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Contos-->Árvore Chorona -- 17/09/2019 - 19:12 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Este conto começa com uma certa chuva em plena seca numa certa cidade interiorana de certo país provinciano e certamente atrasado. Vocês hão de convir que às ficções se somam realidades absolutamente inverídicas e os fatos podem estar distorcidos, fatos que se tornam pouco verificáveis em tempos de distorção de informações. Cada fato que se propaga vira um factoide que gera comentários que se tornam realidade vívidas, de modo que o contínuo do tempo-espaço se altera. Se você quiser continuar lendo, tem de ter em mente que a maior velocidade que conhecemos, além da velocidade da luz (que limita o homem ao seu sistema planetário) é a da mentira. A mentira se propaga como fogo em mato ressequido, à guisa de uma guimba de um cigarro para incendiar Maracanãs inteiros. A mentira vira verdade para certas pessoas e em certas situações, ela move montanhas. A mentira move morros de lugar, muda cidades inteiras, arrasa países e faz o mar virar terra e até inunda as áridas plagas que aqui descrevo. Aliás, não descrevi nada ainda; a cidade em questão amanhecera mais seca que de costume. As mulheres, já de manhãzinha, se abanavam com leques e punham nos pescoços panos molhados para aliviarem o cansaço da noite mal dormida, tal era o bafio que as incomodara (mais do que os maridos roncadores ou dos insistentes na luxúria). Os galos haviam acordado cedo de modo incomum. Já cacarejavam e ciscavam seus terreiros, à cata de comida e de parceiras.

Acontece que dona Maria, entrada em anos, ia ao curral pegar o leite de sua vaquinha. Dona Maria, muito religiosa, punha o terço nas mãos e orava para seus santos para mandarem mais água, que esta não vinha faz tempo ali. Ela via sua horta murchar e chegava a beber menos água para que sua leiteira prosperasse: generosa dona Maria! Lá ia com seu balde, um pano para enxugar as sobras e a testa. Mas, esperem: Que ruído era este? Parecia...Chuva...Ou eram gotas grossas que pingavam? Bah, bobagem, pensa Maria. Prossegue seu passo claudicante, pisando em galhos secos e folhas amarelecidas de ipês que ameaçam florir, pois que já estamos em plena estação esperançosa.

Novamente, um gotejar! Ou seria um rastejar?

--Vem cá que acabo com tua raça, cobra! Demonho! Te tiro a pele!

Maria já duvida do que ouve à sua direita. Mas caem gotas espessas! Elas vêm do alto!

--Arre, que eu não sou nem surda e nem louca. A vaca que espere, oras.

Ela desvia seu rumo para debaixo da paineira que serve de abrigo ao gado que se dispersa nos campos pedregosos da região e enxergam na sombra poderosa um suave refúgio, de quebra suprindo de esterco a horta de Maria. Ela vai em direção ao Pau-cigarra, que ajunta nos dias de verão um berreiro que precede as chuvas escassas; quem sabe? Seus chinelos de couro puído se arrastam devagar agora, pois as gotas caem ali. Certeza, ela olha e vê incrédula que no alto da copa da árvore, pequenas nuvens se adensam e de lá a água cai em grossas gotas, molhando o mato em torno e abaixo do tronco. Dir-se-ia que a árvore chorava!

--Minha Nossa Senhora!

Ela pega o terço e reza sua Ave-Maria e seu Pai-Nosso, porque ninguém consegue ver uma árvore que chora e passa ileso por isso. Um milagre é um milagre e pronto! Acabou-se! Ela passa as mãos no mato úmido e comprova que as lágrimas sagradas vêm daquelas pequenas manchas brancas como neve. Persigna-se, comove-se e junta as suas lágrimas à da árvore sofredora...Acalenta sua alma sofrida à lenta presença de sua companheira de tantos anos e verões.

