Carta
encontrada no bolso de um suicida
Estou
novamente em Passo Fundo, para participar de mais uma Jornada Nacional de
Literatura, depois de receber o convite, por telefonema, no início do ano, da
Coordenadora das Jornadas, Tania Rösing. O mestre de cerimônias faz a apresentação
inicial:
– Prezados participantes da 17ª Jornada Nacional de
Literatura de Passo Fundo. É com prazer que damos início a mais uma sessão da
nossa Jornada. O tema de hoje é “Escritores suicidas”. Nosso conferencista convidado
é o escritor, jornalista e ensaísta Josué Palácios. De imediato, passo a
palavra a ele.
– Boa noite, caros amigos. É com grande satisfação
que volto a esta maravilhosa cidade para participar mais uma vez deste
prestigioso evento, embora o assunto seja um pouco espinhoso. São incontáveis
os casos de suicídio entre os escritores, pelos mais variados motivos. Cito
alguns aqui rapidamente, para exemplificar o que digo: Ernest Hemingway,
Horácio Quiroga, Virginia Woolf, Walter Benjamin, Silvia Plath, Antero de
Quental, Cesare Pavese, Pedro Nava, Jack London, Maiakovski, Malcolm Lowry,
Camilo Castelo Branco, Primo Levi e muitos outros, dentre os quais ainda
destaco Heinrich Von Kleist, Arthur Koestler e Stefan Zweig, que além deles,
ainda arrastaram suas respectivas esposas para a aventura fatal. O caso do
escritor austríaco Stefan Zweig é notório entre nós brasileiros porque se deu
na cidade de Petrópolis, estado do Rio de Janeiro. Podemos tomar conhecimento
da sua história lendo o magnífico livro “Morte no Paraíso”, de Alberto Dines.
Embora normalmente sejam terceiros a escrever sobre os suicidas (obviamente, só
escreve quem está vivo), há escritores que escrevem sobre o próprio suicídio (a
ocorrer), como é o caso, por exemplo, de Henri Roorda, que, com uma sinceridade
profunda, discorre sobre as razões da sua vida e da sua morte, no seu livro
“Meu suicídio”.
Mas não é sobre nenhum desses escritores que vou
falar hoje para vocês. Vou falar sobre um suicídio que me tocou mais de perto:
o do escritor Carlos Alfredo Pontes, hoje conhecido de vocês pela publicação
póstuma do livro “A falha evolutiva”, best-seller mundial, em que é narrado o
estranho caso de um ser humano que vive sob as condições sociais dos dias de
hoje, mas que carrega nos seus genes instintos primitivos e ancestrais.
Carlos (como vou nominar simplificadamente o escritor
daqui para a frente em meu pronunciamento), no dia em que se matou, atirando-se
do 10° andar de um prédio de escritórios do centro de Brasília, carregava com
ele uma carta dirigida a mim. Ela foi encontrada no bolso do seu paletó por um
dos bombeiros que tentaram socorrê-lo e posteriormente encaminhada ao legítimo
destinatário, eu, com as explicações de como fora encontrada.
Isso
ocorreu em setembro de 2013, há quatro anos, portanto. Não é de se esperar que
um suicida se preocupe em inventar nomes para os verdadeiros escritores citados
por ele em sua carta derradeira. Realmente, não. Ele cita todos eles com o seu
nome real. De minha parte, também não vou esconder o que Carlos quis revelar.
Aliás, farei melhor. Para que nada se perca, vou ler a carta na sua íntegra. É
a primeira vez que trago o seu conteúdo completo a público. Creio que chegou a
hora e o tema desta conferência ajusta-se perfeitamente ao que vou lhes contar.
Além disso, Carlos era participante assíduo destas Jornadas de Literatura,
desde 2001.
“Prezado Josué Palácios
Estive na 15ª Jornada de Literatura de Passo Fundo,
no final de agosto/2013, onde tive a oportunidade de assistir ao debate em que
você participou e de receber seu autógrafo no livro “Ao abrigo da luz”. Talvez
você se lembre de mim: meu nome é Carlos e, respondendo a pergunta sua sobre o
que eu fazia, disse-lhe que fora Contador da London Seguros e que agora estava
tentando contar histórias. Você me disse: ‘Como assim, tentando contar
histórias?’ Disse-lhe que estava escrevendo contos e que participara do
Concurso de Contos Josué Guimarães, cujo resultado fora divulgado na cerimônia
de abertura da Jornada. Somente quatro autores foram contemplados e eu não
estava entre eles.
Embora com pouca expectativa (sei que os escritores
são sempre muito ocupados), tinha a esperança de que você se interessasse por
mim e por minhas histórias, mas você calou-se e eu saí cabisbaixo com o livro
autografado debaixo do braço. No meu retorno ao hotel, rememorei todas as
tentativas anteriores que fiz com outros escritores para chamar a atenção para
o que escrevo. A frustração fez-se sentir em todo seu ímpeto. Lembrei-me também
das tentativas que fiz em outras áreas artísticas, na música, na pintura e que,
também, não tinham dado certo. Já tinha investido muito em livros e em
literatura para tentar alguma outra coisa. Nessas horas não há como não pensar
em fugir, em sumir e, por que não, em morrer. Afinal, com a morte, acabam-se
todas as ambições.
A ideia passou a me fazer companhia nos dias
seguintes e cada vez com mais intensidade. Lembrei-me do escritor romeno Panait
Istrati que havia tentado o suicídio em janeiro de 1921, com um golpe de faca
em sua garganta. Junto com ele fora encontrada uma carta endereçada ao escritor
francês Romain Rolland. O Hospital de Nice, onde Istrati estava sendo tratado,
com poucas possibilidades de recuperação, encaminhou a carta a Rolland, que
depois escreveria: ‘Li, e fui tocado pelo tumulto do gênio; um vento de fogo
sobre a planície. Era a confissão de um novo Gorki dos países balcânicos.
Conseguiram salvá-lo. Quis conhecê-lo; iniciamos uma correspondência.
Tornamo-nos amigos. [...] É um contista nato, um contista do Oriente, que se
deleita e emociona com os seus próprios relatos, e tanto se deixa embalar pelo
seu encanto que, quando começa uma história, ninguém sabe, nem ele próprio, se
ela durará uma hora ou mil e uma noites. [...] Convenci-o a escrever uma parte
das suas recordações; e ele iniciou uma obra de grande vulto’.
Panait Istrati encontrou o seu benfeitor, o mesmo
que, anos mais tarde, em 1942, lamentaria o suicídio de seu amigo Stefan Zweig,
no Brasil. Tem escritores que incorporam em sua filosofia de vida a ajuda a
escritores iniciantes, ainda que isso lhes tome uma parte do seu tempo. Mas eu
não tive a felicidade de encontrar meu benfeitor. Estou só e minha escrita está
sem vida, porque escrita sem leitura é escrita desconhecida, é inútil, é
escrita morta. Que morra também, então, o seu autor.
O escritor romeno falhou em sua tentativa de
suicídio. E foi sua redenção. Eu não falharei. Nem saberei se poderia ter uma
redenção ou não. Mas quis deixar, a exemplo dele, uma carta contando as minhas
venturas (quando escrevia cartas a escritores) e desventuras (quando não
recebia resposta ou recebia resposta insatisfatória). Não tive motivo especial
nenhum para escolher você, Josué, como destinatário de minha carta, a não ser
pelo fato de ter sido o último escritor em quem depositei minhas esperanças.
Por isso, não lhe cabe nenhuma responsabilidade pelo meu ato. A culpa é toda
minha, que espero das pessoas mais do que elas podem me dar. Demasiadamente
impaciente, conforme disse Stefan Zweig no seu texto de despedida, vou-me
embora antes.
