Enfim, tudo terminou.
Não foi fácil tomar a decisão, mas foi necessária. Não conseguiria mais levar
adiante a penosa tarefa de ser Papa, o sucessor de Pedro, o chefe supremo da
Igreja Católica. Esperavam de mim muito mais do que as minhas parcas forças
físicas e espirituais poderiam suportar.
Levarei para o túmulo os verdadeiros motivos de minha
renúncia. É claro que os oito anos de papado foram muito difíceis e que os
peixes ruins na rede de Pedro causaram-me profundo desconforto. Abusos de
padres contra crianças, o acobertamento desses abusos pelos seus superiores
clericais, o roubo de documentos pontifícios pelo meu mordomo, a chantagem a
que altos integrantes da Cúria foram submetidos por homossexuais beneficiados
com dinheiro da Igreja, as transações ilícitas e atípicas conduzidas por
administradores do Banco Vaticano, tudo isso contribuiu para forjar a minha
decisão.
Mas eu, no meu íntimo, sei que o motivo determinante de
minha renúncia ocorreu há quase um ano atrás, quando viajei ao México. O jornal
italiano “La Stampa” intuiu corretamente ao especular que decidi renunciar após
bater com a cabeça no lavabo do quarto em que estive hospedado no Colégio
Miraflores, em León. O meu porta-voz apressou-se em confirmar que o incidente
realmente aconteceu, mas que “não foi importante para a viagem nem influiu em
minha decisão de renunciar ao pontificado”.
Ele
porta minha voz, mas não o meu pensamento. Nesse dia, antes de recolher-me aos
aposentos que me foram designados, passei pela biblioteca do colégio para
escolher um livro para ler um pouco antes de dormir. Passeei os olhos pelas
lombadas dos volumes e vi o livro que escrevi recentemente “Los padres de la
Iglesia”. Nesse livro foram reunidas minhas catequeses das quartas-feiras em
que abordei o perfil das primeiras gerações de cristãos que sucederam aos
apóstolos, padres da Igreja que foram heróis e mártires, teólogos e filósofos,
oradores e pastores, líderes e servos da Igreja, que a defenderam em sua época
e lançaram as bases atemporais do tesouro espiritual do cristianismo. O
trabalho ainda não estava acabado, pois o último padre citado foi o de São
Bernardo de Claraval, nascido em 1090.
Ao
lado do meu livro, surpreendentemente, estava “Memoria contra la religión”, de
Jean Meslier. Digo surpreendentemente, porque o livro foi incluído em 1765 no Index Librorum Prohibitorum, sob o
título Testament. Embora o Index tenha sido abolido em 1966, é de
estranhar que o livro faça parte da biblioteca de um colégio católico. E
justamente ao lado do meu. Talvez o bibliotecário os tenha colocado juntos por
afinidade: o meu fala de padres e Meslier também foi padre. Ainda que a minha
pesquisa não tenha alcançado os padres dos séculos XVII e XVIII, certamente
Meslier não seria incluído: os “meus” padres eram a favor da religião e não
contra ela.
Eu
não havia lido o livro de Meslier, mas sabia que se tratava de um libelo contra
a religião, a Igreja, Jesus, Deus e também contra a aristocracia, a monarquia e
o antigo regime francês. Jean Meslier havia sido cura de Etrépigny e de
Balaives, na região de Champagne,
França, por quase toda a sua vida. Ele viveu de 1664 a 1729. O padre cumpria
suas responsabilidades sacerdotais durante o dia e à noite escrevia seu
“Testamento”, que foi mantido em segredo até a sua morte. Já abalado pela
podridão que me cercava e atiçado pela curiosidade, após leve hesitação, peguei
o livro outrora proibido e fui para o quarto.
Comecei
a leitura. O título completo do livro é “Memoria dos pensamentos e sentimentos
de Jean Meslier, cura de Etrépigny e de Balaives, acerca de certos erros e
falsidades na orientação e governo dos homens, onde se encontram demonstrações
claras e evidentes da vaidade e falsidade de todas as divindades e religiões
que há no mundo, memória que deve ser entregue a seus paroquianos depois de sua
morte para que sirva de testemunho da verdade, tanto para eles como para seus
semelhantes. In testimoniis illis, et
gentibus”. A expressão em latim significa “para dar testemunho diante deles
e dos pagãos” e foi extraída do Evangelho segundo São Mateus 10,18.