Se você chegou até aqui, vai querer saber da vaquinha que muge no estábulo, túrgida de leite que podia ser dos bezerros, mas é de Maria. Ela já rezou o que podia e vai tirar o leite da gemente. Tira quase um balde inteiro e se benze mais porque até a vaca resolveu dar mais de si! O que dirá seu marido?

Carrega o balde pesado, mas a alma lhe vai leve, porque tem de contar ao esposo da sua ventura: Uma árvore que, triste com a seca alma dos homens, pranteia a falta de fé de tantos e a caridade de tão poucos para tamanha humanidade.

--Árvore que chora? Gelo nos galhos? Ficou perturbada, mulher? Andou lendo os livros errados?

--Mas, meu velho, juro pelos nossos filhos. Se quiser ver, verá. Quem tem olhos de ver sabe que eu digo a verdade (e o terço lhe é testemunha disso).

--Bobagem. Nossos filhos já vão longe, uma mais distante do outro; jura por eles, Maria?

--Juro.

--Então vamos lá de novo!

Os quatro pés caminham em uníssono e os quatro braços se erguem com as quatro mãos, louvando a planta milagrosa. Estava lá: Um gelo, dois gelos, uma névoa nas pontas dos galhos e a água que tanto lhes faltava gotejava em grossas pancadas no chão compacto de poeira e argila, seco de tanto sofrer.

--Milagre!

--Pois é mesmo, uai!

--Temos que avisar o padre.

Logo, de dois braços, quatro se somaram a oito e mais dezesseis a trinta e dois: Todos apontavam a árvore que chorava o infortúnio dos dias atuais. A água enchia xícaras e pequenos baldes que Maria jogava nas hortaliças e ainda dava de beber à vaca que produzia mais leite.

--Arrependei-vos, pecadores! Até uma árvore pode chorar para remir vossos pecados, como Jesus expiou na cruz tanta ignomínia!

--Padre, vejo lá nas alturas...Não é a Virgem Santíssima?

Nesta altura, os olhos veem até o que os outros creem ver, de modo que lá estava Maria, apontando os galhos chorões e avistando, em sua santa humildade, os pezinhos da Virgem Santa espargindo a água de sua Santidade e infinita tristeza; não era ela que anunciara as profecias que se cumpriam à risca, menos a terceira? Seria aquele um sinal da Virgem Imaculada ao seu povo sem fé?

--Vejam aqueles que querem ver e comprovar, é a Virgem que chora água benta sobre os fiéis! Arrependei-vos, ó homens de pouca fé!!

Sob a árvore, foi colocada uma pia batismal e vinham fiéis de longe para batizar suas crias nas pias águas que vertiam dos olhos de Santa Maria; Gente de muito longe vinha bater na casa de Maria e Ramiro (era o nome do marido dela). Claro que sua chácara ganhou notoriedade, porque ali estava a árvore sagrada benzida pelo padre e que vertia as águas do céu para o povo sofredor.

Acontece que ali perto moravam uns vizinhos, como é de se supor porque senão as terras não seriam habitadas se Deus assim quisesse fazer o mundo árido de águas e pessoas. Os vizinhos são um mal necessário, mas não tanto. Francisco era laborioso e atarracado; tinha um par de filhos que, atraídos pelas notícias e espertalhões que eram, vinham tentar aquinhoar algo em troco daquela abençoada fé vegetal. A eles, claro, interessava aumentar o patrimônio dos bolsos à custa do patrimônio celestino. Os dois chegaram à cidade disfarçados de camponeses, misturados à multidão que rezava. Um deles se dizia cego e o outro, sabedor de sua falsa escuridão, alimentava a própria ao afirmar ser um pregador e que, através de suas preces e à custa das águas sagradas, quem sabe curaria a cegueira do farsante; Mal sabia o pai deles que havia alimentado um par de escroques.

--Pela santa fé do senhor, eu digo que curarei este homem da cegueira!!!!

O irmão contorcia-se em falsa cegueira, que naquele momento era verdadeira como a de Saulo próximo a Damasco na cabeça dos pobres fiéis; abismados eles viram que, passando um pouco da água ungida nos olhos do pobre esfarrapado, eis que este se ergueu urrando:

--Eu posso ver! Eu posso ver!!!

