Nas cinzas do meu espelho, tantos carnavais...
Tudo se findou. Pareço leso e ileso
ao mesmo tempo. Pernas fraquejando e a memória repleta de lembranças boas. Outras
nem tanto. O que fiz ou deixei de fazer ficou para trás. O mundo continuará
no pós Carnaval até o próximo, para tantos. Outros morrerão. Tomara que não
sejam muitos!
Não me lembro
de tudo. Marilia e eu subíamos uma íngreme ladeira em Olinda, quando nos
puseram um pano ao nariz, com delicada força. Acho que apagamos porque
acordamos sob a sombra imensa de uma jaqueira. Ouvia pássaros cantando e
badalos que não me traduziam onde estavam nem que os mexiam. Olhei para Olynda
e ela me disse que estávamos na quaresma. Eu lá queria saber de nada a não ser
onde estava e o que teriam feito comigo. Minha virilha doía um pouco. Tentei
pôr uma das mãos nela, e alguém, por trás, não me permitiu. Olhei torcendo o
pescoço, mas meus olhos não conseguiram enxergar. Mandei que as palavras me
trouxessem a resposta. Quem está por trás de mim? Recebi um abraço fraternal e
um beijo na nuca. Gostei, e em seguida senti um medo estranho e excitador.
Coisa maluca, pensei.
−Queremos
nos divertir com vocês. Não lhes faremos mal algum. Acreditem. Já fizemos boa
parte para o que nos propomos. Pode até parecer uma loucura de Carnaval, mas
representa algo mais interessante.
Vi que Olynda
arregalou os olhos e falou: “são lindos! ” Então seriam mais de um, homens. Bandidos?
Conheci pela pegada firme e o cheiro de pouca higiene. Sudorese intensa e
forte. Meu Deus! Minha saia estava rasgada. Não senti a calcinha no lugar apropriado.
As costas doíam. Tentei levantar-me. Deixaram. Pude ver os três. Um parecia
afeminado. Estava abraçado ao mais alto de todos. Olynda tinha razão, eram
lindos, mas traziam olhos estranhos, arregalados e avermelhados. Pareciam ter
espinhos no solado dos pés, não paravam de levantá-los. Entorpecentes? Pensei
em tudo o que poderia estar de ruim entre eles e o perigo que corríamos estando
ali em tais companhias. Muito medo!
As cinzas
daquele começo de quarta-feira transformaram-se em vivas brasas. Terror à
vista. Gritei. Levei o primeiro tapa na cara. Chamei porra. Era outro, menos
forte, do outro lado, quem havia me machucado.
−
Acalme-se, amiga, tudo se resolverá. Paciência. Eles não nos matarão.
−
Olynda, já fizeram tanto mal com nossos corpos que até´ nossas almas estão
sofrendo. Brasas miseráveis. Paciência? Onde irei arranjar sequer um pouquinho?
Porra, amiga, tu estás é gostando desse inferno. Até desconheço a amiga de
ontem. Deus meu!
A história
começou a ser desvendada.
Fomos levadas
por três marginais vestidos de marinheiros. Confundiram os foliões dizendo que
éramos suas irmãs e tomávamos remédios controlados para sérios problemas
mentais. Os estranhos até os ajudaram a nos pôr no carro, distante de onde
estávamos quase um quilômetro. A sombra pertencia a uma árvore do sítio alugado
ao terceiro, o que achei com trejeitos afeminados. Perguntei o que haviam feito
conosco. O mais alto e mais bonito, belo, respondeu, dentre sorrisos mais que alegres,
o que eu não queria ter ouvido. “ Fizemos o melhor amor do mundo. Quando
perguntei se os três, ouvi que apenas o afeminado havia se deitado comigo.
Cuspi nos pés do narrador e levei um chega para lá nem tão discreto. Aquietei-me.
Não poderia estar dificultando. Era necessário sair viva daquele lugar.
O que poupava
o diálogo era irlandês. Não sabia nem a palavra obrigada em português. Nem feio
nem bonito, mas elegante. Estava menos malcheiroso e desarrumado.
Passava do
meio dia quando pedi água. A ressaca estava mostrando as asas. Olhava para o
homem que havia me usado e sentia vontade de matá-lo e fugir dali com toda a
velocidade que as pernas permitissem. Era inviável. Pedi para conversar com ele
a sós. Desejava fazer-lhe algumas perguntas. Negaram-me! Sempre o mais alto.