O
livro tinha mais de setecentas páginas. Não conseguiria lê-lo todo, nem se
ficasse acordado a noite inteira. Assim, fui lendo os títulos dos tópicos
detendo-me onde julgava mais relevante, tarefa que se revelou muito difícil,
pois tudo me chamava a atenção. Meslier disse que havia conhecido tantas
maldades nesse mundo que nem sequer a virtude mais perfeita ou a inocência mais
pura pareciam encontrar-se ao abrigo da malignidade dos caluniadores; que a
religião apoiava qualquer governo político, por nefasto que fosse; que, por sua
vez, o governo político, fosse qual fosse, apoiava qualquer religião, por
inconsistente e falsa que pudesse ser; que as religiões não são mais que erros,
quimeras e imposturas; que a fé é somente uma fonte e causa nefasta de
distúrbios e divisões intermináveis entre os homens; que há falta de exatidão e
futilidade dos supostos milagres em que fundar a verdade da religião; que há
falta de exatidão nas supostas Sagradas Escrituras e nos Evangelhos. E assim
continua Meslier, falando dos sacrifícios cruéis e bárbaros de animais em honra
a Deus; da suposta ordem que Deus deu a Abraão para que imolasse o seu filho;
do erro da Santíssima Trindade; do erro da encarnação de Deus feito homem; do
Cristianismo, que no começo, não foi mais que um fanatismo vil e depreciável;
da comparação da consagração dos deuses de massa e farinha com a dos deuses de
madeira, pedra, ouro ou prata adorados pelos pagãos. E muito, muito mais. E a
cada ponto do Testamento, muitos detalhes e argumentos desestabilizadores da
“verdade” que eu até então acreditava cegamente.
Fechei
o livro às quatro da manhã. Precisava descansar um pouco, para atender a
contento meus compromissos do dia. Mas como dormir depois de um turbilhão
desses? Como cumprir normalmente minha agenda, como se nada tivesse acontecido?
Como controlar esse incêndio da dúvida na minha mente? Em retrospectiva,
lembrei-me de todos os erros imperdoáveis cometidos pela Igreja ao longo dos
tempos: as Cruzadas, o massacre de Béziers, a Inquisição, o julgamento de
Galileu, as brigas papais, os abusos sexuais cometidos pelo Clero. Consegui
dormir um pouco, mas acordei sobressaltado. Precisava ir ao banheiro. Estava
escuro, ainda não amanhecera. Estava atordoado. Não consegui localizar o
interruptor de luz no banheiro e acabei batendo a cabeça na pia, chegando a
provocar um pequeno corte. “Que diabo!”, peguei-me praguejando pela primeira vez
na minha vida. “Será que Deus também estava dormindo, que não protegeu seu
representante aqui na Terra, ungido pelo Espírito Santo?
Não
haveria mais volta. Não poderia continuar chefiando a Igreja. Como Meslier, ainda
que no íntimo minha fé estivesse seriamente abalada, continuaria a
desincumbir-me das minhas obrigações da melhor forma possível, tentando de
todas as maneiras disfarçar o desânimo e o cansaço que me abatem, até que possa
efetivar minha renúncia. Diferentemente de Meslier, não quero esperar minha
morte para deixar a Igreja, nem deixá-la de todo e também não deixarei um
“Testamento” contrário a tudo que preguei. Deixarei a Igreja seguir o seu
caminho. Não quero a responsabilidade de os fiéis sentirem-se enganados por
todo esse tempo.
A
lembrança daquela noite fatídica morrerá comigo. Mas não resisti e deixei dois
sinais em meus pronunciamentos posteriores sobre a renúncia, sinais que, é
claro, só eu posso reconhecer. O primeiro: assim como Meslier usou o latim para
finalizar o título do seu “Testamento”, eu também utilizei o latim para
comunicar a decisão de minha renúncia. O segundo: assim como me perguntei se
Deus estaria dormindo ao não me proteger da batida na pia, coloquei no meu
pronunciamento final, realizado hoje, no último dia de meu papado, que o Senhor
parecia estar adormecido nos momentos turbulentos que a Igreja tem passado ao
longo de sua história.
Agora,
quem vai dormir sou eu. |