Prostravam-se as mulheres chorando; as mulheres mais jovens desconheciam aqueles dois, mas uma delas duvidou decerto. Os homens tiravam os chapéus e olhavam a árvore que chorava, agora ainda mais porque realmente triste ficava com tanta maestria da mentira malfadada que os dois espertalhões pregavam na multidão confrangida.

O milagreiro e o curado estenderam os chapéus e encheram-nos de dinheiro. Era o dízimo que levariam à Igreja do padre para as melhorias.

No dia seguinte, à mesma hora, lá estavam os dois, desta vez o curandeiro apontando ao falso aleijão que manquejava aos pés da árvore; eis que gritou:

--Em nome da Santa Árvore, eu te curo!

Caíram as muletas no chão e gritou o farsante:

--Eu posso andar!

Novamente a coleta foi farta. Tinham feito um bom pé de meia os poltrões e contavam as moedas rindo da ignorância daquele povo que lhes pagava o dízimo sem saber se iam mesmo dar ao padre tanto dinheiro. Todos lhes acreditavam, menos aquela que duvidara. Madalena foi ao padre perguntar se conhecia os milagres que traziam tantas bênçãos à Igreja, com tanto dinheiro que ia dar para comprar outra igreja, talvez até a Santa Sé...

--Que dinheiro? Que milagres? O único que conheço e reconheço é o choro de Nossa Senhora nas pontas de nuvens da árvore que pranteia nossos pecados...

--Não recebeu nada, padre?

--Não. A fé pode mover montanhas, mas aqui não entrou nada; nem esmolas nos trazem mais aos pobres...

Corajosa que sempre foi, Madalena fez jus ao nome: No dia seguinte, viu chegar o falso milagreiro e antes que o outro pudesse fazer qualquer coisa, ela se prostrou ao chão e, como uma gata no cio, começou a se esfregar no santarrão. Dizia-se possuída pelo demônio e queria que ele a curasse. O outro, assustadiço que só, já batera em retirada, deixando o desconfiado irmão a bater-se com a formosa Madalena, que só faltava lhe arrebatar a manta, deixando ver que até santo tem limite pois que ele já se sentia elevado às alturas da paixão da carne pelas carnes bem nutridas de Madalena...

A multidão, vendo que a possuída queria fazer-se possuir sem remédio algum do milagreiro falso, deu com as mãos em pedras e paus e , no momento mais triste que viu a árvore chorona, apedrejou o infeliz que saiu troncho e sangrando mas vivo, em corrida que o alijou da cidade, ainda por cima sem o irmão que, malandro, levara a rapinagem toda embora para paragens mais carinhosas...

O pai do filho pródigo sapecou-lhe um tabefe, aumentando o inchaço do rosto deformado de pedras e vergonha. Veio assim, foi-se embora, com jura secreta de matar o irmão Abel, que agora ele, em falsa fé, chamava de Caim.

O padre, preocupado com a repercussão do caso, mandou tirar a pia batismal. As águas que vertiam da árvore começaram a mirrar. Os fiéis batidos de cansaço de esperar uma das lágrimas de Santa Maria e sedentos de outras águas, rareavam. Dispersavam-se os homens, persistiam os santos acima das nuvens.

Enfim, veio o dia em que a árvore secou de vez seu pranto; o que se deu foi o verdadeiro milagre, porque as cigarras vieram anunciar as chuvas que deveriam cair e tanto demoravam! As cigarras, do alto de sua árvore, anunciavam potentes a chuva que alimentaria os prados, as vacas, os bezerros, os porcos, o mato seco, os córregos e as nuvens...

Com o aguaceiro, vieram os trovões e os ventos, a umidade e o refresco dos rostos banhados de suor e lágrimas.

Maria viu os relâmpagos do estábulo.

Pegou o terço e agradeceu, porque, aí sim, Santa Maria chorou a cântaros.

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