Comecei a escrever há cerca de duas décadas, quando
eu estava com quarenta anos, portanto, logo após separar-me de minha primeira
mulher. Como gostava muito de ler, passar a escrever foi um passo natural. Além
disso, tive alguns estímulos iniciais que pareciam indicar que eu estava no
caminho certo. Conforme comentei antes, eu trabalhava numa companhia de seguros
e, como a Superintendência de Seguros Privados realizava periodicamente um
programa chamado “Talentos Seguros”, em que os empregados das empresas sujeitas
a sua supervisão poderiam inscrever textos literários, enviei, em várias
oportunidades, alguns poemas e contos, que foram selecionados e publicados.
Todavia, ao longo desse tempo, participei de vários
concursos de contos, sem nunca ter meu nome entre os vencedores.
Sempre que surgia uma oportunidade, eu procurava
escrever para escritores que eu tivesse tido algum contato ou para aqueles
autores de livros que eu acabara de ler, comentando sua obra. Fazia isso com
muito cuidado. Embora meus comentários fossem sinceros, esperava com isso
atrair a simpatia do escritor para o que eu escrevera. Enfim, queria que minhas
próprias cartas fossem consideradas obras literárias, queria que o escritor
procurasse saber mais sobre mim e se propusesse a ler também meus textos, sem
que fosse necessário eu pedir de forma direta e abusiva. Queria que, além do
leitor, fosse visto o escritor. Às vezes escrevia também criticando aquilo com
o que eu não concordava.
Não vou falar de todas as cartas que escrevi, mas de
algumas, sim. Quero lhe dar a idéia do que eu escrevia e de como me envolvia.
Em 2001 escrevi para Marina Colasanti:
‘Fiz o curso O
processo de criação literária: a narrativa com você em Passo Fundo (RS).
Talvez você lembre-se de mim: sou o senhor de óculos e cabelos brancos que
sentou na primeira fila, à sua esquerda, no local do curso. Eu disse que era
contador, ao que alguns perguntaram; ‘Contador de histórias?’. Não, trabalho
com contabilidade, respondi.
Moro
em Brasília, isso eu não havia falado. Gostaria de participar da sua Roda de Leitura, mas infelizmente não
posso. Minha filha Ana Maria, estudante universitária de Letras, está sendo
portadora deste bilhete e de um texto que estou escrevendo sobre a Jornada
Nacional de Literatura em Passo Fundo. Achei o evento maravilhoso.
Como
cito você no texto, tomei a liberdade de enviar-lhe uma cópia. Infelizmente,
não consegui acabá-lo a tempo (até a data da roda de leitura). Decidi entregar
a você mesmo incompleto. Mas pretendo concluí-lo.
Um
abraço
Carlos’
O
texto que enviei chamava-se Passo Fundo
de Todas as Letras. Nele, eu discorria, em ordem alfabética, sobre cada
tema que envolvia a Jornada Nacional de Literatura. Assim, falei sobre Abertura, Arte, Autógrafo, Biblioteca,
Circo, Conto, Cultura, Cursos, Debate, E-book, Escritores, Eu e muito mais.
Para exemplificar, transcrevo o que escrevi sobre os verbetes Cultura, Eu,
Leitura (parte) e poesia:
‘Cultura
Esses
quatro dias em Passo Fundo foram só cultura. Respirei, comi e bebi cultura.
Tomei uma vitamina concentrada de cultura, tomei um pileque de cultura, tomei
uma injeção na veia de cultura. Era cultura transbordando por todos os lados. Ideias,
debates, trabalhos, artes, literatura, conversas, cursos, eventos, recitais,
espetáculos, shows, tudo fazia parte de um tratamento de choque aos pouco
acostumados em ver tanta cultura ao alcance das mãos.’
‘Eu
Eu fui. Eu estive lá. Eu vi. Eu participei. Eu falei com
os escritores. Eu comprei livros. Eu li. Eu colhi autógrafo. Eu fiz um curso.
Eu ouvi. Eu me emocionei. Eu aplaudi. Eu aprendi. Eu voltei para Brasília. Eu
estou escrevendo este texto. Eu quero e vou voltar a Passo Fundo, para a
próxima Jornada.’
‘Leitura
Ler
não é somente ver os símbolos gráficos formando palavras, frases, parágrafos,
páginas, capítulos, livros. Ler é compreender, é interpretar o que o autor está
dizendo, é fazer associações com os conhecimentos que já dispomos, é criticar,
é ter ideias novas, é querer ler mais, sempre mais. A leitura tem esse fator
multiplicador: a leitura de um livro puxa a leitura de outros livros e estes de
outros, numa corrente sem fim. É uma corrente da felicidade que nunca será
quebrada, pois só depende de você.
Poesia
Segundo
Shelley, “a poesia é o registro dos melhores e mais felizes momentos dos
melhores e mais felizes espíritos... Os poetas são os legisladores não
reconhecidos do mundo”. Ferreira Gullar, em entrevista ao Jornal do Brasil de
04.11.2000, disse que “a verdadeira poesia é aquela que comove, que desce fundo
na alma dos outros. Porque a poesia não quer ser conceito, quer ser vida.
Quando deixa de ser vida para ser conceito, deixa de ser poesia”. J. M. Coetze,
por meio do personagem David Lurie, do romance “Desonra” diz “... na minha
experiência a poesia nos fala à primeira vista , ou não fala nunca”.
Eu e minha pretensão fizemos o seguinte poema, que
pretende ser um dos meus melhores registros sobre Passo Fundo, que pretende
mostrar vida e que fale à primeira vista, em consonância com as vozes
iluminadas de Shelley, Ferreira Gular e Coetze (Agora entenderam por que minha
pretensão foi co-autora do poema?):
Passo Fundo
No fundo
É um mundo
Fecundo.
Escritores
Professores
Contistas
Cronistas.
Poetas
Exegetas
Narradores
Leitores.
Entretidos
Envolvidos
Examinando
E
falando.
Todos
juntos
Os
assuntos
Literatura
E
leitura.
Vários poetas estiveram na
Jornada, entre eles Carpinejar, Ricardo Silvestrin, Affonso Romano de
Sant’Anna, Carlos Nejar e Luiz Coronel. Na programação também o Painel “Sete
poetas em busca de um leitor”. Muita poesia no cardápio.’
Infelizmente, meu entusiasmo não surtiu efeito, a
escritora não me respondeu. Posteriormente, enviei o mesmo texto, já concluído,
à Coordenação da Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo. O resultado foi
o mesmo: nenhum.
Em 2002, após ler Entre
o Cristal e a Chama, de Flávio Carneiro, escrevi ao autor em capítulos,
aproveitando a mesma estrutura e tema do livro, quase como se fosse uma
continuação.
‘O Leitor instigado
Acompanhei página por página o livro Entre o Cristal e a Chama. Segui suas
pistas e descobri e redescobri vários tesouros. Minha biblioteca é fecunda e
pode me propiciar as leituras que serviram de base para os ensaios. Já havia
lido alguns dos contos ou romances citados como O homem da multidão, de Edgar Allan Poe e Farenheit 451, de Ray Bradbury. Li outros após a leitura do ensaio
correspondente como Uns braços, de
Machado de Assis e A arte de andar nas
ruas do Rio de Janeiro, de Rubem Fonseca. Outros, que ainda não li, já os
separei para ler, como Os crimes da rua Morgue,
de Edgar Allan Poe e O quieto animal da
esquina, de João Gilberto Noll. Infelizmente ainda não tenho, mas vou
procurar obter, os livros Continuidade
dos parques, de Júlio Cortázar, Aqueles
cães malditos de Arquelau, de Isaías Pessotti e A colcha de retalhos, de Monteiro Lobato.
O
Leitor emocionado
A leitura do livro Entre o cristal e a chama já seria
suficiente para emocionar o Leitor. A referência a histórias selecionadas e a
leitura paralela dessas histórias completam o quadro. Particularmente, como num
crescendo, fiquei muito emocionado com a leitura dos dois últimos textos, ambos
intitulados O Leitor e o nome. No
primeiro, emocionou-me a capacidade do Leitor em extrair poesia de fatos que
passariam desapercebidos pela maioria dos mortais (Clínica Sapatológica, Casa
das Letras, Peixaria Oceano Atlântico). No segundo, encantou-me o empenho com
que o Leitor entrega-se para desvendar o enigma lançado por Borges no conto As ruínas circulares.
