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Artigos-->A Húngara dos Pães -- 24/03/2000 - 11:26 (Vilma Mara Franze Amaral) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


A HÚNGARA DOS PÃES





Fazia pães. Era a sua vida regida por esse fazer. Às cinco horas da manhã, a casa sabia ao odor acre do fermento do pão. A massa descansava, em blocos, sob o peso e falta de luz de grossas mantas. Às dez horas, o lar recendia a pão assado. Cheiro sublime! Às duas horas da tarde, embalava-os, um a um, em papel manteiga. Às três, em ponto, cesto de vime no braço, lenço amarrado na cabeça, saía a húngara a entregar encomendas e fazer novas vendas.



E tudo isso deu a Anna a austeridade involuntária que todo trabalho vital dá. Trazia a limpeza da casa e o cuidado com a formação familiar a punhos de aço. Toda ela podia ser comparada ao próprio pão que fazia. Era compacta, rosada, lisa e simples. Não possuía ambição como os filhos, nem sonhos como o marido, antes trazia a tola inocência do que é grande e leve e sem culpa. Apenas uma executante da vida com crença na justiça do que vive. Essa sua maneira de apenas ser gerava discussões com os filhos. O filho ambicionava dinheiro, folgança, bem viver. Odiava ser pobre. A filha era guerrilheira de causas perdidas, sempre às voltas com as minorias e subqualidade de vida. O marido, esse era um sonhador nato. Saudade da terra natal, como se essa tivesse lhe dado algo. O sonho de um dia voltar. Lia poemas sobre uma vida bela que jamais conhecera. E Anna olhava com a expressão severa e os olhos úmidos de quem ama com condescendência.



Marido e filhos cedo na fábrica em que trabalhavam e Anna às voltas com os pães e a casa. Lavava, diariamente, com água e sabão a casa toda. Secas as tábuas do assoalho passava-lhes palha grossa sob o escovão. Varridas, punha-lhes palmos de cera para depois, pano de lã e escovão, arrancar o brilho desejado. Os forros de mesa e móveis lavados e engomados sempre. As roupas limpas passadas em goma e esmero. Não sabia bordar, nem fazer coisas belas, delicadas. Mas costurava e orgulhava-se de seu cerzido invisível. Pai, filhos e ela mesma, roupas despojadas, mas limpas, sem mácula. Não pensava nada; apenas fazia e fazia bem feito. Criatividade nenhuma, seus pães eram sempre os mesmos: simples, básicos, saborosos. Cobrava preço justo por eles. Tirava o do custo e a sobra, pois lucro não era, metia-a dentro da compoteira azulada, sem planos quaisquer. E Anna era como o são as coisas antigas: sólida, férrea, simples, serena demais.



E com as pernas longas pelo crescimento, os filhos se foram. A filha após ser demitida por encabeçar greve na fábrica. O filho em busca de melhor, material, da vida. O marido deixado com os olhos compridos no longe, mais sonhadores se possível. Ansiava por novas voltas agora. Sem troca de palavras sobre isso. Anna cuidava-o como se cuida de uma criança. E ele lhe era agradecido, amava-a como o fraco ama o forte. Para ela, a delicadeza e sensibilidade do marido eram coisas sagradas, pois não as possuía. Dos filhos não pensava. Eram nada. Não lhes tinha mágoa ou rancor. Apenas não eram mais. Porém, se não eram para a simplicidade de Anna, o eram para a sensibilidade do pai que a cada dia mais se fragilizava. A tosse ininterrupta e comprida, a pele translúcida, os olhos febris, o sorriso bondoso, consumia-se dia-a-dia. Seis anos após a partida dos filhos, ele partiu também, não para a almejada Hungria, mas para longe dos mortais olhos de Anna.



Remexidos os parcos pertences do marido, Anna encontrou uma ou duas cartas, em seis anos, dos filhos. Não lê seus conteúdos, por falta de interesse mesmo. Anota-lhes porém os endereços e escreve notificando a morte do pai. Jamais recebeu resposta. Aceitou isso também, como aceitava as demais coisas. E continuou a lavar, esfregar, engomar e fazer pães. Sentia saudade do marido, de sua leveza e suavidade. Sem ele a vida ficara mais rústica e elementar. Pouco entendia de poesia, mas dera de ler os livros do marido. A assimilação que fez foi a de que perdera a única poesia que a vida lhe dera.



Anos depois, na mesma lida e rigor horário, percebe um leve bater à porta. Abre-a para dar com o filho em ares desajeitado. Deixa-o entrar como se ele nunca se fora. E essa impassibilidade da mãe justifica o filho em seus pecados com ela. Porém é meticulosamente observado em seu comer, beber, mover-se pela casa. A mãe o acha o próprio pai, fisicamente. E isso intriga-a . Nunca o fora. Passa dias tentando, em sua cabeça de simples, entender a perversa semelhança. Essa muda observação, que tanto o exaspera, tem um fim quando ele sofre o acesso de tosse ininterrupta. Anna avermelha, incha seu pescoço grosso de camponesa e tem a revelação que procurava: o filho lembra o pai em morte. Morte! Cresce ameaçadoramente para ele, ergue a mão taluda e estala-lhe as bofetadas. “Você, que não viveu em vida na minha vida, não tem o direito de morrer nela”.



Caído ao chão e em lágrimas, o filho se revela no fraco, sem a dignidade do pai. Antes, o desespero dos que sabem da morte e não a podem aceitar; não para eles. Anna arruma calmamente a valise do filho e abre-lhe a porta, como se ele nunca tivesse voltado. Não sente pena do que ele é ou era. Não estava nela; não estava mais.



E pela manhã, às cinco horas, a casa sabia ao odor acre do fermento de pão. Com às dez horas viria o delicioso cheiro de pão assado, invasivo, aromático, elementar...



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