Ouvi pela primeira vez a força que o meu tinha na voz. Gritou com ambos em
inglês para que o outro entendesse. E em um balé sincrônico vi as duas cabeças
concordarem. Levantei-me já com a ajuda do terceiro homem. Fomos para outra sombra
próximo da que estávamos. Talvez 100 metros. Outra árvore de tronco ainda maior
Ele sentou-se
entre as que emergiam da terra, duas grossas raízes, e pediu para que sentasse
em seu colo, me acomodasse bem e não sentisse qualquer medo. Não me faria nenhum
mal.
−Como
posso ter essa certeza?
−Minha
palavra.
−Vai,
fala logo!
− O
que queres saber?
Levantei meus
pedaços de saia, vi que da calcinha nada existia e que estava com as carnes
doidas. A vagina não me incomodava. Cheguei a pensar que não havia me estuprado.
O que você fez comigo?
−
Amor. Muito amor. Fui delicado. Não sou hetero. Fiz com você sem causar nenhum
trauma.
−
Quer dizer que eu fui usada por um veado?
−
Calma. Nunca me relacionei com ninguém do mesmo sexo. Por isso tento me
relacionar dessa forma para descobrir o que sou. Quebrei as portas do meu
armário e as joguei no mar. Procuro decidir-me. Gostei demais de fazer amor com
você. Gostaria de namorar e casar. O que
me diz?
O homem meio
veado, meio homem era um empresário bem-sucedido em Dublin, onde residia há
quase 25 anos. Estava de férias no Brasil. Sua família era de Bauru, São Paulo.
Quando lhe indaguei sobre que qualidade de sexo havia feito comigo, a surpresa
foi ainda maior. A droga que me fizeram inalar, era um sonífero de ação curta
que provocava uma amnésia em cerca de 3 a 4 horas. Eu estaria normalíssima na
relação e o tempo todo o chamei de Hércules, o nome do meu último namorado.
Havíamos rompido o namoro pelo fato de eu ter vindo com minha querida amiga
Olynda para Olinda afim de brincar o carnaval.
Muito surreal
para meu gosto. Não sabia como agisse. Se desse um chute nos seus testículos ou
se pedisse para repetir a experiência.
Ouvi um grito.
Ele disse que eu não olhasse para trás. Curiosa, quis saber o porquê, ao que me
respondeu: ” logo você saberá. Sua amiga adorou o irlandês. Pedi que ele me
beijasse. Foi o melhor beijo que recebi em toda a minha vida. Pedi o resto.
Avançou sobre meu corpo com uma volúpia invejável. Era uma pluma. Fui ao êxtase
e pedi que repetisse tudo.
Carnaval, um
pouco mais do meio-dia da quarta-feira de cinzas. Imaginei-me à frente de um
enorme espelho. Me vi nua, alegre e farta de amor, após ter sido sequestrada
por três desconhecidos em pleno carnaval de Olinda, ao lado de Olynda, feliz e
já a sentir saudades dos dias que passaram rápidos demais. E minha resposta,
qual deveria ser? Claro que um não, bem dado. Depois de um lindo carnaval,
outro, tétrico? Levantei-me e pedi para ir-me. Para aonde?
−
Ao inferno!
−
Avise aos meus que estou morando na Irlanda. Vou viver com Rush e Fernão.
Gostei de tudo o que vi e senti, até do jeito que nos raptaram. Excitante. Mas
colocaremos você no hotel, eles pagarão tudo e você voltará caladinha para não
os prejudicar com a PF.
−Imunda.
Jamais pensei que poderias ser tão promíscua. Desato, agora, nossos laços de
amizade. Que você seja muito infeliz!
−Pois
o que te desejo de todo o coração é que arrumes outra amiga que se deite faça
um sexo tão bom contigo quanto o que fazíamos.
−Cale-se!
Quatro anos
depois eles retornaram ao Brasil. Dessa vez para São Paulo. Não nos
correspondíamos. Casei com o Arthur, com quem vivo infeliz até hoje, mas
construindo uma desenhada personagem de invejável verdade. Às vezes nem sei
quem estar vivendo, se ela ou eu. Está bom assim. A vida é mesmo um louco
carnaval. As máscaras nos conduzem aos frevos. Amar faz bem. Muito bem, mesmo.
O pequeno
diálogo que tive com os três foi porque Olynda gritou do lado de fora do
estacionamento de um shopping: matasse ele, viu?
E com muita
tristeza pude saber que o tal afeminado com quem me deitei, após tatuar o corpo
inteiro com o meu nome, suicidou-se. Aí minha vida passou a conhecer meu
terceiro carnaval. Senti um frevo horrível na alma. Olynda não estava mais em
Olinda, mas sim, em Dublin, de férias, tirando o meu juízo para retornar a
fazermos as estripulias do ontem. Estava viúva. Essa foi a razão da ida de
minha amiga até a Irlanda! |