O
Leitor e a realidade
Os dois últimos textos do livro eu os li pela manhã, na
sala do café, antes de sair para o trabalho. Como o Leitor do último ensaio, eu
também permaneci ali ainda um pouco, de pé, segurando o livro. Pensei no que me
esperava lá fora, no trabalho diário que me aguardava.
Diferentemente do Leitor do ensaio, entretanto, a
realidade se impunha, larguei o mundo dos livros e continuei meus preparativos
para sair de casa, agora já um pouco atrasado.
Já no carro, lembrei-me de outra oportunidade em que
também atrasei um pouco para o trabalho: foi quando fiquei admirando três
tucanos pulando de galho em galho, comendo sementinhas, numa árvore do meu
quintal. Não me cansava de olhar seus longos bicos coloridos. Era uma dádiva da
natureza ter esses belos pássaros enfeitando minha paisagem particular.
A experiência com os tucanos e a leitura do livro Entre o Cristal e a Chama mostram-me,
também, outra realidade. A rigor, eu não precisaria mais ir trabalhar, pois já
tenho tempo para me aposentar. Poderia ficar em casa observando os pássaros e
lendo todos os livros que quisesse. Mas sinto que ainda falta completar um
ciclo, que creio concluído dentro de dois anos. Até lá, procurarei conciliar
esses dois mundos.
O
Leitor e o Escritor
À noite do mesmo dia em que havia terminado de ler o
livro Entre o Cristal e a Chama, reli
os dois últimos ensaios, desta vez em voz alta, para minha esposa ouvir. Ela
gostou muito. Mostrei a ela, também, o texto de Borges As ruínas circulares, com a epígrafe-enigma. Interessada, ela me
perguntou sobre o autor. Disse-lhe que era Flávio Carneiro, professor de Letras
da Universidade do Rio de Janeiro. Li os dados biográficos do autor constantes
da orelha do livro.
Então, a surpresa. O último de seus livros que estava
lá registrado era Lalande, de 2000.
Eu já havia lido Lalande. E mais,
lembrava que tinha ido ao lançamento do livro em Goiânia (GO), quando lá estive
em Outubro/2000, participando de um congresso de contadores (é bom deixar
claro: não contadores de histórias, mas contadores profissionais da
contabilidade). Fui procurar o livrinho (pequeno grande livro) Lalande, embora soubesse de antemão que
não seria uma tarefa tão fácil; minha superpovoada e não organizada biblioteca
está espalhada pela casa, aguardando a construção de um novo espaço para
abrigá-la. Depois de algum tempo, encontrei o livro. Lá estava: Para o Carlos,
com um abraço do Flávio Carneiro, Go, 17 Out 00.
Fiquei contente em saber que além do encontro formal
do leitor com o escritor, intermediado pelos livros Lalande e Entre o Cristal e a
Chama (que li sem me dar conta que os dois livros eram do mesmo autor),
houve, antes, o encontro pessoal, no qual trocamos algumas palavras simpáticas
sobre livros e literatura.
Um
abraço
Carlos’
Acrescento
mais um capítulo:
O Leitor e a resposta.
Não
houve resposta.
Em 2006, escrevi para Carlo Carrenho e Rodrigo Magno
Diogo:
Li hoje o livro organizado por vocês O livro entre aspas. Gostei muito.
Muitas das citações eu já conhecia, pois também
coleciono frases sobre o livro, leitura, tradução, literatura, que dariam,
também, para compor um livro.
Passo-lhes um diálogo, que gosto muito, mantido pelos
personagens Carlos, León e Ema, do livro Madame
Bovary, de Gustave Flaubert:
‘– Minha mulher não dá importância a isso – disse
Carlos; apesar de lhe recomendarem exercícios, prefere estar sempre no quarto,
lendo.
– É como eu, replicou León. – Realmente, não há melhor
coisa do que passar-se a noite ao pé da lareira, com um livro, enquanto o vento
bate nas vidraças e a luz vai iluminando.
– Tenho razão, não é verdade? – disse ela, fitando-o
com os grandes olhos negros muito abertos.
– É que não se pensa em nada – continuou ele –, e as
horas passam. Sem sair do lugar, passeia-se por países imaginários, e o
pensamento, enlaçando-se com a ficção, demora-se em detalhes, segue o contorno
das aventuras. A gente roça pelas personagens e até parece que se palpita sob
os seus trajes.’
... e o diálogo ainda
continua sobre o mesmo assunto.
Em 2002, participei de um concurso promovido pela
Associação Nacional de Escritores (ANE), sobre frases sobre o livro. Ganhei
menção honrosa com a frase Livro, fonte
de saber e sabor. Mandei mais de duas dezenas de frases para o concurso, as
quais repasso para vocês:
Livro: ele tem uma mensagem importante
para você. Faça contato.
Livro, libro, livre, book: importante em
qualquer língua.
Livros, estrelas do meu céu particular.
Livro: o vício que é uma virtude.
Vivendo e aprendendo...com os livros!
Livro
Leitura, tu propicias
Imaginações, tu relatas
Vidas, tu guias
Realidades, tu descreves
Obras, tu divulgas.
Livro: quanto mais você dele se alimenta
maior é a sua fome.
Livro: quanto mais dele você sorve maior
é a sua sede.
Livro: quanto mais longe ele te leva,
mais longe tu queres ir.
Livro: a resposta para qualquer
pergunta.
Livro: fonte de conhecimento e prazer.
Ó livro, você que tem o poder de
iluminar as mentes daqueles que devoram as suas páginas, tirai-me das sombras
da ignorância e guiai meus passos rumo ao futuro.
Livro: fonte de luz em sua vida.
Livro: fonte de saber e prazer.
Livro: fonte de saber e sabor.
Os livros nascem, crescem, se reproduzem
e... não morrem jamais.
Livro: passaporte visado para qualquer
lugar ou época, sem prazo de validade.’
Livro: passaporte para a vida.
Livro: leva você longe sem precisar sair
do lugar.
Livro: um filho para quem o escreve, um
pai para quem o lê.
Livro: ainda não inventaram nada melhor
para levar você longe, sem sair do lugar.
Livros > Olhos > Cérebro: a
conexão perfeita.
Um
abraço
Carlos’
Lamentavelmente, mais uma vez, fiquei
sem resposta.
Aproveito para fazer um
comentário sobre o concurso de frases sobre o livro. Você viu quantas frases
escrevi. Elas foram surgindo aos borbotões e algumas diretamente derivadas de
outras, como foi o caso da que ganhou menção honrosa. Acontece que, depois, por
acaso, estava lendo o livro Aula, de
Roland Barthes, escrito em 1977, e, já no seu final, vi o mesmo conceito lá,
embora não ligado diretamente ao tema livro:
‘[...] Vem talvez agora a idade
de uma outra experiência, a de desaprender,
de deixar trabalhar o remanejamento imprevisível que o esquecimento impõe à
sedimentação dos saberes, das culturas, das crenças que atravessamos. Essa
experiência tem, creio eu, um nome ilustre e fora de moda, que ousarei tomar
aqui sem complexo, na própria encruzilhada de sua etimologia: Sapientia: nenhum poder, um pouco de
saber, um pouco de sabedoria, e o máximo de sabor possível.’
Em dezembro de 2006 escrevi para
Zé Pedro Antunes:
‘Tomei conhecimento de Robert
Walser por meio do livro La Baraja Trece,
do argentino Álvaro Abós. No livro, o escritor reúne doze variações sobre uma
história, doze relatos sobre um único tema: o mistério da morte, que anuncia a
carta XIII do Tarot. Uma dessas histórias (Hombre
en la nieve) trata da morte de Robert Walser (esta história ganhou em Valladolid
o Premio Jauja de Cuento).
Estava lendo esse livro em
outubro passado, coincidentemente no mesmo mês em que faria uma viagem à Suíça.
