Contabilizando desejos
Foi com um certo pesar que Rubem
Moura, contador do Banco Cruzeiro, explicou ao Conselheiro representante dos funcionários
no Conselho de Administração que não poderia contabilizar uma antiga
reivindicação dos empregados de obter um aumento dos benefícios de
aposentadoria pagos pelo Fundo de Pensão patrocinado pelo Banco. A
contabilidade não registra desejos, ela registra fatos. E o fato somente
poderia ser registrado na contabilidade do Banco quando e se assim decidido. Se
fosse um erro, ou uma contingência, poderia ser feita uma provisão, mas algo
que ainda não havia acontecido não poderia ser registrado. Os fatos devem ser
registrados no período a que competem.
Embora enfático nos seus argumentos, Rubem não conseguiu
deixar de pensar no assunto. Será que desejos não podem mesmo ser
contabilizados? Quanta coisa é contabilizada. Por que não desejos? Resolveu se
aprofundar na matéria. Poderia elaborar um “Tratado da contabilização de
desejos”. Pensou na repercussão que isso teria: “Rubem Moura, o contabilizador
de desejos”.
Mas vamos aos fatos, ou melhor, aos desejos. Que são
desejos? “Querer algo com veemência”, “vontade de obter alguma coisa ou de
desfrutar de algo”, “anseio”, “aspiração”. Mas isto se encaixa nas regras
contábeis? O que pode ou deve ser contabilizado? As regras são claras: tudo que
afeta ou existe o risco de afetar o patrimônio da empresa deve ser
contabilizado. Desejos podem afetar o patrimônio da empresa? Sim, se e quando
atendidos. Então o desejo, enquanto simples desejo não pode ser contabilizado,
mas os desejos realizados podem. O tema guarda certa semelhança com o Capital a
Realizar. Enquanto não realizado não afeta o patrimônio da empresa. Quando
realizado afeta, pois há ingresso de recursos, que são aplicados pela empresa,
Bem, então os desejos, para serem contabilizados, devem
ser realizados? Sim, respondeu a si mesmo Rubem Moura. E deu um passo adiante
no raciocínio: realizemos os desejos, pois. Sentiu-se um deus, um realizador de
desejos e, por conseqüência, um contabilizador de desejos.
Na sua nova fase, Rubem Moura passou a prestar maior
atenção ao que acontecia à sua volta. Começou a aguçar o seu ouvido para
escutar o que conversavam os funcionários do Banco.
Ouviu de Humberto que ele gostaria de ter um aumento
salarial. Rubem Moura alterou o salário do funcionário, alteração que provoca
uma mudança na situação patrimonial da empresa e como tal deve ser registrada.
Desejo manifestado, desejo realizado, desejo contabilizado.
André, funcionário de Rubem Moura, andava suspirando de
desejo pelos cantos, apaixonado que estava pela Rita, também funcionária de
Rubem. Como contabilizar esse desejo? Era preciso desdobrá-lo em vários fatos:
compra de roupas para o André ficar mais elegante, compra de um buquê de flores
para envio à Rita, gastos com restaurante e teatro, enfim, dar condições a
André de conquistar o amor de Rita. Gastos efetuados, desejo realizado, desejo
contabilizado.
Rubem Moura ouviu do Diretor Financeiro; “gostaria de
pagar menos impostos”. E por que não?, pensou o Contador. “Seu desejo é uma
ordem, meu caro Diretor”, continuou pensando. E lá foi ele modificar as
planilhas de cálculo para apurar menos imposto, pagar menos e contabilizar
menos. Mais um desejo contabilizado.
E assim continuou Rubem Moura, contabilizando desejos.
Mas ele queria contabilizar um grande desejo. Resolveu então atender o desejo
daquele Conselheiro de Administração, registrando o desejo de todos os
funcionários de terem ampliados os benefícios de aposentadoria. O Patrimônio
Líquido do Banco sentiu o impacto.
O Diretor Financeiro, vendo o estrago no balanço do
Banco, chamou Rubem Moura.
-- Rubem, de onde você tirou fundamento para registrar
essa provisão de quinhentos milhões de reais para suportar um aumento dos
benefícios de aposentadoria para nossos funcionários?
-- É o desejo deles, senhor.
-- E desde quando desejos são contabilizados?, Rubem.
-- Desde há alguns meses atrás, quando cheguei à
conclusão que desejos não só podem, como devem ser contabilizados.
-- Você só pode estar maluco, Rubem. Que outros desejos
você contabilizou?
-- Lembra quando o senhor disse que gostaria de pagar
menos imposto?
-- Lembro. Na ocasião, determinei ao Departamento
Jurídico que intensificasse os estudos e as ações de planejamento tributário
para que fosse possível uma redução dos impostos, Fiquei satisfeito quando isso
aconteceu.
-- Não foi planejamento tributário, senhor. Foi seu
desejo que contabilizei, falou Rubem.
-- Rubem, Rubem, isso não é contabilização de desejos.
Isso se chama fraude contábil, sonegação fiscal, e você deveria saber disso.
-- Fraude contábil?, senhor. Como pode ser? Estou fazendo
isso com a mais nobre das intenções. Capto os desejos das pessoas, realizo-os
e, obviamente, por afetarem a situação patrimonial do Banco, contabilizo-os, o
que é minha obrigação, como contador do Banco.
-- Chega, Rubem. Você agora irá contabilizar desejos dos
loucos ou dos presos, dependendo para onde você for, se para um hospício ou
para uma prisão. Meu desejo agora é que você suma daqui. Realize-o para
mim. Mas, por favor, abstenha-se de
contabilizá-lo. |