não consigo pensar em Pelé sem o drible no goleiro Mazurkiewicz, na semifinal contra o Uruguai em 17 de junho na copa de 1970.
Imagino como eu poderia narrar aquele lance, que aconteceu tão rácute;pido:
- Tostão vem pela esquerda, lança, Pelé tira o goleiro! A bola se divide...
- O goleiro quis pegar Pelé... pegar uma bola irreal... mas a concreta perdida em campo religa tudo em instantes!
- Pelé chuta! A bola vai pra fora!
- Nada acontece! O mundo é recriado, mas não avança!
Poderia ainda completar:
- O beque Ancheta se lançou no gramado. Ele quis voar! O voo foi possível! A dobra do tempo encantaria, mudaria o mundo...porque era o momento. O estácute;dio sentiu a perda e Pelé não pediu desculpas...
- Cabelos das deusas dos ares entraram nas redes da baliza uruguaia para sentir a leveza de todos os gols! Elas queriam conhecer sua graça, mas o tento não saiu! Esses cabelos divinos aguardarão outra eternidade!
- E um dia os homens anularão a gravidade sem precisar voar em motores e balões!
Seria difícil narrar o drible no tempo exato. Talvez eu dissesse apenas:
- Pelé engana o goleiro, a bola... pra fora!
O vídeo-tape em câmera lenta é insuficiente, porém, algo se definiu para mim: problemas mentais seriam resolvidos se dribles como aquele surgissem para mim uma vez por mês pelo menos...
- Se mensalmente os dribles fossem tão esplêndidos e evidentes e terminassem em gol, nada mais seria delirante para ninguém!
- Eu sentiria uma sensação tão intensa de admiração e dispensaria as pílulas!
- Funcionariam todas as minhas tácute;ticas para o amor !
Fico empolgado com a lembrança, a expectativa e saio. Caminho sozinho por Copacabana. Passo duas horas perambulando, chego à praia do Leme.
- Aprecio o entorno luminoso! Ele é perfeito! Vista daqui onde estou, Copacabana é um gol olímpico!
Volto para casa; antes entro em uma padaria para comprar pão. Hácute; um pôster do jogador Zico na parede ao lado de uma imagem de Nossa Senhora Aparecida. Paradoxos como esse não impedem as possibilidades do futebol:
- Aplico uma bela finta na intermediácute;ria dos meus trinta e quatro anos, depois avanço e chuto cruzado. Quase carimbo.
- Lembro o drible de Pelé que reinventou o vídeo-tape.
Do livro: O Avesso do camisa sete
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