Lá conheci a cidade de Herisau, onde Walser morreu. Em Genebra, em visita ao
Museu de Arte e Historia, comprei o livro Histoires
d’images (título original Bildergeschichten),
de Robert Walser, onde são comentadas e ilustradas obras dos pintores
Fragonard, Delacroix, Bruegel, Anker, Renoir e outros. Ainda em Genebra,
visitei a Fundação Martin Bodmer (onde estão expostos os papiros do
recentemente divulgado Evangelho de Judas). Era, então, 3 de novembro. Por um
folheto à disposição do público, soube que acabara de encerrar-se, em 29 de
outubro, a exposição Robert Walser –
Territoire du crayon, onde estavam expostos os manuscritos minúsculos (os
microgramas) de Robert Walser. Perdi a exposição, mas trouxe o folheto, que
contém algumas ilustrações desses manuscritos.
De volta a Brasília, encontrei na
Fnac o livro O Ajudante, de Robert
Walser, traduzido por você. No livro, tomei conhecimento dos outros textos de
Walser traduzidos por você, disponíveis no site Usina de Letras (do qual também
participo). Li O Escritor, Kleist em Paris e O Passeio (aproveitei para ler também outros textos seus muito
interessantes sobre tradução). Além disso, encomendei de uma livraria de
Portugal ou da Espanha (agora não me recordo de onde) o romance Jakob von Gunten, que chamou minha
atenção ao ler La Baraja Trece.
Enfim, como acabei de ler hoje
esse belíssimo livro que é O ajudante
e ontem seus textos antes citados, resolvi compartilhar com você as
circunstâncias em que se deu meu encontro (ainda que tardio) com Robert Walser.
Parabéns pelo seu trabalho e
obrigado por proporcionar-me, pela tradução, a leitura extremamente prazerosa e
instigante de O ajudante.
Que o nosso Natal e o Ano Novo
não sejam tão inquietos e inseguros quanto o que se prenunciava ao final da
historia de O Ajudante para os
personagens Joseph e Wirsich.
Um abraço.
Carlos’
Preciso dizer-lhe novamente qual
foi a resposta? Digo-lhe: nenhuma.
Creio que já estou lhe cansando.
Mas se você chegou até aqui, acho que vai continuar. Tenho certeza de que se
este texto fosse levado para discussão em uma oficina literária receberia as
pechas de cansativo, longo, aborrecido, repetitivo. Mas isto não é apenas (se é
que é) um texto literário, é a carta de um suicida, poxa! Acho que tenho o
direito de escrever o que e o quanto eu quiser. Claro, Josué, que você não é
obrigado a ler. Na verdade, também, não importa muito, pois já estarei morto.
Aliás, não sei nem porque estou escrevendo. Ou melhor, sei, sim. No íntimo,
quero adiar um pouco meu ato e quero dar-lhe um ar pretensiosamente grandioso,
embora quanto mais escrevo, noto que será um ato banal. Os motivos nem são tão
relevantes assim para um suicídio. Acho até que o problema nem está em mim, mas
nos escritores que não se dignaram a me responder. Mas também não tenho motivos
para não me suicidar. Vamos em frente.
Em novembro de 2009 escrevi a
Luiz Felipe Pondé:
‘Somente ontem li seu texto A cruz, veiculado na Folha de São Paulo
do dia 9 de novembro.
Antes de mais nada, quero dizer
que gosto muito do que você escreve.
No entanto, quanto a esse A cruz,
permito-me discordar de sua opinião.
Antes de considerar a decisão da
Corte Europeia de Direitos Humanos [a retirada dos crucifixos das escolas
públicas italianas] como ‘ridícula’, considero-a corajosa. Alguém tem que
começar a livrar-nos de crenças antigas, assim como nos livramos dos deuses
gregos e romanos, hoje enquadrados nos limites da mitologia. Por que temos que
ter aulas de tortura diária e termos que explicar a nossas crianças quem é
aquela figura pregada numa cruz, como a nos intimidar, a nos chantagear, mantendo-nos
subservientes e eternamente culpados por algo que não temos nada a ver? O mundo
teve outros ‘bodes expiatórios’ no decorrer dos séculos e nem por isso nos
ficam impingindo sua presença todo dia. Fazem parte da história. Quem quiser
acreditar em histórias da carochinha que acredite. Ide todos às igrejas e que
paguem (literalmente) por isso. Mas, nas escolas públicas? Liberdade, ainda que
tardia.
Um
abraço
Carlos’
A resposta: nenhuma resposta.
Em maio de 2011 escrevo para o
escritor e jornalista argentino Rodolfo Braceli:
Sou de Brasília e estive na
apresentação do seu livro Escritores
descalzos, no dia 8 de maio de 2011, na Feira do Livro de Buenos Aires.
Após a apresentação, colhi o seu autógrafo no livro. Na ocasião você forneceu o
seu e-mail e pediu que eu lhe escrevesse dando minhas impressões após a leitura
do livro.
Achei o seu livro simplesmente
maravilhoso. Dele, emergem emoção, sinceridade, leveza, e, obviamente, muita
competência de sua parte em deixar seus entrevistados à vontade e falarem como una cotorrita (valendo-me das
próprias palavras de Diana Bellessi, uma de suas entrevistadas), e compilando e
complementando com a introdução e os belíssimos textos sob o título Después, detrás, debajo. Minha opinião,
provavelmente, é supérflua. Você deve estar cansado de ouvir comentários elogiosos
à sua obra. Mas, como você mesmo diz: Lo
supérfluo, es supérfluo?
Quero aproveitar e comentar com
você um ponto da entrevista com Borges.
Quando fazes a pergunta Cree en el amor eterno? E Borges
responde Yo creo en el amor eterno, pero
a mi modo... Creo que el amor es eterno, mientras dura, lembrei-me de um
poema de Vinicius de Moraes (Soneto de fidelidade) falando do amor, cujo verso
final é Mas que seja infinito enquanto
dure. Fui procurar na Internet para ver quando foi escrito e encontrei que
foi em 1939, escrito em Estoril, Portugal. Mas, também encontrei, que um poeta
francês, Henri Régnier, em 1916, escreveu L’amour
est éternel...oui, tant qu’il dure... (traduzindo: que o amor seja eterno
enquanto dure). A mesma idéia inspirou o frasista contemporâneo Sofocleto: Amor eterno é o que dura enquanto existe.
Seria simples coincidência, ou
Borges leu algum desses escritores? Ou Borges também teria escrito alguma coisa
nesse sentido antes da sua entrevista? É uma curiosidade. Mas será que
saberemos?
Um
abraço
Carlos’
Claro que viria uma resposta.
Afinal, foi ele mesmo que pediu para que eu lhe escrevesse. Mais uma vez, não
recebi resposta.
Em novembro de 2011, escrevi ao
escritor e poeta Affonso Romano de Sant’Anna:
Acabei
de ler o mundo, isto é, acabei de ler o seu livro "Ler o mundo".
Estive no lançamento do seu livro na Biblioteca Demonstrativa de Brasília.
Talvez você lembre de mim: comentei sobre visita que fiz em maio deste ano à
casa e biblioteca de José Saramago na ilha de Lanzarote. O comentário foi feito
em função de ter lido no seu livro a carta de Saramago sobre a sua saída da FBN
– Fundação Biblioteca Nacional.
O
seu livro é maravilhoso. E as atitudes e situações ali descritas são mais
maravilhosas ainda. Embora já tivesse lido algumas daquelas crônicas nos
jornais, vê-las todas juntas adquiriu um sabor especial. Parabéns pelo seu
carinho ao livro, à leitura, às bibliotecas e às pessoas ligadas a esse
universo, sem as quais nada funcionaria.
Já o vi e o ouvi outras vezes. Por ser fã incondicional do livro e da leitura,
sempre que posso, vou a lançamentos de livros, a feiras de livros (no país e no
exterior), à Jornada de Literatura de Passo Fundo (onde o encontrei) e à FLIP.
Os livros fazem-me viajar, não só na imaginação, mas também na realidade. Assim
como Saramago levou-me a Lanzarote, você levou-me a Colônia, na Alemanha.
Manzoni, com o seu romance "Os noivos", levou-me ao Lago de Como, a
Milão e a Leco, na Itália. Fui em busca do tempo perdido de Proust, na França.
Horácio Quiroga levou-me às barrancas do rio Paraná, em Misiones, na Argentina.
Robert Walser levou-me a Herisau, Nietzsche, a Sils Maria, Thomas Mann, com sua
"Montanha mágica", a Davos e Hermman Hesse, a Lugano, todas na Suíça.
Cervantes levou-me a Alcalá de Henares e Esquivias, na Espanha. Tracy
Chevalier, com seu "Moça com brinco de pérola", levou-me a Delft e a
Haia, na Holanda (alíás, além do quadro "Moça com brinco de pérola",
de Vermeer, vi também, no Mauritshuis, em Haia, "Vista de Delft",
também de Vermeer, quadro que tem o muro amarelo cuja beleza impressionou
Bergotte a ponto de matá-lo, descrito no romance de Proust). Dante levou-me à
Florença, na Itália e Hemingway, a Key West, nos Estados Unidos. Paro por aqui,
embora a lista continue.
Enfim, conheço as cidades principalmente pelos seus lados literário e
artístico. Bibliotecas, livrarias, museus e casas dos escritores são pontos
obrigatórios nas visitas. Já visitei as bibliotecas "Real Gabinete
Português de Leitura" e a "Biblioteca Nacional", no Rio de
Janeiro, a Vancouver Public Library, no Canadá, a British Library, em Londres,
a Biblioteca do "El Escorial", na Espanha, a Biblioteca Joanina, em
Coimbra e a Biblioteca do Palácio de Mafra, ambas em Portugal, a
"Bibliothèque nationale de France" e a "Bibliothèque Mazarine,
em Paris, a Biblioteca Ambrosiana, em Milão, as bibliotecas do Klementinum e do
Mosteiro Strahov, em Praga, a Stiftsbibliothek St. Gallen, na Suíça, a
"The New York Public Library” e outras.
Volto de todos esses lugares carregado de livros. Eu tenho uma grande
biblioteca (deve ter mais de vinte mil volumes) ainda não totalmente organizada.
Estou organizando-a em três ambientes. A exemplo da "Divina Comédia",
de Dante, estou chamando esses ambientes de "Inferno",
"Purgatório" e "Paraíso". A ideia veio-me depois de visitar
a exposição "L"enfer de la Bibliothèque", na Biblioteca nacional da França,
em março de 2008. No "Inferno" estão os livros sobre sexo, mal,
morte, religião, crime, Sade e outros. No "Purgatório", que é onde
estão minha mesa e o computador, isto é, onde "purgo", isto é,
"trabalho", coloquei os livros de referência (dicionários,
enciclopédias, línguas, etc), os livros sobre leitura e escrita e os de crítica
literária. Se couber, colocarei também os de história. No "Paraíso",
ah!, no Paraíso, estão os livros de arte, de viagens, poesia, Camões, Dante,
Cervantes, Machado de Assis. É claro que esses nomes são meramente metafóricos,
pois sinto-me tão à vontade no "Inferno" e no "Purgatório",
quanto no "Paraíso". É nessa biblioteca que passo muitos momentos dos
meus dias, quando não estou viajando, comprando livros ou dando atenção à minha
família (sou casado, com três filhos). Atualmente estou aposentado (tenho
apenas dois ou três compromissos mensais como Conselheiro de empresas) e tenho
tido mais tempo para tudo isso (até março de 2009 eu era o Contador da London
Seguros, as responsabilidades eram muitas e as leituras técnicas, também).
Mas, enfim, por que estou lhe contando tudo isso? É engraçado quando duas
pessoas se encontram numa sessão de autógrafos. Na realidade, duas histórias de
vida estão se encontrando. Uma, a do autor consagrado, cuja história é
conhecida; outra, a do anônimo leitor, que também tem uma história de vida, só
que desconhecida do autor e de todos, porque vivida na intimidade de seu
círculo familiar e de amigos, mas nem por isso menos rica (como acho que minha
vida é rica).
Escrevo isso e lembro que, outro dia, vi, na Internet, um site de poesias
sensuais, onde tem poemas de Affonso Romano de Sant"Anna, você (Quando os
amantes dormem), Marina Colasanti, sua esposa (Corpo adentro), Bocage (Amor
dentro do peito), Vinicius de Moraes (A ausente), J. G. de Araújo Jorge (Teus
seios), Pablo Neruda (Corpo de mulher) e Carlos Alfredo Pontes, isto é, eu
(Beijo), entre outros. A webdesigner Angela Cecilia, que não conheço,
idealizadora do site, alerta que "Alguns destes poemas utilizam termos que
embora sejam comuns em literatura, não é aconselhável serem lidos por menores,
sem a devida autorização dos pais; embora sejam de autores consagrados, achei
melhor fazer este aviso prévio". Obviamente estou longe de ser um autor
consagrado (apenas escrevo algumas coisinhas), mas envaideceu-me estar na
companhia de tão nobres poetas. Com isso, veja, ocorreu um encontro, não
provocado por nenhum de nós, numa mesma página da Internet, daquelas mesmas
duas pessoas que se encontraram fugazmente numa mesa de autógrafos, na
Biblioteca Demonstrativa de Brasília.
Como você mesmo diz no livro, citando o ator James Dean, "Assim caminha a
humanidade". A vida é feita de encontros e desencontros, encantos e
desencantos; mas é isto que a torna bela, digna de ser vivida e apreciada.
Prezado Affonso Romano de Sant"Anna, ainda não vi o pôr do sol no Peloponeso,
mas já me perdi na Toscana, já subi no telhado da Catedral de Milão, já
percorri a rota de Dom Quixote, já estive com Evita na Recoleta (e com Borges
no Cimitière de Plainpalais, em Genebra), já estive no Chile de Neruda, já subi
os 509 degraus da torre da Catedral de Colônia, já visitei a casa de Freud em
Viena, já vi o sorriso da Mona Lisa, caminhei sobre as muralhas de Óbidos, em
Portugal, já passeei por Londres, estive em Nova York (mas não de preto) e em
muitos outros lugares (não tantos quanto você). Viajar é maravilhoso; ler sobre
viagens, também. As leituras nos fazem viajar; as viagens nos fazem ler; as
recordações de viagens nos fazem escrever.
Depois do encontro fugaz, do encontro virtual e dos encontros e desencontros
geográfico-temporais, proponho a você um encontro real. Se você quiser e
puder nos dar a honra, numa próxima visita sua à Brasília, eu e minha
esposa teríamos imenso prazer em recebê-lo (convite extensivo à sua esposa
Marina), para conhecer a biblioteca e a nossa casa, tendo como brinde o pôr do
sol no Lago Norte (sem os percalços do pôr do sol no Peloponeso). Conversaríamos
sobre livros, leitura, arte, viagens e o que mais nos interessar.
Um grande abraço.
Carlos’
Aqui
eu estava animado (para não dizer exibido e pretensioso), você não acha, Josué?
Nunca me senti tão igual. Desta vez
não poderia falhar. A resposta? Sem resposta. Mas como, sem resposta? Não
conseguia acreditar. Só pode não ter recebido meu e-mail, pensei.
Vi,
depois, que estava prevista a participação do escritor na 14ª Jornada Nacional
de Literatura em Passo Fundo. Como eu também iria à Jornada (como leitor), eu
teria a oportunidade de entregar o texto pessoalmente.
Assim
fiz, levei o livro dele “Perdidos na Toscana” para colher seu autógrafo e
entreguei o texto a ele. Disse-lhe que talvez ele não tivesse recebido, por
isso estava trazendo-lhe uma cópia pessoalmente. Ele me disse que recebera, sim
e que o respondera. Disse-lhe que, infelizmente, não havia recebido a resposta.
Alguns
dias depois, a resposta: Carlos, bom te
rever. E reafirmo que respondi sua atenciosa e fraterna carta, tão singular,
tão viajada e sábia. A internet é um ramo do espiritismo. As coisas somem nas
nuvens. E nas viagens nos encontramos e nos reencontraremos, espero. Meu
abraço, ars.
Bem,
para quem nunca recebia resposta, já é alguma coisa. Mas, infelizmente, tanta
coisa ficou sem resposta. Como o próprio escritor escreveu: ficou nas nuvens.
Relato,
agora, dois encontros que tive com o escritor português José Luiz Peixoto. O
primeiro foi na Festa Literária Internacional de Paraty – FLIP, em 5 de julho
de 2012. Fui colher o autógrafo do autor no seu livro Morreste-me. Ele foi muito simpático e conversou bastante comigo.
Perguntou se eu também escrevia. Disse que sim, algumas coisas, mas nada que
fosse tão relevante para atravessar o Atlântico. Risos. O segundo foi alguns dias
depois, em 15 de julho, na Livraria Cultura do Iguatemi, em Brasília. Levei o
livro Cemitério de Pianos para colher
o seu autógrafo. Novamente ele foi supersimpático comigo e com minha esposa,
que me acompanhava. Lembrei-lhe do encontro na FLIP e disse-lhe que pensara
melhor e que gostaria, sim, que um dos meus escritos atravessasse o Atlântico
e, que, já que ele se interessara, ele seria meu portador. Dei a ele o livro
“Talentos Seguros” de 2005, que tem o meu conto O Livrólatra.
Na
minha imaginação, eu o via me telefonando ou mandando um e-mail dizendo: ‘Que
conto maravilhoso! Será que você autorizaria sua publicação no Jornal de Letras
aqui de Lisboa?’ De sonhos se vive; mas somente sonhos não bastam para viver.
Resultado: não soube nada da travessia oceânica do meu conto (se é que
atravessou).
Ainda
em julho de 2012, escrevi a João Pereira Coutinho:
‘Li
seu artigo Mutilações, na Folha de
São Paulo de 17 de julho de 2012. Evocando Bocage, acho que a emenda saiu pior que o soneto: Como é
que fazer uma intervenção cirúrgica desnecessária para retirada do prepúcio
(falo apenas das desnecessárias e não das recomendadas pelos médicos em
decorrência de fimose) pode se enquadrar na liberdade de terem as famílias de
educarem seus filhos como entenderem? A criança tem que sujeitar-se à crença
dos pais? O fato de essa operação poder ser vantajosa não quer dizer nada.
Extrairíamos o apêndice ao nascer para nunca termos apendicite? Extrairíamos as
amígdalas para nunca termos amigdalite?
Lembrei-me
de um conto de Isaak Bashevis Singer, no seu livro Um amigo de Kafka, chamado O
blasfemador, em que o pai personagem não permitiu que seu filho fosse
circuncidado. Eis o trecho:
‘Nesse
meio tempo, Basha deu a luz um menino. Quando nasce um menino, tem-se que
circuncidá-lo, mas Chazkele disse: ‘Não vou participar desse ritual antiquado.
Os judeus o aprenderam com os beduínos. Se Deus detesta prepúcios, por que as
crianças nascem com eles?’ Basha suplicou-lhe que acedesse. Praga não é Moscou.
Está cheia de judeus piedosos. Quem já ouviu falar de um pai que se recusa a
deixar o filho ser circuncidado? As vidraças deles foram quebradas. No oitavo
dia, um quórum de carregadores e
açougueiros invadiram a casa trazendo um mohel
[homem encarregado de fazer a circuncisão] e circuncidaram o bebê. Dois homens
agarraram e imobilizaram Chazkele. O pai tem que recitar as bênçãos. Nada
conseguiu forçar Chazkele a dizer as palavras sacramentais.’
Tenho
60 anos e, como você escreveu, também ainda tenho o prepúcio no seu devido
lugar. Tenho três filhos, sendo dois homens; um deles, o mais velho, precisou
fazer a cirurgia (paciência); o outro, não. NÃO À PENA DE MORTE DOS PREPÚCIOS.’
Um abraço
Carlos’
Não
houve resposta.
Em novembro de 2012, fui à Feira
do Livro de Guadalajara, no México e colhi o autógrafo do escritor espanhol
Jordi Sierra i Fabra no livro Kafka e a
boneca viajante. Na ocasião, entreguei-lhe meu texto Kafka que escrevi sobre o assunto abordado no seu livro.
Novamente
esperei que meu texto pudesse ser merecedor da atenção do escritor, quanto mais
pela simples curiosidade, mas não obtive nenhum retorno.
Em
fevereiro de 2013 escrevi para Gabriela Aguerre, Diretora de redação da Revista
Viagem e Turismo:
Li
seu texto Livros que viajam na Viagem e Turismo de Janeiro/2013 com
muita satisfação.
Há
muito tempo que levo meus livros para passear. Em uma viagem à França, fui
muito bem acompanhado de Proust Em busca
do tempo perdido. Também fiz uma Viagem
a Portugal com Saramago. Percorri a rota de Dom Quixote, na Espanha, tendo o livro na garupa. Em Buenos Aires passeei pelo Parque Chass (na realidade, um
bairro residencial, com suas ruas
circulares, com nomes de cidades do mundo, como Londres, Dublin, Berlin,
Cádiz), descrito pelo escritor argentino Tomás Eloy Martínez, no seu romance O último cantor de tango.
Em
viagem à Itália, levei o livro Os noivos,
de Alessandro Manzoni. Escrevi, à época, Literaritália:
Quando vínhamos de Bellagio em direção a
Lecco, margeando (pelo lado de dentro do ‘Y’ invertido que forma o Lago de
Como) o braço do lago que ruma para o sul, segundo a descrição de Alessandro
Manzoni, pude reconhecer, de longe, a montanha em forma de serrote, também
descrita pelo autor de Os noivos. Integrar-se
ao mesmo cenário utilizado por Manzoni para ambientar seu romance é como
reviver, em outra época, a história tão magistralmente contada por ele.
Enfim,
dentre tantos outros livros que levei a passear, destaco dois dos últimos. Em
viagem à Key West, na Flórida, Estados Unidos, em dezembro de 2012, levei Ter e não ter, de Ernest Hemingway,
escrito e ambientado na ilha; em viagem a Lisboa, em outubro de 2012, para
assistir ao show de Leonard Cohen, levei A
brincadeira favorita, escrito por Leonard Cohen no início de sua belíssima
carreira de poeta e músico.
E
já que falamos em Lisboa e Saramago, compartilho com você que, aproveitando uma
dica da sua xará Gabriela Erbetta, na Viagem
e Turismo de agosto de 2012, eu, minha esposa e meu filho, em viagem a
Lisboa, em setembro de 2012, fomos jantar no restaurante Farta Brutos e ocupamos justamente a mesa que dizia: José Saramago – mesa e lugar preferidos.
Gostei
muito de escrever este e-mail, porque me lembrei de todas essas viagens
maravilhosas que fiz, e quero continuar fazendo, acompanhado também de livros
igualmente maravilhosos; e claro, contando sempre com a ajuda ímpar da revista Viagem e Turismo, da qual sou assinante
há vários anos.
Um abraço
Carlos’
A
resposta não tardou: Oi Carlos, você é
dos meus. Fico muito contente em saber que meu hábito também é de leitores como
você. Acertadíssimas as suas leituras! (E que invejinha em relação ao Leonard
Cohen – ainda vou assistir a um show dele). A Gabriela Erbetta também ficará
contente em ler sua mensagem, que vou imediatamente repassar para ela. E
continuemos passeando com livros, sempre. Um abraço, Gabriela.
Poucos
dias depois, voltei a escrever-lhe:
‘Li
agora o seu texto Da saudade, da
Viagem e Turismo de fevereiro/2013 e não resisti em novamente lhe escrever.
Seu
texto lembrou-me do poema Contrabando,
de Oswald de Andrade, que está no seu livro Pau
Brasil:
Os
alfandegueiros de Santos
Examinaram
minhas malas
Minhas
roupas
Mas
se esqueceram de ver
Que
eu trazia no coração
Uma
saudade feliz
De Paris
Um abraço
Pedro’
A
resposta, novamente, veio rápida (e, desta vez, boa): Oi, Carlos. Que boa ponte você fez; obrigada. Você costuma escrever
sobre suas viagens? Já chegou a publicar algo? Noto pelo seu interesse e
bagagem que você poderia ser um colaborador da Viagem e Turismo. Me diga. Um
abraço, Gabriela.
Animado,
respondi, imediatamente:
Fiquei
muito contente com o seu e-mail. Seria fascinante ser um colaborador da Viagem e Turismo.
Você
me pergunta se costumo escrever sobre minhas viagens; não rotineiramente, mas
às vezes, sim, como fiz com viagens à Itália, à Ilha de Páscoa, a Rosário, na
Argentina, ao Rock in Rio.
A
viagem à Itália resultou numa crônica longa chamada Literaritália, em que, paralelamente à minha viagem, registrava
trechos de livros que faziam referência aos lugares visitados. Amei escrever
esse texto. O texto está inédito, mas está inserido num projeto de livro que
estou escrevendo Excertos de minha
biblioteca, que pretendo publicar (ainda não tenho editora). Estou anexando
o texto para sua leitura.
As
outras três viagens resultaram em pequenas crônicas e um conto, que você poderá
ler no site da Usina de Letras, onde
também constam outros escritos meus. O conto Lugares reservados, ambientado na Ilha de Páscoa, também foi
publicado em Antologia da Superintendência de Seguros, no programa Talentos Seguros, de 2001.
Também
escrevi, em comemoração aos meus dez anos de casamento, o texto Carta à minha jovem esposa, numa clara
referência à Carta a um jovem poeta,
de Rainer Maria Rilke, em que descrevo, em prosa (quase) poética, as viagens
que fizemos nesses dez anos. Esse texto, com a concordância de minha esposa,
também figurará no livro que estou escrevendo. Também anexo para a sua leitura.
Escrevi
Carta à minha jovem esposa em 2006.
De lá para cá já fiz e fizemos inúmeras viagens ao exterior, principalmente à
França, Argentina e Portugal, mas também ao México, Estados Unidos, Espanha,
Inglaterra, Itália, Alemanha, Áustria, Luxemburgo, Suécia, Suíça, Lichtenstein,
República Tcheca e Peru. Estive também na ilha de Lanzarote, território
espanhol, pertencente ao arquipélago das Canárias, a 125 quilômetros da costa
africana. Fui visitar a casa de José Saramago (ele de novo).
O
que me atrai, principalmente, em viagens ao exterior são as exposições de arte,
os museus, as casas de escritores e pintores, as bibliotecas e livrarias, as
feiras de livro e claro, as belas paisagens. Wallstat, na Áustria, Vale de
Funes, na Itália, a região dos lagos de Como e Maggiore, na Itália e do lago de
Genebra, na Suíça, a ilha de Fernando de Noronha, a ilha de Páscoa são de tirar
o fôlego.
Como
disse, estou escrevendo um livro Excertos
de minha biblioteca (tenho uma enorme biblioteca, com cerca de vinte mil
volumes). Nele consta um capítulo Por que
leio, onde também se encontram referências de viagens. Estou anexando
também esse texto (ainda inédito) para sua leitura.
Peço
reserva a você nos textos inéditos, mas, se você tiver alguma dica para
publicação, por favor, me fale.
Mas,
agora, diga-me, como funciona ser um colaborador da Viagem e Turismo? Além de disposição e prazer, tempo para viajar e
escrever eu tenho (estou aposentado desde 2009. Eu era Contador da London
Seguros).
Uma
ideia que me ocorreu, relacionada com o seu texto da revista Viagem e Turismo de janeiro/2013 e com o
e-mail que lhe enviei, é escrever artigos cujo mote seria um livro levado a
passear. Seria explorado o cenário e ambiente do livro ou o local relacionado
com a vida do escritor e, paralelamente, seriam disponibilizadas ao leitor as
informações e atrações da viagem. Não existe a profissão de acompanhante de cães, exercida por pessoas que levam
cães para passear? Pois eu me candidato a ser acompanhante de livros, levarei
livros para passear e de quebra farei um relato da viagem. Mas, pensando bem,
seria bom demais para ser verdade: seria a melhor profissão do mundo. De
qualquer forma, fica a ideia para sua avaliação.
Outra
ideia seria relatar uma viagem com suas atrações, mas focando, em grau a ser
determinado, aspectos culturais relacionados à arte e à literatura. Ou também,
dar uma nuance literária ou poética ao relato da viagem. Enfim, você melhor
dirá.
Agradeço
e fico muito honrado com a possibilidade externada por você e aguardo novo
contato seu.
Um abraço
Carlos’
Alguns
dias depois recebo a seguinte mensagem: Carlos,
estou demorando em te responder porque ainda não consegui ler seu material com
a atenção devida. Te agradeço e mando um abraço. Gabriela.
Mais
de dois meses se passaram e nada de resposta. Em maio de 2013, resolvi escrever
novamente para Gabriela Aguerre:
‘Na
semana passada estive em Buenos Aires. Fui à Feira do Livro e aproveitei para
visitar o Palácio Barolo, que ainda não conhecia. Escrevi o texto em anexo (Uma Divina Comédia em Buenos Aires)
sobre essa visita, que encaminho, em complemento ao meu e-mail anterior.
Já
tenho marcadas viagens para Madri, Lisboa e Roma, para o início de junho (Vou
para as Feiras do Livro de Madri e de Lisboa. Em Madri verei também uma
megaexposição de Salvador Dalí e em Roma uma exposição sobre Ticiano) e para a
Noruega, no final de junho e primeira quinzena de julho, aproveitando o ano em
que são celebrados os 150 anos do nascimento de Munch. Nesta última, irei com
minha esposa e filho e faremos passeios pelos fiordes noruegueses. Aguardo a
sua resposta.
Um abraço
Carlos’
Confesso
que comentei sobre minhas próximas viagens na tentativa de instigá-la, quem
sabe, a dar-me alguma incumbência-teste para aqueles destinos. Nada. O tempo
passou e a prometida resposta não veio. E não virá mais, pois vi que, na edição
deste mês fatídico de setembro/2013, Gabriela Aguerre não é mais a Diretora de
Redação da revista. Foi bom enquanto durou, mas foi apenas mais um sonho.
E
agora, finalmente, esta carta a você, Josué, que por certo também ficará sem
resposta, porque já não estarei vivo para recebê-la. Novamente lembrei-me de
Stefan Zweig. Seu amigo Robert Neuman, escritor austríaco, escreveu uma carta a
ele, em fevereiro de 1942. Mas, enquanto a carta viajava ao seu destino, seu
amigo Zweig partia do mundo. A carta voltou com a anotação, manuscrita: Mudou-se para endereço desconhecido (Morte no Paraíso, de Alberto Dines).
Pois é, Josué, mesmo que você queira responder, você não saberá para onde dirigir
a sua carta. Não perca seu tempo, portanto.
Montaigne
disse, no seu ensaio Costume da ilha de
Céos que A vida depende da vontade de
outrem; a morte da nossa. Bem, se dependo de outros para viver, não preciso
de ninguém para morrer. E com isso dou por encerrado meu relato. Conto com a
gentileza de quem encontrar esta carta no meu bolso para que a faça,
efetivamente, chegar às suas mãos, Josué. Fui.
Um abraço
Carlos”
Pois
bem, caros amigos desta Jornada. Este foi o teor da carta que recebi de Carlos.
Quero, aproveitando ainda o tempo que me sobra, fazer alguns comentários sobre
o assunto.
Antes
de tudo, quero destacar duas características marcantes desta carta: primeira:
ela é um elogio à leitura, tantas são as oportunas referências a textos e
livros lidos; segunda: o homem efetivamente sabe escrever, esta carta é uma
verdadeira peça literária, suas ideias são transmitidas com clareza e beleza.
Agora,
cabe uma pergunta: existe alguém responsável pelo suicídio de Carlos? Ninguém e
todos. Diretamente, não, mas indiretamente, sim. Nenhum dos escritores
envolvidos, inclusive eu, é responsável. Mas a soma do comportamento de todos,
sim. A indiferença, a omissão, o individualismo, o egoísmo, tudo somado, pode e
deve ter contribuído para a decisão de Carlos. Mas o maior responsável, mesmo,
é o próprio Carlos.
De
tudo que vemos da sua carta e da visita que fiz à sua esposa ainda em 2013,
observamos que Carlos tinha uma vida bastante rica, conforme ele mesmo
reconheceu em suas cartas. Provavelmente ele deve ter tido sucesso na sua
profissão de contador. Faziam parte do seu universo muitas viagens, leituras,
exposições de arte, o lugar maravilhoso em que morava, uma biblioteca
espetacular e uma linda família. Por que suicidar-se, então? Tudo indica que
Carlos cansou de ser apenas espectador (ver coisas belas), ele queria ser
protagonista (fazer coisas belas). E entendeu que o seu caminho para virar
protagonista era ser escritor. Mas a todo escritor não basta somente escrever,
ele quer ser lido. Carlos escrevia, mas não era lido.
Além
disso, observa-se que Carlos estava obcecado pelos assuntos morte e suicídio.
Isso transparece das leituras expostas em sua carta (as citações da tentativa
de suicídio do escritor romeno Panait Istrati, do suicídio do escritor
austríaco Stefan Zweig no Brasil e de Montaigne sobre a morte) e de uma seção
de livros sobre morte e suicídio que vi na biblioteca de sua casa (mais de cem
livros), assuntos que também eram objeto de um capítulo de um livro que ele
estava escrevendo.
Na
visita que fiz à sua esposa, mostrei a carta que havia recebido e pedi para ver
o que Carlos tinha escrito. Ela convidou-me para entrar em uma das suas
bibliotecas, a que ele chamava de Purgatório
(é claro que visitei as outras também), onde ele passava a maior parte do tempo
lendo e escrevendo. Na porta da entrada um pequeno cartaz com o nome da
biblioteca e a inscrição Oh bem
aventurado Purgatório! (M. de Saci
-1613-84 -, exclamação feita em seu leito de morte, no texto Un esperanzado, do Libro Del Cielo y Del
Infierno, de Jorge Luiz Borges e Adolfo Bioy Casares). Acessamos o seu
computador e, numa pasta nomeada Meus
escritos estava tudo lá: um romance (A
falha evolutiva), contos, poemas, crônicas, cartas e também um livro
inconcluso chamado Excertos de minha
biblioteca. Pedi a ela se poderia copiar aqueles arquivos no meu pen-drive
para avaliar e, quem sabe, publicar. Ela concordou.
Detive-me
inicialmente nos contos. Não tinha nenhum conto ruim. Alguns eram muito bons.
Um deles, O Livrólatra, eu classificaria
como uma pequena obra-prima. Carlos fez um paralelismo da leitura com o vício
do alcoolismo (O alcoólatra). Assim, As
palavras lidas pareciam um líquido sendo absorvido pelo seu corpo [...].
Sentia-se embriagado. [...] Não precisaria esperar completar os 18 anos para sentir o prazer de degustar um legítimo
Chateubriand [...] à medida que sua mente foi se acostumando às doses diárias
de leitura, gradualmente ele foi aumentando as doses e aumentando o teor
literário.[...] O vício de Sílvio de se embebedar de leituras ainda não
comprometia.[...] Embriagado de leituras como está, acredita que bastará ler
outro livro para rebater. Resolve bebericar trechos de um legítimo Cervantes de
400 anos. E assim por diante. Não quero tirar-lhes o prazer de vocês mesmos
lerem o conto, apenas acrescento que, sob o efeito de um porre literário, Sílvio passou a falar somente com as vozes dos
personagens dos livros que lera. E aqui, só o trabalho de um mestre, de um
grande leitor, para encaixar em sua história os trechos adequados das obras
lidas. Foi este o conto que estava no livro que Carlos deu para José Luiz
Peixoto levar para Portugal. Acho que ele não o leu.
Sobre
outro conto, A renúncia, eu diria
apenas que é perfeito. Carlos, de posse de fatos conhecidos do público, invade
a intimidade do papa e complementa a realidade com uma ficção plausível a
suportar e fundamentar a sua renúncia.
Depois
li Excertos de minha biblioteca, um
magnífico apanhado de trechos sobre determinados temas extraídos de livros
lidos e complementados com observações do escritor/leitor, além de capítulos
introdutórios como Por que leio e Minha Biblioteca, verdadeiros brados
escritos de estímulo à leitura.
Quanto
à produção poética de Carlos, notei que a maior parte dos poemas era muito
simples, quase amadora. Não que isso seja um defeito em si. Cora Coralina
também escrevia versos muito simples, mas que encantava seus leitores. Carlos
sabia que ainda precisava aperfeiçoar sua poesia, tanto que, em um poema
chamado de Poesia, nos primeiros
versos ele, expressamente, diz que ainda não se sente poeta (embora
especificamente neste caso a poesia não está só no nome) :
“Quero fazer parte
Dos que dominam a arte
De fazer a conjunção
Da palavra com a emoção.”
Mas
a joia da coroa mesmo era o romance A
falha evolutiva. Muitos de vocês já devem ter lido o livro, pois, conforme
disse no início de minha conferência, o livro tornou-se um best-seller mundial.
Carlos se vale de forma brilhante das teorias da evolução, do acaso e do caos
para embasar a existência de um ser humano dotado de instintos e pensamentos
que remontam aos nossos ancestrais pré-históricos, mas que está consciente de
que a humanidade evoluiu e que a forma de agir perante várias situações é muito
diferente da que ele carrega como sua vontade dentro de si. A sua luta diária é
manter controle constante sobre seus instintos (nem sempre ele consegue).
Sente-se inadaptado, à margem da sociedade, tendo frequentes problemas com os
demais personagens do livro, sejam eles participantes ou não do seu círculo de
relacionamento.
Feitas
as avaliações, voltei a falar com a esposa do Carlos, para ver se ela
concordava com o que eu estava pretendendo fazer. A minha idéia era
primeiramente levar à minha editora a proposta de publicação do romance A falha evolutiva. Eu não tinha dúvida
que o livro faria muito sucesso (só não imaginava que seria tanto). Na
sequencia, publicaríamos o livro de contos e o livro de poemas e a seguir o
livro Excertos de minha biblioteca.
Poderíamos pensar depois em publicar um livro com suas melhores crônicas e
cartas. De minha parte, eu também queria escrever um livro, falando da vida e da
obra de Carlos. Pretendo lançar este ano, ainda. Assim estaria completado o
ciclo. A esposa de Carlos concordou e foi o que fizemos e hoje eu estou aqui
contando esta história para vocês.
Vocês
me perguntarão: mas se a obra dele era tão qualificada, como de fato ficou
comprovada, por que ninguém o ajudou? Por que ele teve que suicidar-se para ter
a obra reconhecida? Bem, infelizmente, essas coisas acontecem. Aconteceu até
com Van Gogh, que, em vida, conseguiu vender apenas um quadro. Hoje, suas
pinturas valem uma fortuna. Talvez os escritores abordados por Carlos tivessem
um pouco de medo de ter sua vida e seu tempo invadidos inutilmente. E com
certeza já haviam esquecido que algum dia, no início das suas carreiras, alguém
havia lhes estendido a mão, como eu mesmo havia esquecido e que agora tentei
redimir, ainda que tardiamente para Carlos.
Encerro aqui esta
conferência e fico à disposição de vocês para eventuais perguntas. Muito obrigado. |